P.42-43 | SOS FAMÍLIA |

Agitação insana das 'lives' contraposta à paz medieval

Luís Dufaur Quando videoconferências, teletrabalho e sistemas semelhantes de home office substituem o relacionamento humano, as pessoas sofrem de exaustão e até de esquizofrenia. Sobretudo com o uso intensivo e cotidiano de tais sistemas, como acontece nesses dias de confinamento, segundo se deduz do artigo da psicóloga e pesquisadora da PUC-SP, Katty Zúñiga, publicado numa reportagem da "Folha de Pernambuco": "Cada vez mais as pessoas se queixam de se sentirem cansadas ou esgotadas nessa nova realidade em que a casa se tornou o local para se fazer tudo".1

A fadiga do ‘zoom’

‘Zoom fatigue’ é a denominação atribuída recentemente à fadiga causada pelo Zoom, uma plataforma muito usada nos encontros virtuais ou ‘lives’. O mosaico de muitas caras de pessoas conectadas sobrecarrega o cérebro. Explica a psicóloga: "Presencialmente, as reuniões de trabalho, ou mesmo as salas de aula, são permeadas por momentos de distração, descontração. Já no online, não há isso, e a parte cognitiva fica em constante estado de atenção". O fato de não seguir os padrões humanos da convivência exige uma hipervigilância, que no fim do dia se revela devastadora. O atraso entre a fala e a escuta na transmissão de dados, e a falta de liberdade de movimentos que a câmera ligada induz, aumentam o desgaste, afirma Marcos Oreste Colpo, psicólogo e professor da PUC-SP: "Quando você está conversando presencialmente, o corpo também fala, mostra inquietações. Nesses sinais, você aprende sobre o outro, percebe aprovação ou reprovação". Quando ele ministra aulas remotas, os alunos desligam as câmeras, morrendo o relacionamento no grupo, que fica sem reações afetivas. Isto é devastador para a psique humana, que não funciona como circuitos eletrônicos, mas é um espírito vivo.

Problemas na visão

Danilo Soriano, doutor em oftalmologia da USP, explica que a longa exposição à luz da tela do computador tem efeitos oculares que acentuam a exaustão: "Prestar atenção nas telas por horas seguidas faz que a gente fique muito tempo sem piscar", aumentando a chance de ressecamento ocular e de presbiopia, ou ‘vista cansada’. Soriano recomenda soluções paliativas: uma pausa caso os olhos fiquem irritados, ardendo ou lacrimejando; lubrificá-los para evitar um cansaço excessivo; ou usar um protetor de tela. "Os smartphones já tinham nos colocado numa tensão constante", afirma Zúñiga. Mas não se revelou verdadeira a ideia de que permanecer no lar é melhor: "Ao contrário, as pessoas estão ainda mais sobrecarregadas nas suas casas". A psicóloga recomenda conferir se é o caso de deixar a conversa para depois, ou então marcar um horário: "A melhor coisa é ser sincero e dizer que não pode falar naquele momento, sem rodeios".

Fim do relacionamento

O especialista em comportamento André Spicer2 afirma que as videochamadas tornam irreais os contatos. Diante da tela perdemos muitos sinais indispensáveis na vida real, como o cheiro da sala ou detalhes em nossa visão periférica. Esses dados adicionais nos ajudam a entender o que se passa. Quando eles inexistem, nosso cérebro multiplica o trabalho para entender, e às vezes chega a uma conclusão errada. Por exemplo, um estudo do desempenho virtual de candidatos em entrevistas de emprego mostrou resultados piores que quando entrevistados presencialmente. Outro estudo descobriu que num seminário virtual os médicos se concentravam no apresentador, e só no comparecimento presencial focavam a razão de ser do encontro. Os juízes que deviam julgar casos de refugiados por asilo mostravam-se inseguros nas entrevistas por vídeo, além de seu entendimento ser pior. Descobertas as fraquezas do método, as partes são propensas a enganar os juízes, que ficam menos capazes de detectar as falsidades. Na conversa online se perde o contato com a personalidade, porque "não há espaço para um papinho paralelo, um comentário baixinho para um amigo que está no bar com você, ou um olhar atravessado para um colega de trabalho que vai lhe entender do outro lado da mesa. Quando você chega numa reunião no escritório, tem aquele papo no café, tem um tititi antes. Esse tititi, em geral, nós perdemos [no online]. Não tem um social que envolve o trabalho, não tem como olhar na expressão das pessoas se aquilo causou algum incômodo ou tédio. Com tanta gente, você perde a individualidade". É o que explica a psicóloga Maluh Duprat, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP. Também diminui nossa capacidade de ‘medir a temperatura’ do ambiente da conversa. Sem uma leitura corporal, é difícil saber se a fala é bem-vinda, quando encerrá-la ou outras decisões ditadas pela percepção das atitudes psicológicas. No contato virtual, os colegas de trabalho ou os alunos de um curso perdem a sensação de pertencerem a um grupo. Estudos observaram que assim os mestres não podem ‘ler’ a sala de aula ou a equipe de estudo; isso é danoso para a interação aluno-professor; e gera piores desempenhos. Para os chefes o dano é maior, pois não podem julgar a acolhida dos empregados ou dependentes, não conseguem encontrar expressões de concordância, desacordo ou tédio. Quem modera uma ‘live’ fica facilmente perdido, diz Duprat. Pode ser que o outro desligue a câmera porque tinha uma necessidade, ou foi embora por desgosto: "Você não tem como saber se o sujeito foi fazer outra coisa, ou o quanto dele está ali". Página seguinte