Foi no ano da Salvação de 1467,
à hora de Vésperas
da festa do glorioso São Marcos...
Giovan Tinelli di Olivano
As origens da cidade de Genazzano, no Lácio, remontam à época dos imperadores romanos. Ela distava poucas milhas de Roma e havia sido escolhida pelo patriciado e pela corte imperial para a instalação de suas "villae", suntuosas mansões rurais adornadas de templos idolátricos, anfiteatros, circos e banhos termais, cujas ruínas testemunham ainda hoje seu antigo fausto. Em certas datas do calendário romano, os vastos jardins ou os arredores destas "vilas" serviam de palco para festas e jogos pagãos (ludi ginnici) que acompanhavam os rituais em honra de divindades às quais era atribuída a fecundidade dos campos, e de outros deuses cujo culto era apenas um pretexto para as impudicas celebrações que aí se desenrolavam. Uma destas celebrações perversas realizava-se no dia 25 de abril — a data que hoje nos é tão cara no calendário católico — em honra, da deusa Flora (ou Vênus). Para ela acorriam pessoas de toda gama social do Lácio, desde os homens livres até os escravos, do patrício ao plebeu. Assim sucedia anualmente até que a Providência suscitou o braço do Imperador Constantino para o extermínio destes ignominiosos costumes e subseqüente advento do sopro vivificador da Igreja Católica.
Entre os documentos que atestam as doações que o filho de Santa Helena fez à Igreja conta um, lavrado durante o pontificado de São Silvestre, que se refere ao "Fundum Caesareanum situm Via Praenestina distans ab urbe millia XXX". Tratava-se exatamente da localidade depois chamada Genazzano, que distava trinta milhas de Roma (46 km).
Entretanto, não foi no tempo de São Silvestre, mas no de seu Sucessor imediato, São Marcos, que se aboliram em Genazzano todos os traços de paganismo e se depuraram sapiencialmente os antigos costumes ali vigentes, substituindo-lhes o conteúdo. E para incrementar decisivamente o florescimento do Cristianismo entre a população local mandou-se edificar ali, no século III, ao lado das ruínas dos templos e das estátuas das falsas divindades, uma primeira igreja, dedicada a Maria Santíssima sob a terna invocação de Mãe do Bom Conselho. Com o correr dos anos, a localidade povoou-se consideravelmente, suas igrejas tornaram-se numerosas e foi preciso dividi-la em paróquias. Na Idade Média as Ordens Religiosas fizeram-se presentes, e duas delas deitaram raízes em Genazzano. A dos Franciscanos estabeleceu-se fora dos muros, do lado onde existira a vila imperial; os Agostinianos ergueram no extremo oposto da cidade um modesto convento e uma pequena capela, dominando o lago que se espraiava junto ao que restava dos banhos romanos; o Clero secular cuidou das paróquias que estavam dentro dos muros.
Porém, ao longo dos anos, o primitivo templo erigido em honra da Mãe do Bom Conselho passou a dar sinais de falta de conservação, o que, acrescido à exigüidade de seu recinto, foi levando os fiéis a preferir para as funções solenes as igrejas maiores e mais ricas que iam surgindo sob a proteção dos muros da cidade (o Papa Martinho V deu muito impulso à construção de três suntuosos templos dedicados respectivamente a São João, São Paulo e São Nicolau). Do tempo de sua antiga preeminência restava-lhe apenas o nome, um bonito baixo-relevo em mármore representando a Virgem Mãe do Bom Conselho, e o privilégio de ser o ponto de afluência dos que vinham de perto e de longe para pedir graças, que Maria Santíssima maternalmente lhes prodigalizava.
Entrementes, uma nobre família romana, os Colonna, recebera através de um casamento o senhorio da cidade de Genazzano e dela fizera sua principal praça forte, construindo ali uma fortaleza muito bem guarnecida e adornada, que conserva até nossos dias o aspecto de sua primitiva grandeza. Os Colonna mantinham também o jus patronatus de "Santa Maria del Buon Consiglio".
Assim, no ano de 1356, cerca de um século antes da aparição que introduziria Genazzano nos anais da Igreja, o Príncipe Pietro Giordan Colonna resolveu confiar a mais antiga igreja da cidade e a respectiva paróquia aos cuidados da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, a fim de que ficasse assegurada aos fiéis a devida assistência pastoral e fossem providenciados os necessários reparos do edifício sagrado.
Logo que os Frades agostinianos puderam tomar posse da paróquia começaram um fecundo trabalho apostólico entre os fiéis, que repercutiu na elevação moral e religiosa de toda a cidade, desde os seus Príncipes até o povo mais simples. A árvore sendo boa deu logo bom fruto, e um número considerável de leigos de ambos os sexos enfileirou-se na Ordem Terceira de Santo Agostinho, que havia sido instalada junto à igreja como um convite a uma maior perfeição.
Enquanto a assistência espiritual progredia, as dificuldades financeiras pareciam impedir o que era tão desejado pelos devotos da Mãe do Bom Conselho, ou seja, a reforma cada vez mais urgente de seu vetusto templo.
Mas esta grande Senhora, que permite as tempestades para provar que pode circundá-las com seu braço invictíssimo, e que tem para cada circunstância o conselho sapiencial que atende e até supera sobejamente as necessidades dos homens, deu mostras mais uma vez de que suas vias não são como as dos homens. Assim, escolheu Ela uma terciária agostiniana para promover um prodígio de ordem sobrenatural que traria como conseqüência a restauração tão desejada e, mais ainda, um novo e incomparável esplendor à igreja erigida em honra do Bom Conselho.
"Un miracolo! Un miracolo! Evviva La Madre Nostra"
Petruccia de Nocera havia ficado viúva em 1436, e seu marido, que tinha sido o procurador dos Agostinianos, deixara-lhe um modesto pecúlio. Vivendo sozinha, pois não tivera filhos, consagrava a maior parte de seu tempo à oração e a executar pequenos serviços na igreja da Madona do Bom Conselho. Doía-lhe ver o deplorável estado em que se encontrava o recinto sagrado, e rezava com fervor para que ele pudesse ser restaurado. Por fim, resolveu tomar ela mesma a iniciativa. Depois de obter a licença dos Frades, e de entregar todos os seus bens para o custeio das obras de restauração, fez com que estas se iniciassem, contando com a ulterior ajuda dos fiéis para levá-las a termo.
O plano para uma reforma de grande fôlego já estava feito e bem estudado: primeiramente dever-se-ia atender aos reparos de que a capela de São Biagio necessitava e que eram os que causavam maior preocupação; depois, avançando sobre o terreno da residência de Petruccia, por ela doado "per l'esaltazione e rialzamento della chiesa di Santa Maria del Buon Consiglio", alargar-se-iam todas as dimensões da velha igreja, reedificando-lhe toda a estrutura. Porém, uma vez iniciado êste árduo empreendimento, Petruccia, que já contava 80 anos de idade, constatou que o montante financeiro que havia oferecido mal dava para os primeiros trabalhos e que, hélas, ninguém se apresentava para auxiliá-la como era de esperar. Assim, no momento em que se esgotaram todos os seus recursos, as novas e ainda grosseiras paredes da capela de São Biagio elevavam-se ironicamente a pouco mais de um metro do solo... Então os conhecidos da pobre terciária começaram a lançar-lhe em rosto a imprudência que havia cometido; não faltaram os debiques dos que antes se diziam seus amigos, e houve até os que a repreenderam severamente em público. A todos contentava-se ela em dizer: "Não deis, meus filhos, tanta importância a esta infelicidade aparente, pois eu vos asseguro que antes de minha morte, a Santíssima Virgem e o nosso Santo Pai Agostinho terminarão a igreja começada por mim".
Estas palavras cheias de confiança não conseguiam deter por muito tempo o sarcasmo dos que só queriam ver o andamento palpável das obras, que pareciam indefinidamente paralisadas. No entanto, o que Petruccia afirmava, tinha algo de profético, pois naqueles dias a Mãe do Bom Conselho, na grandeza de seus desígnios, havia traçado um novo plano de graças, do qual não iria estar excluída a empresa da sua humilde e confiante filha.
A Santa Igreja, na sua sabedoria toda ela feita de matizes, não abolira aquela festa que os pagãos, como dissemos, celebravam anualmente em Genazzano, a 25 de abril. Substituira-lhe, apenas, o conteúdo, e o povo que se reunia outrora para entregar-se a prazeres impuros passara a festejar na mesma data o querido Padroeiro da cidade, São Marcos. Assim, logo na manhã desse dia era na Igreja da Madona do Bom Conselho que começavam as solenes celebrações com uma Missa de grande pompa, presentes as autoridades eclesiásticas e civis, bem como um incontável número de fiéis que convergiam de todo o Lácio. Ao ato religioso seguia-se uma grande feira montada na "Piazza di Santa Maria", em frente ao templo, na qual eram armadas pitorescas barracas em que se vendia toda sorte de produtos, e palanques de diversões para entreter sadiamente aquela numerosa gente durante o resto do dia.
No ano de 1467 a festa começara com a freqüência e o brilho de costume. Era um dia de sábado. Tudo ia transcorrendo normalmente e o povo já se aglomerava em frente à igreja da Mãe do Bom Conselho, para as Vésperas. A única nota dissonante era a obra desagradavelmente inacabada de Petruccia, a boa terciária durante todo o dia andara de lá para cá, sempre muito serviçal nos ofícios que lhe cabiam, e respondendo com Paciência a um ou outro que a interpelava ainda a respeito de seu "pretensioso empreendimento". Aproximadamente às 4 horas da tarde começaram todos a perceber os acordes de uma melodia agradabilíssima, que parecia vir do Céu. Os ouvidos se apuraram para nada perder destes maravilhosos sons, e as vistas se puseram a perscrutar de onde podiam eles vir. A multidão logo foi levada a olhar para cima dos telhados e das torres das igrejas. Bem no alto, no céu primaveril e poético do Lácio, começaram a ver uma nuvem branca, que refulgia de mil raios luminosos e vinha baixando ao som da melodia excepcionalmente bela. Pouco a pouco ela desceu até a igreja da Mãe do Bom Conselho e pousou junto à parede mais recuada da capela inacabada de São Biagio. De repente os sinos da velha torre começaram a tocar por si mesmos, e logo mais os imitaram, num uníssono miraculoso, os de todos os campanários de Genazzano. Em questão de segundos um grupo numeroso de pessoas já se encontrava dentro do recinto limitado pelas paredes da capela em reforma, e esquecidos dos estorvos do material de alvenaria que ali se acumulava puderam admirar de perto aquela dádiva celeste. Os raios da nuvenzinha cessaram de brilhar e esta se foi desvanecendo e oferecendo à vista encantada de todos aqueles espectadores um belíssimo objeto: era uma pintura que representava Nossa Senhora trazendo ternamente o seu Divino Filho nos braços.
Não é difícil supor que a feira, seus palanques, seus divertimentos e tudo o mais havia ficado num completo olvido. Todos acorriam ao local da aparição, onde já se ouviam, num transbordamento de alegria caracteristicamente popular, brados como estes: "Evviva Maria! Evviva la Madre nostra del Buon Consiglio!" enquanto outros gritavam: "Un miracolo! Un miracolo!" Os que já haviam saído de volta para suas cidades e aldeias retornaram a Genazzano, participando do mesmo júbilo, pois o repicar inesperado dos sinos lhes havia chamado a atenção e tinham podido ver de longe a misteriosa nuvem baixando sobre a igreja dos Agostinianos.
Toda sorte de pessoas angustiadas e provadas, bem como os doentes, os cegos e os coxos que ali se achavam, desfilaram com ardente fé ante a Imagem trazida pelos Anjos, e logo começou esta generosa Mãe a dispensar as consolações e as curas tão desejadas, cuja memória foi perpetuada através dos documentos que eram cuidadosamente lavrados pelas autoridades eclesiásticas locais.
A notícia espalhou-se por toda a província e para além das divisas do Lácio. Os milagres fizeram acorrer multidões fervorosas; algumas cidades formavam num enlevo unânime longas procissões que trilhavam as estradas da Península para venerar aquela sagrada Imagem. Ninguém vinha de mãos vazias; inúmeras esmolas somavam-se agora como uma resposta à confiança que Nossa Senhora inspirara à nossa inabalável Petruccia. Suas esperanças concretizavam-se afinal e a "Madonna del Paradiso", como a haviam chamado no primeiro momento, incluía nas misteriosas intenções dessa aparição o atendimento do pedido da terciária agostiniana. As obras por ela iniciadas foram retomadas então com o vigor, e em breve a igreja adquiriu um aspecto majestoso. Na capela por tanto tempo inacabada os artistas e os artesãos uniram seus talentos para construir um rico e solene altar, todo ele concebido em função da parede junto à qual havia pousado o afresco miraculoso. Fundiram-se vinte lâmpadas de prata, que foram postas a arder em honra da Virgem Santíssima. No local da antiga casa paroquial ergueu-se um vasto convento para dar abrigo a uma numerosa comunidade de Eremitas de Santo Agostinho, encarregados de zelar pelas funções religiosas e dar assistência às multidões de peregrinos.
Quanto àquilo que a graça lhe havia inspirado, Petruccia já podia dizer "Nunc dimittis"; sua obra estava realizada por Maria e com Maria. Restava-lhe apenas aguardar a hora de cerrar os olhos para êste vale de lágrimas e contemplar diretamente os de sua Dulcíssima Advogada e Mãe. Quando ela faleceu, os Padres agostinianos depositaram seus restos mortais dentro da igreja, bem próximos à sagrada Imagem. Junto ao altar, do lado do Evangelho, afixaram uma lápide lembrando alguns traços de sua santa vida. E desde então o povo chamou-a de Beata.
Dizei: não terá pousado aqui uma imagem, vinda do céu?
Alguns dias depois da aparição, a "Madonna del Paradiso" quis dar conhecimento a seus novos devotos da verdadeira origem do maravilhoso afresco. Para isto Ela revelou altos desígnios seus, intimamente ligados ao penoso estado em que se achava uma pequena porção da Igreja, sujeita ao domínio de infiéis.
No meio de um dos grupos de peregrinos que vinham de Roma, chegaram a Genazzano dois personagens que provocavam estranheza pelas roupas que trajavam e pelos traços fisionômicos que os identificavam como estrangeiros. Um deles era ainda moço e o outro de idade mais madura.
Tendo chegado a Roma no início daquele ano, dizendo-se provenientes da Albânia, haviam contado a respeito de sua viagem uma singular história, à qual ninguém queria dar crédito, tomando-os alguns até por loucos. Vejamos o que narravam Giorgio e De Sclavis, que assim se chamavam eles.
No mês de janeiro de 1467 morrera o último e grande monarca dos albaneses. Jorge Castriota, mais conhecido como Scanderbeg — nome que lhe davam os turcos — havia dado altas provas de fidelidade à Igreja na luta contra o império otomano, cujo poderio ameaçava esmagar a pequena nação cristã. Desde a mocidade tomara parte esse varão católico em violentos combates contra o Crescente; em um deles, em Croja, capital da Albânia, derrotara fragorosamente o próprio sultão Amurat II. Ao longo de uma série de campanhas vitoriosas, nas quais passara a fio da espada numerosas guarnições maometanas que há muitos anos hostilizavam seus compatriotas, Scanderbeg ocupara várias fortalezas, distribuídas pelas diversas regiões da Albânia. Depois, com seu pequeno exército de soldados montanheses bem adestrados, ficara à espera de novas investidas turcas. Elas não se fizeram esperar e um número incontável de infiéis assolou novamente o território cristão.
Acontece que já desde algum tempo o povo albanês, tão cedo convertido ao Cristianismo, se expunha a influências deletérias do cisma bizantino, e havia oscilado várias vezes entre a adesão à Santa Sé e o afastamento dela, numa triste imitação do exemplo de Constantinopla. Assim, quando naquele mês de janeiro de 1467 morreu o fiel Scanderbeg, chamado ao Céu para receber o prêmio de tantas batalhas, a nação albanesa sofreu afinal, de modo catastrófico, as conseqüências de tão prolongada inconstância, e tibieza. Os exércitos turcos, sentindo-se livres de quem era chamado o "fulminante leão da guerra", investiram contra a Albânia e ocuparam uma a uma todas as suas fortalezas, cidades e províncias.
Somente Scútari, uma pequena praça ao norte do país, próxima à confluência dos rios Drina e Bojana e onde habitavam nossos dois albaneses, ainda não fora conquistada, porque contava com uma guarnição veneta que o próprio Scanderbeg havia chamado pouco antes de sua morte. Entretanto a sua capacidade de resistência era limitada e esperava-se de um momento para outro, com a sua queda, a derrocada final da Albânia cristã. Diante destas perspectivas, iniciou-se o triste êxodo daqueles que não queriam pôr em risco sua fé e suas mais caras tradições; todos procuravam emigrar às pressas para os países vizinhos, onde a fidelidade à Santa Igreja não os expusesse a toda sorte de vexações e à morte. Giorgio e De Sclavis estudavam também as possibilidades de compartilhar desta prudente fuga, mas havia algo que ainda os retinha em Scútari.
Tratava-se de uma pequena igreja considerada o principal santuário marial de todo o reino albanês, porque ali se venerava uma imagem de Nossa Senhora que descera misteriosamente do céu, duzentos anos antes. Segundo a tradição ela viera do Oriente, e, tendo derramado inúmeras graças sobre toda a população, sua igreja se tornara o principal centro de peregrinação da Albânia. O próprio Príncipe Scanderbeg mais de uma vez se havia apresentado naquele santuário para as súplicas ardentes com que preparava, os seus combates, e voltara aos pés da santa Imagem com seus soldados vitoriosos, para venerá-la cheio de profundo agradecimento.
Desgraçadamente, porém, a devoção à Virgem Santíssima minguara juntamente com a adesão à Santa Sé: nem se compreenderia, de outro modo, a catástrofe albanesa. Segundo a expressiva lamentação de um cronista da época, "os jovens e as moças já não tomavam gosto em florir o altar de Maria em Scútari", e agora o seu santuário aguardava a hora de sua pavorosa destruição.
Eis a grande aflição de Giorgio e De Sclavis: deixar a pátria no infortúnio em que estava, abandonando com ela aquele dom celestial, o grande tesouro da Albânia.
Vertendo lágrimas penetradas de confiança filial, eles se dirigiram um dia ao velho templo e se apresentaram àquela Santa Mãe, rogando em sua dolorosa perplexidade que Ela lhes desse o bom conselho de que necessitavam. Pois lhes parecia que era preciso preservar a sagrada Imagem da fúria maometana e ao mesmo tempo procurar no exílio a segurança para suas próprias almas.
Naquela mesma noite, a Consoladora dos aflitos inspirou aos dois, em sonho, o que esperava deles o seu desvelo maternal. Ela mandou que preparassem todo o necessário para sair daquela terra ingrata que nunca mais tornariam a ver. Acrescentou que o milagroso afresco ia se retirar de Scútari para escapar à profanação, e que se dirigiria para um outro país a fim de continuar derramando ali suas bênçãos e graças, das quais a Albânia se tinha tornado indigna. Por fim, ordenou-lhes que seguissem a Imagem para onde quer que esta fosse.
Na manhã seguinte, os dois amigos já estavam prontos e foram ao santuário, que encontraram imerso na atmosfera de imponderáveis que precede os acontecimentos sobrenaturais. E ainda sem saber o rumo que os fatos iam tomar, ajoelharam-se diante da bem-amada pintura. Então, a um dado momento, puderam ver, com inexprimível emoção, que ela começava a destacar-se da parede onde se havia apoiado dois séculos antes na sua misteriosa vinda do Oriente, e, tendo deixado seu nicho, pairava um momento no ar e era envolvida de repente por uma nuvem branca. Através desta nuvem, porém, ela continuava visível a seus dois filhos. Depois, atravessando a porta do templo, a Imagem peregrina começou a afastar-se de Scútari, viajando docemente pelos ares, a uma boa altura do solo.
Ela ia avançando em direção ao Mar Adriático, numa velocidade que permitia aos dois viandantes segui-la. Assim caminharam estes cerca de 24 milhas, até chegarem ao litoral. Sem deter seu curso, a Imagem abandonou aquelas terras e avançou sobre as águas do mar, continuando a levar atrás de si os fiéis Giorgio e De Sclavis, que agora andavam sobre as ondas, como seu Divino Mestre no lago de Genezaré. Os vagalhões endureciam-se debaixo de seus pés e as águas pareciam-lhes um vasto e ondulado cristal.
Quando caía a noite, a nuvem misteriosa, que de dia os preservava dos ardores do sol com sua sombra benéfica, guiava-os com sua luz como acontecera aos judeus com a coluna de fogo que lhes apareceu no deserto. Assim viajaram dia e noite até chegarem às costas da Itália; então seguiram adiante, na rota que lhes era indicada, atravessando montanhas, rios e vales. Por fim chegaram à vasta planície do Lácio, onde puderam avistar depois de algum tempo as torres e as cúpulas de Roma. A nuvem avançou até alcançar as portas da cidade e, de repente, desapareceu diante de suas desapontadas vistas.
Então, à maneira dos Reis Magos, quando não viram mais a estrela que os guiava, Giorgio e De Sclavis começaram a andar por toda a cidade, numa busca apreensiva, perguntando de igreja em igreja se ali havia pousado uma imagem vinda do céu. À medida que estas tentativas resultavam vãs, começaram a repetir sua estranha indagação pelas ruas da Cidade Eterna — deparando às vezes com algum de seus compatriotas que ali se encontravam também como recém-emigrados — mas não obtinham tampouco alguma informação que os pudesse reconfortar.
Esse o estranho relato que aqueles dois curiosos personagens insistiam em fazer à gente romana, e que levantara em torno deles um clima de desconfiança e a suspeita de que estivessem desvairados.
Nunca mais os dois albaneses perderam de vista a santa Imagem
Foi então, naqueles mesmos dias, que correu por toda Roma a espantosa notícia de que aparecera uma imagem de Nossa Senhora nos céus de Genazzano, ao som de uma belíssima melodia, que tinha pousado junto à parede de uma igreja em reformas, e tudo o mais que o leitor já sabe. Para Giorgio e De Sclavis brilhava afinal uma luz de esperança, e para lá se dirigiram ansiosos por saber se era mesmo a Santa Mãe de Scútari que, em sua sagrada imagem, Se dignava dar-lhes notícia de seu santo paradeiro.
E quando puderam aproximar-se do local onde repousava a pintura miraculosa, cercada de muitas flores e velas, e dos primeiros mármores com os quais os artesãos já cuidadosamente a aureolavam, constataram com indizível alegria que era exatamente aquela que abandonara as margens do Drina e do Bojana e que os poupara da perseguição turca. Prosternando-se em sinal de profunda veneração e de intenso afeto, ergueram seus louvores à Mãe que os iluminara e guiara com seu bom conselho, e deram-Lhe graças pelo favor que lhes concedia de poderem vê-La naquele novo trono escolhido por seu altíssimo beneplácito.
Embora alguns habitantes de Genazzano se apegassem à idéia inicial de que a Imagem vinha diretamente do Paraíso — "Madonna del Paradiso", dissemos, foi como a chamaram a princípio — e sentissem dificuldade em aceitar a seqüência dos fatos como os albaneses os narravam, tanto as pessoas de prol da cidade quanto a nossa piedosa Petruccia deram-lhes desde logo pleno crédito. As cuidadosas investigações feitas posteriormente levantaram um cabedal de provas de que eles diziam a verdade. Isso tudo, porém, não embaçou nem por um momento o enlevo de nossos dois peregrinos, que se fixaram definitivamente na cidade e nunca mais se afastaram de sua Senhora, casando-se ali e pondo sua vida e sua descendência sob a proteção da Mãe do Bom Conselho.
Foi assim que Maria Santíssima, com a humilde participação de uma piedosa terciária agostiniana, de um lado do Adriático, e de dois fiéis albaneses, do outro, transladou sua misteriosa Efígie da infeliz Albânia para uma cidadezinha bem próxima do centro da Cristandade. A partir do novo santuário, que Ela não escolhera, ao acaso, quis derramar sobre o mundo um novo caudal de graças, arquitetonicamente imploradas sob a invocação de Mãe do Bom Conselho. Algumas destas graças tiveram um alcance indubitavelmente histórico.
De fato. A mais de um título se deve dizer — e propomo-nos mostrá-lo mais detidamente em outra oportunidade — que a santa Imagem, que não quis permanecer sob a dominação turca, não foi alheia ao esmagamento das forças do Crescente em Lepanto e às portas de Viena, nessas duas grandes batalhas promovidas pelo zelo e a fortaleza de São Pio V e do Bem-aventurado Inocêncio XI.
Ponderando os gravíssimos riscos aos quais a Igreja e a civilização católica então estavam expostas, bastariam estes dois lances da História para nos encher de uma admiração enlevada e de uma profunda gratidão à Santíssima Mãe do Bom Conselho, tão digna dos louvores que a mesma Igreja Lhe canta:
"Maria dux, Maria lux, et stella non erratica".