PERGUNTA – Penso que há algo de errado no significado que está sendo dado à palavra Páscoa. Ouvi três padres falarem, em missas de sétimo dia, que o defunto fez a "páscoa". Isso talvez seja para aliviar os familiares e dizer de modo mais leve que o parente morreu. Além do mais, como nessas missas nunca falam sobre o purgatório, ao dizerem que o defunto fez a "páscoa" parecem dizer que todos vão para o Céu. Pelo que me lembro de minhas aulas de catecismo, a Páscoa de Moisés e a de Nosso Senhor Jesus Cristo são algo muito diferente do que esses padres falam.
RESPOSTA – Os padres referidos pelo missivista repetem a ideia que a maioria das pessoas fazem da Páscoa. Seu relato me fez lembrar um artigo que encontrei no site do MST e uma reportagem de um rabino que li na BBC Brasil, dizendo que a Páscoa comemora a passagem do Mar Vermelho, pela qual o povo judaico libertou-se da escravidão no Egito a caminho da Terra Prometida. Esse falso conceito nasce da interpretação errada que fazem do significado da palavra hebraica "pessach", quer dizer "passagem": no caso dos israelitas da Bíblia, da escravidão à liberdade; no caso de Jesus Cristo, da morte para a vida, pela sua Ressurreição. Logo, segundo eles, nós também faríamos, ao morrer, nossa "páscoa", nossa "passagem" desta vida terrena para a vida eterna.
Essa interpretação de "pessach" é errada a dois títulos. Primeiro, porque é incompleta e, depois, porque o episódio ao qual se refere não é a travessia do Mar Vermelho. É o que veremos a seguir, começando pelo segundo aspecto e relembrando aos leitores suas lições de catecismo quando eram crianças.
Como todos se lembram, apesar das nove pragas que Deus enviou pela mão de Moisés, o Faraó permaneceu com o coração duro e não permitiu a saída do povo judeu do Egito, porque significava perder a mão de obra escrava para suas grandes construções. Porém, "o Senhor disse a Moisés: Flagelarei ainda com uma praga ao Faraó e ao Egito, e, depois disso, vos deixará partir, e até vos constrangerá a sair" (Ex 11, 1). Moisés disse então ao povo: "Estas coisas diz o Senhor: À meia-noite passarei pelo Egito" (Ex 11, 4). Essa é a primeira menção que a Bíblia faz da Páscoa.
No início do capítulo seguinte do livro do Êxodo, Deus dá a Moisés e Aarão as instruções para o povo: um cordeiro ou um cabrito por família e por casa, sem defeito, macho e de um ano, deve ser imolado no crepúsculo e deve ser comido assado no fogo, com pães sem fermento e ervas amargas; ele deve ser comido apressadamente, em pé, com as sandálias postas, o cajado na mão e os rins cingidos. Porque é "a Páscoa (isto é, a passagem) do Senhor" (Ex 12, 11).
Detalhe fundamental: o sangue do cordeiro deve ser posto sobre as ombreiras e sobre a moldura das portas das casas onde for comido. A sequência do relato indica a importância fundamental desse símbolo:
"Nessa noite eu passarei pela terra do Egito, e ferirei (de morte) todo o primogênito na terra do Egito, desde os homens até aos animais, e exercerei a minha justiça contra todos os deuses do Egito, eu que sou o Senhor. O sangue, porém, será para vós um sinal (em vosso favor) nas casas em que morardes, pois eu verei o sangue e passarei adiante, e não haverá para vós a praga destruidora, quando eu ferir a terra do Egito" (Ex 12,12).
O que realcei com letras em negrito justifica o que escrevi acima, ou seja, que a interpretação hoje comum, além de errar no episódio histórico ao qual se refere, é incompleta. Porque "páscoa" significa mais precisamente que Deus "passou adiante", sem ferir de morte as casas que tinham o sangue do cordeiro no seu lintel. Essa tradução é tanto mais correta, quanto o original da Bíblia emprega dois verbos diferentes para referir-se à "passagem" de Deus: usa o verbo "pâshá" para designar a passagem do Senhor além das casas dos judeus no momento da décima praga, e o verbo "ábar" para referir-se à passagem do Senhor pela terra de Egito para ali exercer sua vingança.
A língua inglesa, nesse particular, é mais precisa que nossas línguas latinas, pois traduz "pessach" por "Passover", que significa, literalmente, passar (topass) além ou por cima (over). Essa tradução destaca o fato profético de que o sangue do cordeiro faz com que a justiça divina poupasse os eleitos e punisse os malvados.
De tal maneira esse acontecimento foi o evento decisivo para a libertação dos judeus, que o próprio Deus mandou que a Páscoa fosse celebrada anualmente com uma festa que durava toda uma semana e se iniciava com uma ceia na qual se comia um cordeiro acompanhado de pães sem fermento e ervas amargas, como Nosso Senhor fez com os Apóstolos durante a Última Ceia.
A Páscoa era para os israelitas a festa por excelência, sob todos os pontos de vista: histórico, religioso, social, familiar e até agrícola, pois servia de ocasião para oferecer solenemente a Deus as primícias da colheita. Servia de grande reunião nacional, pois levava todas as famílias que pudessem até o Templo de Jerusalém, depois de terem-se purificado de toda mácula, o que obrigava os judeus a acertar as contas com a Lei.
Mas a festa não estava destinada apenas a comemorar o passado. Ela figurava ao mesmo tempo as coisas do futuro, em particular as sublimes realidades da Nova Lei. O cordeiro pascal representava, por antecipação, com traços muito claros, o verdadeiro Cordeiro de Deus, o Salvador destinado a "tirar o pecado do mundo" (Jo 1, 29), o Qual, "como um cordeiro diante do que o tosquia, não abriu a sua boca" (Is53, 7), deixou-se crucificar e verteu seu Sangue para a remissão dos pecados (Mt26, 28) e, como o cordeiro do Egito, não teve nenhum de seus ossos quebrados na Cruz (Jo 19, 36).
O cordeiro pascal que servia de alimento para a viagem figurava ainda o Divino Salvador nutrindo os homens com sua própria carne: Agnus Paschae deputator (o Cordeiro pascal designado), como lembrou Santo Tomás de Aquino na sequência Lauda Sion. As ervas amargas representam, por sua vez, as penas e trabalhos do cristão, dos quais ele não é dispensado pelo alimento eucarístico. E, de modo ainda mais perfeito que um israelita, o cristão não pode participar do banquete, ou seja, da comunhão pascal, se não se encontra purificado de toda mancha mortal.