P.06-07 | PALAVRA DO SACERDOTE |

Por que Jesus chamou sua Mãe de "mulher" nas bodas de Caná

Pergunta — Um evangélico tentou me convencer de que na resposta dada por Jesus a sua Mãe nas Bodas de Caná: “Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora”, Ele quis fazer uma repreensão a Nossa Senhora e, ao mesmo tempo, minimizar o seu papel na obra da salvação, ao mostrar que Ele é o único Senhor. Não acreditei, pois Jesus acabou fazendo o milagre que Maria havia pedido, mas fiquei com uma dúvida: por que tratou a sua própria Mãe de “mulher” e lhe deu essa resposta?

Resposta — A observação do leitor foi muito acertada, pois interpretar esse dito de Nosso Senhor como sendo uma “repreensão” a sua Mãe teria sido verdadeiro se o relato tivesse terminado aí. Mas prosseguiu. Maria Santíssima ordenou aos servidores: “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2, 5), e Jesus mandou encher as tálias de água e a converteu em vinho. Se o pedido tivesse sido descabido e Nossa Senhora merecesse uma repreensão, Jesus não teria feito o milagre. Se o que lhe foi solicitado estivesse errado, por que o teria feito? E se não estivesse, por que então lhe teria feito uma censura?

Contudo, isso não impede a estranheza do leitor diante da aparente dureza das palavras de Nosso Senhor, bem como pelo fato de tratar Nossa Senhora de “mulher”. Como ocorre com a Revelação divina, as coisas que à primeira vista são difíceis de serem entendidas, encerram verdades lindíssimas, que os santos e os melhores intérpretes das Sagradas Escrituras souberam desvendar, como é o caso desta passagem do evangelho.

Ela esmagará a cabeça da serpente

O primeiro ponto a se considerar é que tanto no Antigo quanto no Novo Testamento o apelativo “mulher” não é menosprezo. Nosso Senhor empregou-o em outras ocasiões, por exemplo, num contexto de grande respeito e ternura. Ao se dirigir a Maria Madalena, logo após a Ressurreição: “Mulher, por que choras? Quem procuras?” (Jo 20, 15). Igualmente ao responder à Samaritana: “Mulher, acredita-me, vem a hora em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém” (Jo 4, 21). À cananeia que pedia a libertação de sua filha atormentada pelo demônio: “Ó mulher, grande é tua fé! Seja-te feito como desejas” (Mt 15, 28). E novamente à sua própria Mãe, do alto da Cruz, ao confiá-la a São João, o discípulo amado: “Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19,26).

Além do mais, em se tratando do milagre retumbante que dá início à vida pública de Nosso Senhor, pode-se supor que Ele tenha querido deixar claro que Maria é a Nova Eva, e que nesse episódio começaria a se cumprir o anúncio feito à serpente: “Porei inimizades entre ti e a Mulher, entre a tua descendência e a d’Ela. Ela te esmagará a cabeça” (Gn 3, 15).

Por sua vez, a frase “que tenho eu contigo?” — que algumas versões da Bíblia traduzem embaraçadamente por “isso compete a nós?” — é uma locução hebraica que apresenta muitos matizes, demarcando, porém, uma divergência de vistas ou a não aceitação de uma solidariedade, ou ainda a recusa de uma proposta (cf. Jos 22, 24; Jud 11, 12; 2 Reis16, 10; Mt 8, 29).

No episódio das Bodas de Caná, a locução é associada à frase “minha hora ainda não chegou”, a qual não se refere ao início de sua vida pública, mas à consumação de sua Paixão no alto do Calvário, como em muitas outras passagens do Evangelho.

A sequência dos fatos mostrou, pelo contrário, que o ministério de Jesus já tinha começado. Ao objetar, nosso divino Redentor quis assegurar-se de que sua Mãe Santíssima estava ciente de que, fazendo Ele publicamente um milagre grandioso, não podia mais ficar na penumbra de sua vida privada, mas enveredar numa trajetória que o levaria até o alto da Cruz.

O comportamento de Nossa Senhora, indicando simplesmente aos servidores fazerem o que Jesus ordenasse, mostra que Ela aceitava fielmente o fato de que o Verbo de Deus não se fez carne apenas para ficar na sua casa de Nazaré, mas para realizar a obra da Redenção por meio de sua Paixão e Morte, à qual desde já consentia com tanta energia que Ela própria tomava a iniciativa do gesto que lhe dava início.

Jesus não hesitou em operar o milagre pedido

Desde uma perspectiva diferente, São Bernardo retira do episódio das Bodas de Caná uma

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