Plinio Corrêa de Oliveira
Lady Diana Cooper descansa junto a uma estátua no parque do Castelo de Chantilly, histórica mansão dos Príncipes de Condé. Esta fotografia foi tirada em 1945, quando Lorde Cooper, seu esposo, exercia as funções de embaixador britânico em Paris. Lady Cooper, geralmente admirada na Capital francesa por sua inteligência e fineza, mantinha nos salões da embaixada britânica um ambiente de alto gosto e distinção, sendo uma das figuras centrais da vida social parisiense de então. Ela encarna, pois, uma aristocrata segundo o gosto e o estilo do século XX, ou seja, o que a 1inguagem corrente chama uma grã-fina.
A estátua representa, pelo contrário, um aristocrata segundo o estilo e gosto do século XVIII. O contraste é flagrante e exprime muito mais do que uma simples diferença de concepções estéticas. Ele manifesta dois modos de ser inteiramente diferentes, e bem representativos das concepções e do gênero de vida das elites sociais europeias em duas épocas diversas.
No gentil-homem do século XVIII a expressão da fisionomia, o porte, o gesto, o traje exprime a ideia de que a existência de elites sociais não só é justa, mas desejável, e que a superioridade de cultura, de maneiras e de gosto dos seus membros, deve naturalmente manifestar-se com um máximo de precisão, realce e requinte.
Pelo contrário, a aristocracia do século XX está camuflada. Seu traje é, em tudo e por tudo, a de uma trabalhadora manual. A posição é elegante, e exprime como que involuntariamente uma distinção que já não ousa afirmar-se plenamente a luz do dia; uma distinção que, por assim dizer, pede ao transeunte vulgar desculpas de existir: desculpas tão humildes que, para não chocar demais a distinção se vela nos trajes de uma camponesa.
Não é bem este, aliás, o sentido da crescente proletarização das maneiras, do ambiente de vida e dos trajes das elites "grã-finas" em todo o ocidente?
J. B. Pacheco Salles
Vimos, no artigo anterior, que a Justiça Social é frequentemente considerada apenas um ponto de elevação do standard de vida das classes trabalhadoras. Este erro de inspiração materialista, foi expressamente condenado por Leão XIII, na Encíclica "Graves de Communi", onde se afirma que a questão social é, antes de mais nada, uma questão moral e religiosa. A este propósito, tivemos ocasião de verificar que a situação espiritual das massas é, presentemente, de uma gravidade muitas vezes mais aguda do que a situação material, por deficiente que esta possa ser. E, conforme assinalamos, o pior é que quase ninguém tem olhos para ver semelhante decadência espiritual, antes pelo contrário, ela é agravada pela ação dos demagogos de toda a espécie — e não são só os políticos que fazem demagogia.
Observamos, contudo, que não é só deste ponto de vista que a Justiça Social é encarada. É preciso reconhecer que outros têm, sobre o assunto, concepções muito mais profundas. São os reformadores sociais, os que acham que existe algo de errado no próprio fundamento da convivência humana, de maneira que as desordens, as injustiças e os sofrimentos que afloram a superfície da vida social nada mais seriam que os sintomas de um mal orgânico. Isto removido, assentadas as relações sociais sobre outras bases, aqueles distúrbios cessariam por si mesmos. Isto não se fazendo, tudo o mais não passariam de paliativos, radicalmente incapazes de solucionar o problema.
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Entra aqui a questão das classes sociais. Já vimos que, em face desta questão, só há duas atitudes consistentes: a que admite a existência das classes, qualitativa e hierarquicamente diferenciadas, e a que só considera justa uma sociedade sem classes, absolutamente igualitária. Como demonstramos, uma posição intermediária, que admitisse a existência das classes, colocando-as, porém, no mesmo pé de igualdade, é intrinsecamente contraditória, pois vai contra a própria razão de "classe", transformando-a em simples especialização funcional ou profissional. Mas, tais especializações não são classes sociais; são o resultado inelutável da divisão do trabalho, tanto mais complexa quanto maior for o adiantamento técnico da sociedade, e devem existir necessariamente, quer numa sociedade com classes, quer numa sociedade sem classes. "Classe" é uma categoria essencialmente axiológica. Esvaziada de sua significação hierárquica, não é mais nada.
Devemos observar que a situação concreta das sociedades contemporâneas (excluídas as que se encontram por traz da cortina de ferro), não se enquadra em nenhuma das posições mencionadas nem mesmo na pseudoposição intermediária. Oficialmente, a lei não reconhece a existência de classes, e os Estados se organizam como se elas não existissem. Contudo, tanto a lei como os Estados criam condições nas quais as classes sociais podem, até certo ponto, vicejar, desenvolver-se, e até conseguir uma grande influência sobre os negócios públicos. Ninguém ignora que os Estados Unidos, organizados fundamentalmente sobre a igualdade, presenciaram o florescimento de uma verdadeira aristocracia, que tem tido influência decisiva sobre os destinos deste país. É preciso não esquecer que o próprio presidente Roosevelt, que inaugurou uma nova fase da democracia americana, de feição nitidamente trabalhista, era um expoente dessa aristocracia. Em tal regime, pois, as classes sociais não são nem autorizadas, nem reconhecidas, mas também não são proibidas; no máximo, sofrem alguns contratempos e distorções. Estabeleceu-se, assim, uma defasagem radical entre o mundo oficial, de um lado, com suas entidades abstratas, e o mundo da realidade social concreta, liminarmente ignorado pelo primeiro, vivendo e desenvolvendo-se marginalmente, sem qualquer espécie de "status". Esta absoluta carência de "status" para as classes sociais, tornou muito mais sensível a sua diferenciação, por causa de sua flagrante contradição com os postulados igualitários; e, também, servia para introduzir critérios perfeitamente injustos de discriminação social, entre os quais avulta o dinheiro, ao mesmo tempo que possibilitava a rápida ascensão de camadas inferiores, a destruição de aristocracias tradicionais, e, portanto, a desorganização e a deformidade de toda a hierarquia social. Esta situação, que é o resultado necessário das abstrações políticas dos enciclopedistas, é evidentemente absurda, insustentável. A mera igualdade jurídica e formal não era suficiente, pois dela dimanavam não só as desigualdades justas, mas também as desigualdades injustas e até intoleráveis, como por exemplo a tirania dos argentários. Então, os Estados modernos começaram a marchar decididamente para a realização efetiva da igualdade social, o que só é possível mediante a destruição das classes e o mais completo intervencionismo socialista, para distribuir as riquezas. Alguns já atingiram o objetivo; outros se acham mais ou menos distantes; mas todos tendem para ele. Do lado de cá da cortina de ferro, a Inglaterra é que está mais próxima, pois no atual regime trabalhista não só a velha aristocracia, como as demais classes não mais têm oportunidade para sobreviver. É verdade que neste caminhar para a igualdade, vai-se a liberdade, entendida em seu sentido moral, enquanto capacidade que tem o homem de ser responsável pelos seus próprios destinos. Mas, igualdade e liberdade são termos entre si antagônicos, como teremos ocasião de ver. O reino da igualdade perfeita entre todos os homens é ideal que só encontra realização no reino do perfeito totalitarismo.
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Desta forma, o debate sobre a Justiça Social passa para o terreno fundamental da concepção mesma da sociedade e do Estado. Trata-se de saber se, no seu estado perfeito, a sociedade deve ser sem classes, ou se, pelo contrário, a ordem jurídica, e o próprio Estado devem levar em conta, oficialmente, a existência das classes. Em outras palavras, a disputa se trata entre o Estado aristocrático e o Estado igualitário-socialista. Posta nestes termos, a questão pode parecer estranha. Afinal de contas, o Estado aristocrático, nesta fase de desenvolvimento da consciência humana, parece ser uma velharia "Ancien Régime", definitivamente sepultada na poeira dos séculos. Ninguém seria adepto de semelhante regime, em nossos dias. Acontece, porém, que não há outra opção. Entre aquelas duas formas de Estado, só existem ordens político-sociais incoerentes e instáveis, em perpétua desagregação e recomposição, e que tendem necessariamente para um daqueles dois polos; e, se se afasta de um, é para cair, com mais ou menos rapidez no outro. Quem não quer o totalitarismo socialista, precisa querer o Estado aristocrático, se quiser ser lógico. Neste ponto, é importantíssimo que se procure ver claro, urge "travailler à bien penser", ou, do contrário, seremos arrastados no torvelinho das várias propagandas que atroam no mundo.
O sofisma radical do igualitarismo, que inspira o socialismo e o totalitarismo, consiste em confundir a igualdade genérica essencial de todos os homens, que outorga a todos certos direitos essenciais, com a igualdade absoluta, total e atual, de todos os seres humanos, individualmente considerados na sua existência concreta, como são iguais, por exemplo, os automóveis do mesmo tipo, fabricados em série. Ora, a essência genérica (no caso, seria mais próprio, aliás, falar-se de essência específica) é um certo MÍNIMO que identifica determinados objetos, autorizando-os, assim, a entrarem num mesmo gênero ou numa mesma espécie. Todos os objetos, onde se encontrar este mesmo MÍNIMO, pertencerão ao mesmo gênero ou espécie. Mas, note-se bem, trata-se de um mínimo. No homem, este mínimo está em ser "animal racional". Do ponto de vista deste mínimo, o surdo-mudo-cego, paralítico-imbecil de nascença é absolutamente igual a Goethe, pois um é tanto animal racional quanto o outro. Neste terreno, nenhum leva vantagem nem desvantagem. Acontece, porém, que, em Goethe, a racionalidade, que especifica o homem dos outros animais, dilatou-se e subiu aos mais altos páramos da genialidade, ao passo que, no surdo-mudo, etc., etc., a racionalidade não será nunca mais do que uma potência, perpetuamente impedida de se atualizar em seus atos próprios. Goethe, a partir do seu mínimo genérico, edificou toda a sua personalidade, própria, inconfundível, absolutamente característica, até atingir um MÁXIMO, nas culminâncias de seu gênio, pelo qual se tornou único, insubstituível. Outros gênios poderão existir, tão altos, e até superiores, mas Goethe é um só. Da mesma forma, partindo daquele mínimo, outros conseguem realizar o seu máximo nas artes, nas ciências, na política, na santidade. Como, também, outros descem mais abaixo e se perdem no malogro, no vício ou no crime. Assim, cada destino humano é único e insubstituível, e diante de Deus, cada homem é, de certo modo, único na sua espécie.
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Esta desigualdade da natureza humana já tinha sido expressa por S. Tomás de Aquino: "Natura autem hominis est mutabiles. Et ideo id quod naturale est homini potest aliquando deficere". (IIa. IIae., Q. 57, art. 2, ad. 1) [1]. E assim como a natureza humana pode "deficere", também pode e deve "perfici". Desta mutabilidade da natureza humana surgem as profundas desigualdades entre os homens, apesar de haver em todos aquele mínimo essencial, em que todos igualmente participam. Este duplo aspecto é muito bem ilustrado pelo Doutor Angélico, quando afirma: "dicendum quod hunc hominem esse servum, absolute considerando, magisquam alium, non habet rationem naturalem: sed solum secundum aliquam utilitatem consequentem, inquantum utile est huic quod regatur a sapientiori, et illi quod ab hoc iuvetur (...) Et ideo servitus pertinens ad ius genium est naturalis secundo modo, sed non primo." (IIa. IIae. Q. 57, art. 3, ad 2) [2]. A servidão, pois, não é contrária ao direito natural, embora, segundo uma consideração absoluta, a natureza não assinale diretamente que tal ou tal homem determinado deva ser escravo. Da mesma forma como (S. Tomás o diz no corpo do mesmo artigo) a natureza não indica expressamente que tal campo seja mais de Sicrano que de Beltrano. Segundo semelhante consideração absoluta, a propriedade privada também não é de direito natural. Acontece, porém, que "si consideretur quantum ad oportunitatem colendi et ad pacificum usum agri, secundum hoc habet quandam commensurationem ad hoc quod sit unius et non alterius" [3]. Eis aí: o homem, por ser dotado de razão e liberdade, não fica restrito ao universo das realidades físicas, mas, em busca de seu aperfeiçoamento, elabora todo um universo moral e jurídico, discriminando o que é conveniente e proveitoso do que é inconveniente e nocivo. "Considerare autem a liquid comparando ad id quod ex ipso sequitur, est proprium rationis. Et Ideo hoc quidem est naturale homini secundum rationem naturalem, quae hoc dictat [4]. Quer dizer que o que a natureza não faz de si mesma, falo a razão natural, e isto, por este motivo, também é natural, embora em outro sentido. No primeiro sentido, nem a propriedade privada, nem a servidão são naturais; mas, no segundo, ambas o são. Se a humanidade ficasse paralisada num estado absolutamente embrionário jamais surgiriam a propriedade privada, a servidão e todas as demais instituições, inclusive o Estado. De fato, todas estas coisas não são produzidas pela natureza, mas estabelecidas pela razão natural. Assim, pois, trabalhando a sua natureza mutável, o homem dá origem a todas as diferenças da escala social, o que acontece necessariamente, desde que ele tenha liberdade de dispor de seus destinos. Liberdade e igualdade são, pois, termos que se excluem, como havíamos dito. E é por isso, também, que todo igualitarismo tende a nivelar por baixo, de acordo com um certo mínimo, facilmente acessível. E este critério mínimo se fixou no trabalho, acessível não só ao último dos homens, mas até às bestas de carga. Seria interessante, além disso, salientar que toda a lei tem um certo caráter socializante, pois, por ser universal, destinada a todos, precisa visar a um certo mínimo, em que todos sejam homogêneos, como observa S. Tomás, quando estuda se a lei deve absolutamente coibir todos os pecados. É por isso que devem existir isenções e privilégios, bem como foros especiais, pois a igualdade de todos perante a lei não é possível sem violências. Entretanto, o desenvolvimento deste ponto levar-nos-ia muito longe.
Observemos, de passagem, que, a respeito da servidão, S. Tomás de algum modo segue as linhas gerais de Aristóteles: o escravo é um membro-separado de seu senhor. Assim, por exemplo, não pode haver justiça, no sentido mais estrito do termo, nas relações entre amo e servo, pois "ius, sive iustum, dicitur per commensurationem ad alterum" [5]. Ora, no caso do servo, "dicitur aliquid alterum non simpliciter, sed quasi aliquid eius existens. Et hoc modo in rebus humanis... servus est aliquid domini, quia est instrumentum eius (...). Et ideo... non est ibi simpliciter justum... sed est inter eos dominativum justum» [6], que é apenas "quoddam iustum", uma certa justiça (Cf. IIa. IIae., Q. 57, art. 4). Igualmente, quando trata se alguém pode ser castigado pelo pecado de outrem, S. Tomás assinala três casos em que isto pode acontecer. O primeiro é "quia unus homo temporaliter est res alterius, et ita in poenam eius etiam ipse punitur: sicut filii sunt secundum corpus quaedam res patris, et servi sunt quaedam res dominorum». (IIa. IIae., Q. 108, art. 4, ad 1) [7].
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Isto posto, vejamos agora, mais de perto, como é que uma natureza, como a do homem, pode ser mutável; em outros termos, como é que certas coisas, conservando a mesma essência e permanecendo dentro da mesma espécie, podem aperfeiçoar-se indefinidamente ou podem degenerar, de modo a estabelecer entre elas as maiores diferenças e desigualdades. Ainda em outras palavras, como é que uma mesma essência pode atingir graus diversos de perfeição, nos vários indivíduos em que ela se realiza.
Para bem compreender este ponto é preciso ter-se em vista que a essência está para a existência como a potência para o ato: "In omni autem creato essentia differt a suo esse, et comparatur ad ipsum sicut potentia ad actum" (Ia., Q. 54, art. 3) [8]. A essência é assim algo de potencial, de virtual, que precisa de ser atualizado. E, se não se trata de uma essência meramente ideal, puramente possível, já deve ter um mínimo de realização atual para poder subsistir como entidade concreta; a isto se chama substância: «Actio enim est proprie actualitas virtutis; sicut esse est actualitas substantiae vel essentiae» (Ia., Q. 54, art. 1) [91. Então, para que uma determinada essência seja plenamente atualizada, receba toda a perfeição que lhe compete, é necessário que, além da substância se acrescentem acidentes, uma vez que «forma accidentalis est propter completionem subjecti (Ia, Q. 77, art. 7) [10]. Em todo ser contingente a substância se distingue realmente dos acidentes, pois nenhuma criatura pode ser a sua própria perfeição. A perfeição é o ato último de uma coisa, e nada pode ser o seu próprio ato, a não ser o ato puro, que é Deus.
Ora, há certas coisas que, desde o início, recebem toda a perfeição que lhes é própria: são as naturezas imutáveis; outras, porém, precisam adquiri-la por um desenvolvimento progressivo, atualizando, assim, aquilo que nelas é potencial: são as naturezas mutáveis, aquelas que, inicialmente, têm apenas um mínimo de realização atual, e tudo o mais em estado virtual, — e é por isso que também podem degenerar, porque lhes falta a chave de cúpula. No primeiro caso, estão os anjos; no segundo, os homens. Comparando os anjos aos homens, diz S. Tomás: "Sic enim oportet intelligere distinctionem et ordinem spiritualium substantiarum, sicut est distinctio et ordo corporalium. Suprema autem corpora habent potentiam in sui natura totaliter perfectam per formam: in corporibus autem inferioribus potentia materiae non totaliter perficitur per formam, sed accipit nunc unam, nunc aliam formam, ab aliquo agente. Similiter et inferiores substantiae intellectivae, scilicet et animae humanae, habent potentiam intellectivam non completam naturaliter; sed completur in cis sucessive, per hoc quod accipiunt species intelligibiles a rebus. Potentia autem intellectiva in substantiis spiritualibus superioribus, Id est in angelis, naturaliter completa est per species intelligibiles, inquantum habent species intelligibiles connaturales ad omnia intelligenda quae naturaliter cognoscere possunt" (Ia., Q. 55, art. 2) [11]. Como se percebe facilmente pelo contexto a distinção não se aplica apenas à potência intelectiva, mas à natureza mesma dos anjos e dos homens.
Assim pois, quem verdadeiramente quiser saber o que é o homem deve olhar para o gênio ou para o santo, pois é neles que mais completamente se realiza a ideia mesma de "Homem", e não para o surdo-mudo, etc., etc., embora este tenha tudo o que é necessário para ser homem — mas apenas o necessário. Não devemos pensar que um ser que se aperfeiçoa se distancia de sua espécie. Esta seria uma concepção evolucionista e inteiramente reprovável. Pelo contrário, um ser que se aperfeiçoa mais afirma a sua identidade específica, mais se aproxima do tipo ideal da espécie.
Portanto, o igualitarismo nivelador e socialista de uma sociedade sem classes, não pode ser o objetivo de qualquer qualidade de justiça, mesmo que seja uma justiça social, pois é absolutamente contrário à ordem natural das coisas e impede o aperfeiçoamento e o progresso da humanidade. E' preciso, pois, optar pela outra alternativa. É o que veremos mais detidamente no próximo número.
1) "A natureza do homem é mutável. E assim aquilo que é mutável ao homem pode, às vezes, faltar."
2) "Digo que este homem, antes do que outro, ser servo, absolutamente considerando, não é exigido pela natureza: mas só por causa de alguma utilidade que daí se deriva, enquanto é útil que ele seja dirigido por uma pessoa mais sábia, e que esta seja ajudada por ele (...). E assim a servidão, pertencente ao direito das gentes, é natural do segundo modo, mas não do primeiro."
3) "Se se considera quanto à oportunidade de cultivar e ao uso pacífico do campo, segundo isto há uma certa razão de que seja de um e não de outro."
4) "Considerar alguma coisa comparando com o que dela decorre é próprio da razão. E isto também é natural ao homem, segundo a razão natural, que dita estas coisas."
5) "O direito, ou o justo, se diz em relação a outrem."
6) "Diz-se que algo é distinto de outro não simplesmente, mas como algo que a ela pertence. E, desta forma, nos assuntos humanos... o servo é algo do senhor, porque é seu instrumento (...) E assim... não existe aí o simplesmente justo... mas há entre eles o justo dominativo."
7) "Porque, temporalmente, um homem é coisa de outro, e assim também é punido pelo castigo que o atinge: assim como os filhos, segundo o corpo, são alguma coisa do pai, também os servos são alguma coisa dos senhores."
8) "Em todo o ser criado a essência difere da sua existência, e se compara a este como a potência para o ato."
9) "A ação é a própria atualização da virtude; assim como a existência é a atualização da substância ou essência."
10) "A forma acidental existe para a complementação do sujeito."
11) "Assim, pois, se deve compreender a distinção e a ordem das substâncias espirituais, como a distinção e a ordem das que são corpóreas. Os corpos mais perfeitos têm a potência, na sua natureza, totalmente realizada pela forma: mas nos corpos inferiores a potência da matéria não é totalmente realizada pela forma, mas recebe ora uma, ora outra forma, de algum agente. Igualmente, também as substâncias intelectivas inferiores, como as almas humanas, têm a potência intelectiva não completada naturalmente; mas é completada nelas sucessivamente, ao irem recebendo as espécies inteligíveis das coisas. Porém, a potência intelectiva nas substâncias espirituais superiores, isto é, nos anjos, é naturalmente completada pelas espécies inteligíveis, enquanto têm espécies inteligíveis conaturais para compreenderem todas as coisas que naturalmente podem conhecer."
Luiz Mendonça de Freitas
[Ver o quadro na própria página]
Divulgamos acima um quadro da intervenção do Governo Brasileiro em certas esferas da ordem econômica e social, em parte reproduzido de revista nacional especializada em assuntos econômicos. Por ele podemos ajuizar do vulto desta intervenção.
Analisemo-la rapidamente.
No que se refere a interferência do Governo da União no campo da Economia podemos distinguir duas maneiras de sua realização. Em certas atividades sua ação é exercida em caráter permanente: Cia. Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, Refinarias de Petróleo etc. Além desta ação a União controla ainda dois grandes grupos de empresas onde sua atividade é exercida em caráter supletivo e transitório. São, em primeiro lugar as empresas incorporadas em virtude de encampações levadas a efeito em anos anteriores, delas, algumas estão sendo negociadas ou talvez estejam mesmo em vias de liquidação ou venda. Outro grupo é constituído pelas empresas pertencentes a súditos do eixo, as quais, em virtude de recente legislação federal, também serão liquidadas ou por venda a cidadãos brasileiros ou por restituição a seus proprietários.
Limitando as observações apenas as atividades econômicas exercidas em caráter permanente verificamos quão consideravelmente têm elas se expandido, mesmo sem levar em conta o fato de que, através da Carteira de Importação e Exportação do Banco do Brasil, o Governo estabelece rigoroso controle do comércio externo brasileiro, podendo a sua vontade favorecer ou desencorajar o exercício de qualquer atividade industrial ou agrícola em nosso país.
Se, analisando a esfera econômica, podemos distinguir setores em que a atividade da União é exercida em caráter permanente e outros onde ela é provisória, o mesmo não poderemos dizer de sua intervenção no campo das Finanças, dos Serviços Públicos e da Previdência Social.
A análise das questões ligadas à Previdência Social nos obrigaria a estender em demasia estas considerações, motivo pelo qual, dada a importância da matéria, julgamos de bom alvitre dedicar-lhe um próximo artigo. Por ora chamamos a atenção para o fato de que a Previdência Social, louvável sob muitos aspectos, não deve substituir e monopolizar toda a Previdência, induzindo as pessoas a descuidarem-se de sua sorte futura e desencorajando a difusão da pequena Propriedade familiar.
Vamos nos limitar a algumas considerações sobre a prestação dos Serviços Públicos pelo Governo, em particular no que se refere as Estradas de Ferro.
Em 1950 as estradas de ferro encampadas acarretaram ao Governo Federal despesas, com subvenções e cobertura de déficits no valor de dois bilhões de cruzeiros, isto é, a décima parte do orçamento federal.
Não negamos que o Estado tenha direito e, em certos casos, até mesmo obrigação de chamar a si a prestação destes serviços, desde que os particulares se desinteressem ou sejam incapazes de o fazer. No entanto, o normal é que as atividades estatais sejam supletivas, auxiliando e não absorvendo as atividades privadas.
Sobre as estradas de ferro brasileiras e suas encampações sucessivas há um certo número de versões segundo as quais estas encampações têm resultado sempre das contingências provocadas por crises e dificuldades econômico-financeiras. Isto é verdade em grande parte das estradas em poder da União. Mas a questão tem ainda um outro aspecto que merece estudo.
As Estradas de Ferro agora insolváveis e deficitárias gozaram em épocas anteriores de melhores condições. Se crises vieram comprometer sua estabilidade, cumpre ao Estado estudar a questão e tomar as providências que o caso requer. Sabemos que uma Estrada não pode ser mantida apenas com o transporte de passageiros, pois o preço das passagens é inferior ao custo de manutenção dos serviços. O que permite manter uma Estrada, conservar e expandir os seus serviços é o transporte da produção agrícola ou industrial.
Se a produção das regiões servidas pela ferrovia decai, esta necessariamente sofre as consequências. Cumpre então verificar a causa desta decadência. Se, por exemplo, o motivo for o depauperamento dos solos, torna-se necessário estudar os meios de evitar que ele alastre para as terras que ainda não foram atingidas e protegê-las através de terraceamento, adubagem, irrigação, drenagem de pântanos etc., operações estas que, pelo vulto dos empreendimentos que requerem, muitas vezes ultrapassam o poder da atividade privada e, portanto, reclamam a intervenção do Estado.
Outras vezes as dificuldades da produção resultam da política econômica de outras nações, que desenvolvem em seus territórios a cultura de produtos que exportamos. Como exemplo temos o caso da borracha plantada na Malásia que aniquilou a produção brasileira.
Neste setor é também ao Governo que cumpre estabelecer através de acordos internacionais, garantias para o escoamento da produção brasileira, mantendo por esta forma o parque ferroviário nacional.
Vemos, assim, que as causas das dificuldades das nossas ferrovias são complexas e variadas. A encampação pura e simples não as resolve. Ao contrário sobrecarrega o Estado com dois grandes problemas: o da solução da situação econômica precária da região servida pela Estrada de Ferro, e o problema da administração da mesma Estrada.
Não seria mais razoável que, sempre que possível, em lugar de encampá-las, o Governo garantisse aos acionistas ou proprietários de Estradas o pagamento de um juro mínimo proporcional ao capital empregado, como aliás foi feito durante o Império? Estaria a União livre do ônus da administração e poderia impor aos diretores medidas tendentes a evitar os desperdícios, os quais aumentam assustadoramente quando a estrada é encampada.
"Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido a mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece contudo imutável aquele solene principio da filosofia social; assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar a coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social" — (Pio XI Quadragésimo Ano). São estas as reflexões que nos acodem à mente ao contemplarmos o quadro que ilustra este artigo.
A mera visão dele já mostra quão longe estamos da sã e verdadeira doutrina. Com uma Política dirigida no sentido da intervenção cada vez mais vasta da União em todos campos da ordem econômica e social, estamos sufocando as possibilidades da formação de um Estado orgânico, no qual as instituições surgidas, com o correr do tempo, das necessidades próprias de cada setor desta ordem social e econômica, viessem colaborar com o Governo na qualidade de sociedades menores e dele independentes, e não como simples departamentos estatais.
J. de Azeredo Santos
Em crônica publicada na "Tribuna da Imprensa" de 2 de fevereiro, sob o título de "As duas frentes", o sr Gustavo Corção procura mostrar como o mal do mundo moderno é a falta de vida interior, sendo a pessoa humana tragada pelo coletivismo totalitário em todos os aspectos da vida social.
Dessa obsessão comunitária não estariam livres certos movimentos católicos. Diz o sr. Corção: — "O movimento de Economia e Humanismo, mau grado sua excelente motivação, também não deixou de imprimir entre os seus seguidores um certo ativismo, uma certa mania do social, em detrimento da vida própria da alma". Não é para espantar que do ponto de vista social e político sejam certos católicos contaminados pelo vírus desse gregarismo satânico, pois do próprio ponto de vista religioso o mesmo mal lhes corrói as entranhas: — "O movimento litúrgico, por exemplo, — depõe o sr . Corção no artigo citado, — que em boa hora veio trazer ao fiel o sentimento (que estava amortecido) da sociabilidade sobrenatural no Corpo Místico de Cristo, deixou-se em muitos casos acompanhar de um desnecessário coletivismo que pretendia reduzir a atitude religiosa às formas comunitárias, em prejuízo da vida interior".
Para quem estuda a história moderna e contemporânea, fica patente que muito mais importante que seu aspecto social e político, vem a ser seu aspecto religioso. A própria questão social não passa, no fundo, de uma questão moral e religiosa. É o que diz o Santo Padre Pio XII com toda a clareza, em consonância com o que já afirmava Leão XIII em seu tempo: — "A questão social, queridos filhos, é sem dúvida também uma questão econômica: mas muito mais uma questão que se refere à regulação ordenada da sociedade humana, e, em seu sentido mais profundo, uma questão moral e, por conseguinte, religiosa." (Pio XII em alocução aos jovens da Ação Católica Italiana — 12-9-1948).
E o problema do totalitarismo de nossos dias não escapa a essa lei. Poderemos apontar suas origens na subversão religiosa a que se dá o nome de protestantismo. Com essa grande cisão da Cristandade, estava aberta a porta para outros erros, sabido como é que um abismo atraí outro abismo. Vejamos, por exemplo, a preparação remota da Revolução Francesa no galicanismo e no jansenismo, não somente no sentido teórico, pela formulação de falsos princípios para a vida interior e para a vida dos povos em relação à Igreja de Cristo, mas também do ponto de vista prático, pelo esfacelamento cada vez maior da unidade católica e pela consequente falta de coesão dos filhos da Igreja diante das ondas crescentes da impiedade. O problema do individualismo, do capitalismo liberal e do socialismo no fundo se reduz aos mesmos parâmetros. Essa libertação da criatura em relação ao seu Criador gera ao mesmo tempo a servidão totalitária. E só os ingênuos ou os excessivamente bem informados não percebem, ou fingem não perceber o engodo do exagero do social como arma contra os erros do individualismo, jogo de extremos que afinal não passa de um lançar de lenha na mesma fogueira. Já dizia o grande Blanc de Saint-Bonnet: — "O liberalismo nos leva à servidão. O individuo que deseja se libertar de Deus para seguir seus próprios caminhos, eis o liberalismo. E o Estado, que para imitar o individuo, quer se tornar independente das aristocracias e da Igreja, eis o despotismo. Os resultados são diversos, mas o ponto de partida é o mesmo. Nada reterá sua lógica. Quando o povo é soberano, não mais é Deus, mas o homem que governa. Colocando o homem no lugar de Deus tem-se por toda a parte o arbitrário em lugar do homem." (Blanc de Saint-Bonnet em "La Légitimité", pág. 248).
Isto posto, voltemos às reflexões do sr. Corção. Diz ele em outro local de sua crônica atrás citada:
"As grandes encíclicas sociais vieram encontrar dificuldades tremendas nas mentalidades empedernidas que até hoje, optando pelo lado do escândalo, continuam cegas diante da monstruosidade capitalista, surdas às trágicas alocuções de Pio XII; e divertem-se, no bom clima da Petrópolis, em descobrir heresias e infidelidade na obra de Jacques Maritain".
"Não vou aqui me ocupar desse fenômeno que é impermeável a qualquer tratamento racional. Mas quero dirigir-me aos outros, aos bem-intencionados que desejam pagar as omissões, e recuperar o terreno perdido".
Ora, o responsável por esta secção de "Catolicismo" não mora em Petrópolis, onde a quietude serrana e amenidade do clima tanto convidam ao estudo e à meditação. Mas autor de uma série de trabalhos que vêm sendo publicados nas "Vozes de Petrópolis", no último dos quais (setembro-dezembro de 1950), se ocupou de "O Rolo Compressor Totalitário e a Responsabilidade dos Católicos". Procuramos, ali, dar alguns exemplos práticos de como os chamados "maritainistas" emprestam sua colaboração à subversão socialista que multiplica suas frentes pelo mundo inteiro sob variados disfarces ou mesmo de modo aberto e declarado, com o que dão esses discípulos mais um testemunho da nocividade dos erros de que vem sendo acusado o sr. Maritain.
Si o sr. Gustavo Corção se der ao trabalho de consultar o número de março-abril de 1950 das "Vozes", verá que ali tratamos das "Origens Religiosas do Totalitarismo Hodierno", tomando por tese o fato de ser o problema do totalitarismo eminentemente religioso, tendo, portanto, de ser resolvido por meios eminentemente religiosos. O aspecto social e político do erro totalitário é mera decorrência do erro religioso do panteísmo, e o chamado "liturgicismo", arma de encantamento coletivo, seria por excelência, em suas consequências extremas, a religião do pan-estado totalitário. "O Rolo Compressor Totalitário e a Responsabilidade dos Católicos", que mais apropriadamente devia chamar-se "Os católicos maritainistas em face da subversão socialista", é, portanto, o início de algumas aplicações práticas que tencionamos fazer das "Origens Religiosas do Totalitarismo Hodierno" do ponto de vista secundário de suas repercussões sociais, políticas e econômicas. Eis porque dizíamos na parte final desse estudo do aspecto fundamental do problema, que é o aspecto religioso: — "Em coincidência com esses graves e generalizados erros religiosos, vemos também se infiltrar entre os católicos a tendência disfarçada para o socialismo, ou mesmo indisfarçáveis pendores para a política da mão estendida em relação ao comunismo, ao ponto de a Santa Igreja se valer da medida extrema da excomunhão para afastar seus filhos desse contágio. E à vista da lição do passado, em que o panteísmo, erro religioso, se acha inseparável do totalitarismo, erro político e social, quem não se capacita da gravidade do perigo que também do ponto de vista social e político nos ameaça pela retaguarda?" .
Que o erro do liturgicismo ou do totalitarismo religioso exista entre nós não se pode negar, e o próprio sr. Corção disso nos dá testemunho. Há alguns anos atrás já era o tema tratado por Plinio Corrêa de Oliveira em seu extraordinário e profundo livro "Em defesa da Ação Católica", obra sobre cuja oportunidade e pureza de doutrina nada se precisa acrescentar depois dos elogios que recebeu do Santo Padre Pio XII gloriosamente reinante. Ora, acontece que, por uma lógica "coincidência", os defensores do chamado liturgicismo são aquelas mesmas pessoas que se mostram ferrenhas adeptas dos erros do sr. Maritain do ponto de vista social e político, e isto não somente no Brasil mas em França, na Bélgica, na Alemanha, na Argentina, etc..
De modo que não adianta fazer superficiais viagens de circum-navegação em torno dos livros do sr. Maritain e acusar, contra todos os preceitos da justiça e da caridade, de não estarem bem-intencionados os que lhe apontam os erros e disparates doutrinários. Uma vez que o sr. Corção reconhece a existência do erro, como nos pode negar o direito de o combater onde quer que se apresente? Já diziam os antigos, que eram amigos de Platão, mas que eram mais amigos da verdade. Guardadas as devidas proporções, e por isso mesmo, não será muito mais fácil ser mais amigo da verdade do que do sr. Jacques Maritain?
Para isso deve o sr. Corção fazer uma coisa extremamente simples: — Entrar no mérito da questão em vez de borboletear em torno do assunto, e: — 1º. provar que falseamos o pensamento dos autores maritainistas por nós citados; 2º. refutar a argumentação que fizemos em torno dessas citações. O resto não passa de perda de tempo. E diante da gravidade dos perigos que nos ameaçam, ninguém, sobretudo um católico, pode perder tempo em mero deblaterar estéril. Se o sr. Corção não conseguir fazer nem uma coisa nem outra, só lhe restará lealmente reconhecer que temos razão. Mas não fuja do assunto e o aborde com a mesma objetividade com que o fizemos pelas páginas das "Vozes".