"A Liberdade, armada do espectro da razão, fulmina o Fanatismo e a Ignorância": gravura do tempo da 'Revolução Francesa. — A Revolução Francesa foi eminentemente laicista, e dela nasceu essa monstruosidade sem precedente na história, que é o mundo laico contemporâneo. Conceber de maneira leiga uma Cristandade, isto é, uma ordem temporal fundada em Nosso Senhor Jesus Cristo, é uma contradição nos termos. Não é dar ganho de causa ao Divino Salvador, mas ao espírito da Revolução.
HUMANISMO INTEGRAL - II
Pe. A. Messineo, S. J.
O apelo contínuo ao conceito evolutivo da história faz surgir espontaneamente a questão de saber se a teoria de Maritain não tem algum ponto de contacto com o historicismo contemporâneo, acerca do qual nos detivemos nos artigos precedentes. A resposta a este embaraçoso quesito deverá decorrer da ponderação objetiva do pensamento do filósofo francês. Cumpre, pois, expô-lo tal como foi consignado em seus escritos.
De tudo quanto se disse até aqui, não resulta claro se o processo evolutivo da história arrasta no seu incessante vir a ser progressivo, além dos aspectos contingentes da realidade, também os princípios que são o fundamento da concepção do homem e das suas relações com o mundo exterior e interior, com as sociedades por ele mesmo constituídas, ou divinamente fundadas, e com as suas instituições. No rigor da expressão, nas mutações ocorridas nas três etapas da história já descritas deveria ser tida como implícita uma evolução ideológica. Se, de fato, uma consciência mais viva de si mesmo é efeito de conquistas consistentes na descoberta daquilo que está escondido no mistério do homem, parece lógico inferir daí que a mutação tenha advindo também no campo das concepções da vida, das quais depois resultariam os vários aspectos assumidos pelo humanismo.
Tal conclusão não contém em si mesma nada que possa prejudicar uma visão exata do progresso da história. Para pronunciar a respeito dela um juízo positivo ou negativo, tudo depende de verificar se a mudança é concebida como um desenvolvimento interno da verdade, melhor compreendida nos seus postulados implícitos mediante a reflexão racional, ou se a verdade, e os princípios por ela sufragados como perenes exigências da racionalidade, ficam imersos no vir a ser histórico, tornando-se relativos como a própria história. Ninguém pode negar o progresso das idéias e um maior aprofundamento de muitas exigências humanas, mas o historicismo não consiste em afirmar o progresso advindo, senão em considerar relativa a verdade, dando valor ao fato ou aos fatos históricos como critério de vida. Quem aceitasse a segunda alternativa viria sustentar um humanismo historicista.
Para resolver o problema assim delineado, Maritain não deixou lugar para nossas deduções pessoais, e desse modo nos livrou do perigo de uma interpretação subjetiva de seu pensamento. De fato, ele julga e afirma que a toda época histórica corresponde um determinado conceito típico das relações entre graça e liberdade, e por consequência um tipo essencialmente diferente de civilização cristã, plasmado segundo as modalidades históricas em conformidade com as quais os valores evangélicos se temporalizaram (1). A última expressão é, na verdade, um tanto obscura e ambígua. O seu significado se esclarecerá melhor mais adiante.
Os tipos de civilização — prossegue Maritain — que a evolução histórica sucessivamente produz, como efeito de um conceito típico que varia, são essencialmente diferentes um do outro: tão diferentes que uma cristandade concebida segundo as condições históricas do tempo presente deve ser compreendida de modo essencialmente distinto da medieval (2). A lição é clara e nítida, se se considera aquela diferença essencial repetidamente ressaltada. De fato, uma diferença essencial não importa somente numa mudança nos elementos de superfície ou contingentes de uma fase de civilização, mas supõe principalmente uma diferença substancial de concepções e de princípios. Isto é tanto mais verdadeiro quanto, em se tratando de realizações sociais, nas quais a civilização se manifesta preponderantemente, as concepções e os princípios constituem para elas a forma, o elemento interno, vivificador e modelador, a cujo impulso se plasma o concreto e a época histórica. Se, portanto, a cristandade contemporânea deve ser concebida de modo essencialmente diferente da medieval, é necessário também admitir uma evolução nas concepções e nos princípios, que, por sua vez, deverão ser essencialmente diferentes dos admitidos nas épocas precedentes.
Não se quer com isto afirmar que Maritain tenha caído no relativismo historicista. Outras partes de suas obras se oporiam a tal interpretação de seu pensamento. Todavia, não se pode também negar a ambiguidade em que ele incide ao lançar os fundamentos do seu humanismo integral. Nem tal ambiguidade é reduzida a clareza nas suas subsequentes formulações; diremos, pelo contrário, que é agravada. Documentemos esta afirmação. Para avaliação da doutrina católica, Maritain adota um critério ao qual também recorreu o historicismo modernista, a saber, que é necessário distinguir nela — e de modo particular para o pensamento cristão medieval — aquilo que é essencialmente cristão daquilo que se deve ao momento histórico (3). Tal critério discriminativo, que assume o valor universal de princípio, desde que seja considerado válido para qualquer época se engrena perfeitamente na teoria do processo evolutivo da história.
Realmente, se cada período de civilização é informado por uma concepção essencialmente diferente, estas várias concepções, se se quer manter a imutabilidade da verdade, devem ser atribuídas ao momento histórico, — de onde resulta a necessidade de distinguir na própria doutrina cristã um aspecto contingente e caduco, e um aspecto fixo e permanente. Mas se o princípio se insere perfeitamente no sistema, qualquer um pode divisar-lhe a periculosidade, quando aplicado em toda a sua extensão, como pretendeu fazer o historicismo modernista, que por esse caminho obteve o resultado de esvaziar o dogma de seu conteúdo, submetendo-o ao vir a ser da história.
Parece que Maritain percebeu o perigo e, para evitar a insidiosa armadilha do relativismo, recorreu ao conceito de analogia, válido em muitos campos da especulação abstrata, mas de aplicação dúbia aos princípios da conduta humana e às leis que governam as relações sociais. Moral análoga é moral incompreensível, particularmente no núcleo das normas que se dizem pertencentes ao direito natural. Estas, como regras que emergem da natureza e do próprio ser racional, poderiam, enquanto tais, ser análogas se tanto a natureza quanto a racionalidade fossem análogas nos vários períodos da história. Por mais que possa parecer invalida no plano racional, esta nos parece ser a posição de Maritain.
De acordo com o seu modo de ver, o processo histórico evoluiria através de realizações sucessivas analogicamente diversas, no sentido de que, enquanto os princípios permaneceriam imutáveis, a realidade histórica daria origem a tipos de civilização semelhantes entre si apenas de modo análogo, em parte idênticos e em partes diferentes (4). O expediente, todavia, não se afigura adaptado ao escopo. Se com ele se consegue pôr a salvo a alegada diferença essencial dos vários tipos de civilização, já que os termos análogos a supõe necessariamente, não se vê, porém, como se possa salvar a fixidez dos princípios básicos de todo verdadeiro humanismo.
Com efeito, os conceitos análogos são tais porque se referem a objetos ou sujeitos que, em concreto, diferem entre si precisamente nos princípios constitutivos e essenciais, se bem que essa diferença não seja tão extensa que dê lugar à equivocidade. Por exemplo, o conceito de ser é análogo, mas, em todos os graus em que se realiza, a descensão se verifica mediante uma contração que se apresenta com as características de uma diferença substancial; coisa que igualmente acontece com os conceitos que exprimem o gênero, que nas espécies se tornam concretos diferenciando-se qualitativamente. Ora, se o fundamento da analogia é uma diversidade essencial nos princípios constitutivos, sua aplicação aos vários tipos de civilização não impede de concluir, logicamente e com plena legitimidade, pela diferença substancial dos princípios que informam a estes últimos.
A conclusão é confirmada pelo próprio Maritain. Depois de ter dito que os princípios não variam, nem mudam as supremas normas práticas da vida humana, mas se aplicam de modos essencialmente diferentes, que correspondem a um mesmo conceito apenas segundo uma similitude de proporções, acrescenta ele textualmente que "uma nova cristandade, nas condições da idade histórica em que entramos, embora encarnando os mesmos princípios (analógicos), deve ser concebida conforme um tipo essencialmente (especificamente) distinto do medieval" (5). Nesse trecho, de propósito citado literalmente, é fácil distinguir como a analogia se transferiu dos princípios. Os próprios princípios chegam, pois, a ser análogos e, por conseguinte, essencialmente diferentes nos diversos tipos de civilização, causados pelo fatigante caminhar da história, cujo fluxo evolutivo se estenderia desse modo a todos os aspectos da realidade humana, tanto às concepções quanto às realizações práticas. Deve-se, então, concluir que o humanismo integral está apoiado num historicismo integral? Não ousamos responder à pergunta senão de modo dubitativo. Pareceria que sim, mas outras posições teóricas de Maritain nos acautelam contra qualquer precipitação na interpretação do seu pensamento.
(1) "Umanesimo integrale", Roma, 1946, p. 66.
(2) Ibidem, p. 114; "Du régime temporel et de la liberté", Paris, 1933, p. 123.
(3) "Umanesimo integrale", ed. cit., p. 18.
(4) Ibidem, p. 112; "Du régime temporel", ed. cit., p. 121 e ss.
(5) "Umanesimo integrale", ed. cit., p. 114.
N. R. - A primeira parte deste artigo foi reproduzida no ultimo n° de "Catolicismo".
VERDADES ESQUECIDAS
A melhor esmola é a que se dá ao nobre empobrecido
São Pedro Damião
Do opúsculo IX — sobre a esmola:
Grandes louvores tece a Escritura à esmola, e exalta a misericórdia acima de todas as virtudes. Porém sobretudo merece louvor aquela misericórdia que se compadece do rico caído em pobreza.
Nobres há, de ilustre progênie, na maior indigência. Vestem-se como cavaleiros, frequentam os palácios, ocupam por sua linhagem as melhores posições, mas os oprime em casa a miséria. Embora os atormente a fome, antes querem morrer que mendigar, receiam que se conheça sua penúria, pejam-se de confessar suas necessidades, e enquanto os mendigos, para obter maiores lucros, apregoam sua miséria e a exageram, estes pobres envergonhados ocultam-na por temor de serem apontados como pobres.
...Quão grande seja a recompensa deste gênero de esmola, manifesta-o o Senhor quando diz pelo Salmista: "Bem-aventurado o que entende a respeito do necessitado e do pobre" (Sl. 4). Nos mendigos que vagueiam maltrapilhos pelas ruas não há muito que entender, e basta vê-los; mas há outros pobres em relação aos quais é necessário entender em seu interior a miséria que no exterior se oculta. — (Migne, P. L., CXLV, 207-22 — apud "Joyas de los Santos Padres", P. Guillermo Ubillos, S. J., editor E. Subirana, Barcelona, 1925, p. 286).