São Bernardo e seus Monges tomam posse da Abadia de Claraval. Sob a gravura lê-se: "São Bernardo, capelão da Virgem Maria, descendia da casa dos Duques de Borgonha". — Das Crônicas abreviadas da Borgonha, manuscrito francês do século XV.
NA IGREJA E NO ESTADO VÊ-SE SUA MÃO POR TODA A PARTE"
Celso da Costa Carvalho Vidigal
Exasperado com as intromissões de certo Monge nos negócios eclesiásticos da França, o Rei Luís VI escrevera ao Papa Honório II: "Pois que! Nada de bom se poderá levar a cabo, nem no Estado, nem na Igreja, sem sua intervenção? Vê-se sua mão por toda a parte; pretende adiantar-se aos Bispos, aos Concílios, e ao próprio Legado Pontifício. Dentro em breve, se não se lhe puser obstáculo, usurpará as prerrogativas dos Cardeais e do Papa".
E realmente não seria de recear que isso viesse a acontecer com um Monge cuja popularidade era tão grande que, certa vez, o próprio Imperador Romano, Conrado, homem de talhe hercúleo, não se envergonhou de erguê-lo nos braços para protegê-lo contra os entusiasmos de uma incontável multidão de admiradores fanatizados?
Alarmado, o Papa mandou comunicar ao Religioso seu desejo de que ele não mais se ingerisse em assuntos estranhos ao seu estado, e que dali por diante seria muito melhor que não mais saísse de seu Mosteiro.
Honório II fora, porém, mal informado, e seu sucessor revogou essa ordem. Pois o Monge que desenvolvia tamanha atividade e gozava de tanta popularidade se chamava Bernardo de Claraval.
"Deixai vossa carne à porta"
Nascido provavelmente no ano de 1090, no castelo de Fontaine-lês-Dijon, Bernardo era de ascendência nobre, e teve cinco irmãos e uma irmã: todos foram Religiosos e todos morreram em odor de santidade. Um dos irmãos era casado, mas, de comum acordo, ele e sua mulher abandonaram o mundo e tomaram hábito. Conta-se que a mãe do Santo Doutor era profundamente piedosa e teria sido quem imprimiu sentimentos tão cristãos em seus filhos. A santidade dessa família teria sido então o justo prêmio de uma mãe que sabia que a melhor maneira de educar os filhos é incutir neles, antes de tudo, o amor a Deus.
Bernardo terminou os seus estudos por volta dos dezenove anos. Sua mãe não havia deixado este mundo dois anos antes. Chega para o nosso Santo a fase das lutas mais difíceis, pois o forte apoio que até então tivera já lhe faltava, e a idade em que se achava oferecia naturalmente sérios obstáculos para sua perseverança. Diz-se que certo dia, diante de uma tentação inadvertida, o jovem fidalgo teve a imprudência de condescender com a mesma: os instantes seguintes viram-no mergulhar em um charco próximo para que a provação corporal — a água estava gelada e ele foi retirado dali em estado de semi-inconsciência — lhe devolvesse a liberdade de espírito que perdera ao ser tentado.
Aos vinte anos, Bernardo se deixou dominar de todo pelo poder da graça. Ele próprio chama a essa época de sua vida a de sua conversão, embora não se possa tomar a palavra no sentido corrente, pois que anteriormente já era muito piedoso. Deve-se admitir que sua conversão tenha sido antes o rompimento definitivo dos laços que ainda o prendiam à terra. Esse rompimento foi total. "Vossa carne é o que trazeis do mundo: deixai-a à porta", diria mais tarde aos que ingressavam na sua Ordem.
"Perinde ac cadaver"
São Bernardo já viera ao mundo quando em 1098 foi fundado o Mosteiro de Cister pelo beneditino Roberto de Molesme. De acordo com uma interpretação extremamente rigorosa da regra de São Bento, os seus Monges deviam acrescentar a pratica dos três votos habituais de castidade, pobreza e obediência, os mais severos jejuns, a rudeza do vestuário, o trabalho manual pesado, o sacrifício do sono em longas vigílias, e um silêncio que só podia ser quebrado por razões muito fortes. Santo Estevão Harding, seu terceiro Abade, nascido na Inglaterra, viu prestes a se extinguir a Comunidade que dirigia. Impressionado por uma epidemia que grassou dentro do Mosteiro, receou que a existência de Cister já não se enquadrasse nos desígnios divinos. Dirigindo-se então a um dos Monges, que estava em agonia, ordenou-lhe que em virtude da santa obediência perguntasse a Deus, tão logo chegasse à sua presença, se a permanência da reforma cisterciense ainda Lhe era agradável, e que em seguida voltasse para dar a resposta. O Religioso prometeu que assim o faria, achando muito natural a injunção de seu Superior.
Poucos dias mais tarde, achando-se Santo Estevão em oração, apareceu-lhe o Monge falecido. Segundo a narração de Calmette e Henri David ("Saint Bernard", Paris, 1953), o Abade começou "com delicada polidez monástica por se informar do novo estado de seu súdito. O outro sugere em poucas palavras a sua beatitude e, passando ao objeto preciso do encontro, se apressa a anunciar que a posteridade dos cistercienses será como a de Abraão, quer dizer, tão numerosa como as estrelas. E em breve, acrescenta, um pequeno grupo de homens moços e nobres virá bater à porta do Mosteiro". O Céu já havia decidido o destino maravilhoso de Bernardo de Fontaine e de seus trinta companheiros.
Um Monge enfermo dirige os destinos do mundo
Ingressando em 1112 na Abadia de Cister, tinha o Santo diante de si um magnífico programa de vida: as constituições, ainda novas, elaboradas por São Roberto de Molesme. Soube ele não somente cumpri-las à risca, como ainda chegar a rigores sobre-humanos no esforço de dominar o próprio corpo. Certo dia em que durante uma refeição lhe servem azeite em lugar de água, o jovem Religioso nem percebe a diferença de gosto; ao fim de um ano de vida monástica não sabe se sua cela é coberta por um teto plano ou abobadado; ignora se a parte da capela onde se recolhe várias vezes ao dia é iluminada por janelas. Se algum de seus amigos vai visitá-lo, ele o recebe à porta com o capuz cobrindo olhos e ouvidos, deixa-o falar sem procurar reconhecê-lo, e em seguida se despede depois de uma pequena exortação piedosa.
Após a sua admissão em Cister, a Ordem começa a se expandir: em 1113 é fundada a Abadia de Ferté-sur-Grosne, em 1114 Pontigny, e em 1115 Claraval. Tendo professado em 1113, dois anos mais tarde o Santo foi promovido à dignidade abacial, escolha que seria de surpreender se não fosse devida à perspicácia de Santo Estevão Harding, que soube ver naquele jovem Monge o homem providencial. Em junho de 1115, Bernardo deixa Cister com doze de seus companheiros, entre os quais seus irmãos mais velhos, Guy e Geraldo, e se dirige para uma região pantanosa e cheia de florestas, chamada até então o Vale do Absinto. O novo Abade mudou-lhe o nome para Vale Claro, Claraval.
Extremamente exigente com os seus súditos, de quem pedia a máxima generosidade na vida religiosa, São Bernardo não diminuiu em nada o rigor para com a sua própria natureza. Por isso em breve adoeceu, e de 1118 até sua morte, ou seja, durante trinta e cinco anos, suportou graves e penosas provações corporais, o que não impediu a sua ingente atividade política. Assim é que de 1123 até 1153 os destinos do mundo civilizado foram dirigidos por um homem doente: doente mas santo.
Narrar toda a atividade de São Bernardo seria escrever um livro. Não iremos até lá Vamos nos limitar a alguns de seus empreendimentos de que resultaram grandes vitórias para a Igreja.
Qual o Papa legítimo?
No dia em que morreu Honório II, uma parte do Sacro Colégio, que temia a ascensão ao trono pontifício do Cardeal Pedro Leonis, de origem judaica, apressou-se a proceder à eleição do Papa que tomou o nome de Inocêncio II.
Algumas horas depois, os outros Cardeais se reuniam para por sua vez eleger a Pedro Leonis, que passou a se chamar Anacleto II.
Inocêncio II, não podendo se manter em Roma, foi obrigado a procurar refúgio na França. Ali o Rei Luís VI convocou um Concilio para julgar dos méritos pessoais dos dois pretendentes ao trono apostólico, já que as condições canônicas de ambas as eleições pareciam discutíveis. Consultado pelo Monarca — o mesmo que outrora se queixara amargamente do Santo — Bernardo aduziu razões decisivas em favor de Inocêncio II, terminando por dizer que não convinha, além do mais, que Anacleto, sendo descendente de judeus, ocupasse a cátedra de Pedro. Os Bispos reunidos e o Rei aceitaram unanimemente o juízo do santo Monge.
Em seguida, São Bernardo dirigiu-se para a Inglaterra afim de concluir sua missão fazendo com que Henrique I também se submetesse ao Papa legítimo. Por sua vez, com maior dificuldade, São Norberto, Arcebispo de Magdeburgo, conseguiu a adesão de Lotario III, Rei da Alemanha. Assim, com o apoio dos três maiores Príncipes da Cristandade medieval, estava vitoriosa a causa de Inocêncio II; e isso graças ao Abade de Claraval.
Prender as raposas enquanto pequenas
Gautier de Mortagne, Bispo de Laon, pediu a São Bernardo que interviesse contra Pedro Abelardo por motivo do tratado que este havia escrito sob o título de "Theologia Christiana". Recusando-se de início a fazê-lo, não resistiu o Santo Doutor às instâncias de seu amigo e futuro biógrafo, Guilherme de Saint-Thierry.
Em primeiro lugar, foi procurar Abelardo com o intento de obter dele uma retratação; não o conseguindo, foi decidido que ambos se defrontariam em um Concílio a reunir-se em Sens no domingo de Pentecostes de 1140. Condenado o herege pelos Padres Conciliares, São Bernardo se empenha em sua condenação pelo Papa. Escreve a Inocêncio II: "Se Vossa Santidade se dignasse impor silêncio a mestre Pedro, proibisse-lhe ensinar e escrever, suprimisse seus livros semeados de dogmas perversos, arrancaria dos santuários os espinhos e as sarças; a messe de Cristo teria então força para crescer, florescer e frutificar". E em outra carta: "Agora cabe o vós, sucessor de Pedro, julgar se aquele que ataca a Fé de Pedro deve achar um refúgio junto à cátedra de Pedro. Lembrai-vos dos deveres de vosso cargo... Se Deus suscitou em vosso tempo o furor dos cismáticos foi a fim de que eles fossem abatidos por vossos cuidados. Para que nada falte à vossa gloria, eis agora as heresias que se levantam... Pai bem-amado, prendei enquanto ainda são pequenas, as raposas que devastam a vinha do Senhor."
Pouco depois o Abade de Claraval via atendidas as suas instâncias. "Em virtude da autoridade dos santos cânones", Inocêncio II fulminava Abelardo e sua obra, impondo-lhe, "na qualidade de herético, um perpétuo silêncio", e lançando a excomunhão contra "todos os seguidores e defensores de seu erro". A condenação assim completa provocou a submissão pública de Abelardo. A ortodoxia triunfou e São Bernardo foi o grande artífice dessa vitória.
A segunda Cruzada
Em fins de 1145, resolvendo empreender uma expedição à Terra Santa a fim de prevenir o perigo árabe que renascia, Luís VII pediu a São Bernardo que fosse o pregador da Cruzada. O Santo Abade, que pouco antes havia escrito ao Papa Eugenio III para rogar-lhe que o dispensasse de toda ocupação estranha aos interesses específicos de sua Ordem, respondeu ao Soberano francês que não o atenderia sem uma ordem formal do Pontífice. Sem demora, Luís VII se dirigiu ao Papa, que, depois de alguma vacilação, acabou por designar Bernardo como arauto da Igreja para pregar a Cruzada.
Diante disso, o Santo não hesitou em reconhecer que essa era sua missão, e lançou-se imediatamente ao trabalho. Pregando por todos os lugares, vencendo resistências e dificuldades de toda ordem, conseguiu galvanizar a Cristandade em um movimento que só malogrou porque Luís VII, homem fraco, consentiu em levar consigo sua esposa, a frívola Eleonor de Aquitânia, que se fez acompanhar de toda uma corte de poetas, trovadores e de tudo o que havia de mais indicado para abater o ânimo guerreiro dos cruzados.
São Bernardo e a reforma da Igreja
Sabemos que a reforma da Igreja, iniciada com os Papas que se convencionou chamar da escola gregoriana e que tiveram seu mais ilustre representante em São Gregório VII, foi propriamente o que provocou o grande fervor religioso da Idade Média. Assim como, para o indivíduo, reformar a alma redunda em um aprimoramento de todo o seu ser, também para a sociedade a reforma da alma, que é a Igreja Católica, produz naturalmente o aperfeiçoamento de toda a vida social. Deve-se, pois, ver no movimento gregoriano o ponto de partida do grande esplendor que se verificou em todos os setores da atividade humana no século XIII. Ora, não seria ousado dizer que, no segundo quartel do século XII, o centro da reforma da Igreja passou a ser São Bernardo de Claraval.
O historiador da escola gregoriana, A. Fliche, se empenhou em traçar um paralelo entre São Gregório VII e São Bernardo: "O traço dominante do caráter de Gregório VII é uma fé ardente iluminada por uma piedade inteiramente mística; São Bernardo recebeu também a grande e suave ferida do amor e se uniu ao Verbo feito esposo de sua alma. Morro em mim, mas vivo em Jesus, confiava Gregório VII a seu amigo Hugo de Cluny, confidente de seus mais secretos pensamentos. Conhecer Jesus, e Jesus crucificado, eis o resumo de minha filosofia, diz por sua vez São Bernardo. Gregório VII foi na Idade Média um dos promotores da devoção à Virgem, Rainha de todos os Anjos, honra e glória de todas as mulheres, salvação e nobreza de todos os eleitos, e é ainda a Virgem quem inspirará a São Bernardo sublimes acentos... Poder-se-ia citar outros traços de parentesco espiritual. A semelhança dos dois temperamentos explica em certa medida porque São Bernardo, no dia em que toma contacto com o mundo exterior, obedece às diretivas traçadas meio século antes pelo Pontífice que ligou o seu nome à reforma da Igreja".
Não nos resta espaço suficiente para enumerar os feitos da ação reformadora do Abade de Claraval. De maneira geral, ele se empenhou, com uma combatividade que hoje se diria descaridosa, na reforma dos Mosteiros de Cluny, lutou com energia pela santificação dos costumes do Clero, atacou a vaidade mundana que contaminava muitos eclesiásticos, escreveu contra os propugnadores da indicação dos Bispos por senhores leigos, e foi defensor emérito da primazia da Sé Romana sobre todas as outras igrejas. Todo o zelo com que se empenhava nessas atividades ainda não se compara com o que Bernardo manifestava em seu próprio Mosteiro de Claraval, aplicando-se em conservar o verdadeiro espírito de mortificação e o amor a Deus nas almas de seus súditos. Quem sabe que a Igreja considera as Ordens contemplativas a maior fonte de graças de que dispõe, percebe quanta razão tinha o Santo Doutor de querer estear solidamente sua ação externa nas orações e sacrifícios da Comunidade que regia.
VERDADES ESQUECIDAS
PROVIDENCIAIS AS DIFICULDADES DA ESCRITURA
S. TOMÁS DE AQUINO
Segundo o que diz Santo Agostinho no livro "De Doctrina Christiana", dispôs Deus utilmente que a verdade na Sagrada Escritura se manifeste com alguma dificuldade. É isso de fato útil para afastar o tédio, pois que maior é a atenção para as coisas mais difíceis, e a atenção impede o fastio. E do mesmo modo se afasta a ocasião de soberba, quando o homem só com dupla dificuldade pode perceber a verdade da Sagrada Escritura. Finalmente, tal dificuldade protege a verdade da Fé contra a irrisão dos infiéis; daí dizer o Senhor no Evangelho de S. Mateus (VII, 6): "Não queirais dar o santo aos cães", e Dionísio admoestava a Timóteo que conservasse incontaminadas dos imundos as coisas santas.
E assim se evidencia ser conveniente que a verdade da Fé seja transmitida na Sagrada Escritura sob vários sentidos. ("Questiones quodlibetales", quodlibetum 7, q. VI, art. 14, ad 2um.).