JUSTIÇA SOCIAL III

J. B. Pacheco Salles

No último artigo vimos que o igualitarismo se apoia num sofisma. Entre a igualdade fundamental de todos os homens e o igualitarismo revolucionário há um abismo intransponível, há toda a evidência em contrário das experiências mais penetrantes da vida quotidiana. No entanto, não existe postulado mais gratuito: o igualitarismo é admitido inicialmente como um princípio incontroverso, que não precisa de qualquer demonstração, sobre o qual se levantam as construções político-sociais mais falazes e audaciosas, com que se está destruindo, em nossos dias, a civilização e devolvendo a humanidade à barbárie. Assim, pois, o igualitarismo não pode ser o objetivo da Justiça Social. A justiça edifica as sociedades e os povos, e jamais pode servir para destruí-los.

Não é outro o pensamento da Igreja: «... segundo os ensinamentos evangélicos, a igualdade dos homens consiste em que todos, havendo-lhes caído por sorte a mesma natureza, são chamados à mesma altíssima dignidade de filhos de Deus, e ao mesmo tempo em que decretado para todos um mesmo fim, cada um há de ser julgado segundo a mesma lei, para conseguir, conforme seus méritos, ou o castigo ou a recompensa. Mas a desigualdade de direito e do poder dimana do próprio Autor da natureza, por quem é nomeada a paternidade nos céus e na terra (Ad Eph., 3,15)» (Leão XIII, Quod Apostolici Muneris).

Vemos que Leão XIII alude à distinção feita, no artigo precedente, entre a igualdade essencial dos homens, que lhes confere certos direitos também essenciais, e a desigualdade atual das pessoas, consideradas não mais do ponto de vista minimalista da essência, mas na sua entidade completa.

Tirando as conclusões deste princípio, a mesma Encíclica acrescenta: Pagai, pois, a todos o que lhes é devido; a quem o tributo, o tributo; a quem o imposto, o imposto; a quem o temor, o temor; a quem a honra, a honra (Rom., 13, 1-7). Porque em verdade o que criou e governa todas as coisas dispôs, com a sua provida sabedoria, que as coisas ínfimas cheguem pelas médias, e as médias pelas superiores, aos fins respectivos. Assim, pois, como no próprio reino dos céus quis que os coros dos anjos fossem distintos e uns submetidos aos outros; assim como também na Igreja instituiu vários graus de ordens e diversidades de ofícios, para que nem todos fossem apóstolos, nem todos doutores, nem todos pastores (1 Cor., 12, 27), assim também determinou que, na sociedade civil, houvesse várias ordens, diversas em dignidade, direitos e poder; a saber: para que os cidadãos, assim como a Igreja, fossem um só corpo, composto de muitos membros, uns mais nobres que os outros, mas todos necessários entre si e solícitos do bem comum.»

Este pensamento foi tornado ainda mais preciso na Encíclica Rerum Novarum: «Seja, pois, o primeiro princípio, e como base de tudo, que não há outro remédio senão acomodar-se à condição humana, que na sociedade civil não podem ser iguais os altos e os baixos. Afanam-se é verdade, nesse sentido, os SOCIALISTAS, mas é em vão e contra a própria natureza das coisas. Porque a natureza pôs nos homens grandíssimas e muitíssimas desigualdades. Não são iguais os talentos de todos, nem igual o engenho, nem a saúde, nem as forças; e da necessária desigualdade destas coisas segue-se espontaneamente a desigualdade na fortuna. O que é claramente conveniente à utilidade, tanto dos particulares como da comunidade; porque a vida comum necessita para seu governo de faculdades diversas e ofícios diversos; e o que para eles principalmente move aos homens é a diversidade de fortuna de cada um.»

Assim, em lugar de pôr, como primeiro princípio, a igualdade, Leão XIII põe justamente a desigualdade. Não é à toa que houve quem falasse da necessidade de se arquivarem as encíclicas deste Papa. E há muitos meios e modos de se arquivarem encíclicas e outros documentos pontifícios...

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A desigualdade é pois, o primeiro princípio da ordem social. Não se pense, porém, que, por causa disso, o resultado seja o desenvolvimento de cada indivíduo de um modo absolutamente original e anárquico, de tal forma que cada um venha a ser arbitrariamente diferente e díspar de todos os outros.

Isso seria cortar os canais da comunicabilidade humana e representaria a impossibilidade da convivência social. Pelo contrário, segundo os textos citados de Leão XIII, a desigualdade é precisamente a condição do bom agenciamento das várias porções da sociedade, afim de que esta seja um todo orgânico. Neste assunto, é preciso evitar o erro individualista, tendo-se presente que o homem é naturalmente social.

Assim, as desigualdades decorrentes da natureza humana se projetam, necessariamente, na sociedade, sob a forma de grupos e classes qualitativamente diferenciados; é toda uma estruturação hierárquica que surge no interior da própria sociedade, servindo de intermediário ordenador entre a originalidade individual e a unidade orgânica do todo social.

Mesmo porque há outro ponto que também não pode ser esquecido, embora o seja frequentemente: o homem é um ser naturalmente histórico.

A realização individual de um homem civilizado (e ser civilizado é a condição própria do homem enquanto homem), não é senão a etapa final de uma tarefa secular de elaboração cultural, em que a humanidade conseguiu afirmar a sua espiritualidade, vencendo as condições animais da existência. E a antropologia nos mostra que nem sempre a humanidade é bem sucedida nesta tarefa.

Ninguém, pois, pode desenvolver arbitrariamente a sua natureza individual a partir do nada, mas é obrigado a apoiar-se nos valores culturais existentes, assimilando-os à sua personalidade.

Ora, estes valores culturais são, em primeiro lugar, os da Civilização Cristã; mas são também os valores próprios a uma nação, a uma região, a uma classe, a uma profissão, a uma família. E, entre estes vários escalões de valores, há um encadeamento gradativo, que liga os gêneros supremos às derradeiras especificações.

De maneira que toda pessoa, pelas circunstâncias do nascimento e da vida, tem o seu desenvolvimento condicionado por todo um verdadeiro molde cultural, que é comum a uma inteira categoria de indivíduos. E, além disso, valores genéricos em comum.

Em consequência, por maiores que sejam as variações individuais, haverá sempre muitos pontos de semelhança, pontos estes que serão tanto mais numerosos quanto mais específicos forem os valores considerados (por exemplo, valores profissionais ou familiares), e tanto mais raros quanto mais genéricos forem tais valores (por exemplo, valores étnicos ou os da Civilização Cristã).

No primeiro caso, será muito mais restrito o número de pessoas abrangidas; ao passo que, no segundo, serão englobadas porções inteiras do gênero humano.

Aplica-se aqui a conhecida regra lógica de que a extensão dos conceitos está na razão inversa da sua compreensão. Assim, pois, a desigualdade dos homens vai determinando, no curso da história, a desigualdade das famílias, das classes, das nações, etc.

Isto nos leva a uma outra reflexão. A luta contra as condições animais da vida humana e o esforço pela afirmação da natureza espiritual do homem comportam vários graus de sucesso e diferentes modos de realização.

Ora, assim como na educação do indivíduo é preciso haver uma seriação metódica de cursos, com classes devidamente discriminadas, e os alunos também se diversificam quanto ao modo como concluem a sua educação; assim também a educação da humanidade se faz por etapas, em que se obtêm diferentes realizações culturais. Entre tais etapas se contam justamente as classes sociais. Acabar com elas sob pretexto de igualdade seria, pelo mesmo motivo, baralhar e confundir as classes de um colégio.

Este aspecto pedagógico da política e da história não tem sido bastante considerado, mas nem por isso deixa de ter capital importância. O gênero humano, como tal precisa de ser educado afim de viver segundo a dignidade do espírito e não ser dominado pelas contingências da sua animalidade. Este esforço educativo atravessa os séculos e as gerações, e a experiência nos mostra que está sujeito a tristes malogros.

Um requisito, porém, é essencial para o seu bom êxito: a continuidade de uma tradição viva, que ligue as gerações entre si, de modo a garantir o progresso espiritual da humanidade. Convém aqui aduzir uma consideração agudíssima de S. Tomaz, quando explica porque os homens têm inteligências diferentes: «Manifestum est enim quod quanto corpus est melius dispositum, tanto meliorem sortitur animam: quod manifeste apparet in his quae sunt secundam speciem diversa. Cuius ratio est, quia actus et forma recipitur in matéria secundum materiae capacitatem. Unde cum etiam in hominibus quidam habeant corpos melius dispositum, sortiuntur animam maioris virtutis in intelligendo: une dicitur in II DE ANIMA quod MOLLES CARNE BENE APTOS MENTE VIDEMUS» (S. T., 1a., Q.85, art. 7). (1)

É preciso, pois, haver, no transcurso da história, um como refinamento, uma depuração, uma decantação da animalidade humana, de modo a permitir que a alma possa manifestar o seu brilho mais autêntico: deve haver uma quase transfiguração do homem pela cultura, transparecendo no corpo animal a espiritualidade da alma. Mas, para que haja refinamento ou decantação, é preciso haver também seleção, classificação, discriminação. Do contrário, o material humano se torna impuro e grosseiro, menos disposto e menos capaz de receber a forma racional: é a barbárie, é a selvageria, é a revolta da besta contra o espírito. E esta revolta é o igualitarismo, que não admite superioridades, que se levanta contra tudo o que é nobre, e que só atende a um imperativo: «LILIA PEDIBUS DESTRUE».

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Se as forças negativas não prevalecem, a Civilização se elabora e se elaboram os valores culturais. Onde encontrar estes valores? Evidentemente, não nos podemos contentar com a resposta cômoda, mas muito pouco esclarecedora, de que o valores «valem», mas não «existem». Para poderem influir eficientemente nos destinos humanos os valores precisam existir de algum modo.

De fato, eles existem nas artes, nos costumes, nos estilos, na mentalidade, no ambiente, em tudo enfim que constitui o «espírito» de uma sociedade determinada, «espírito» que permanece vivo pela tradição. Mas, de um modo todo particular, este «espírito», que é como que a súmula dos valores culturais de uma comunidade, se torna patente, palpável e atuante naquilo que poderíamos chamar de pessoas significativas, ou pessoas-símbolo.

São pessoas que encarnam os valores de uma época e de uma sociedade menos pelo que elas fazem e dizem conscientemente, mas pelo que elas são, mesmo sem o saberem, de tal forma que os valores que elas representam não têm muita relação com o seu valor individual próprio. São como obras de arte que uma sociedade realizou e nas quais esta sociedade se espelha, se reflete, e toma consciência de si mesma. Assim, estas pessoas têm uma dupla existência: uma existência geral, de significação, e a existência particular, própria. E muitas vezes acontece que os valores representados por tais pessoas, na sua realidade física, sejam muito mais importantes do que a realidade moral delas. Será evidentemente muito melhor que esta esteja à altura daquela. Porém, uma coisa é certa: se é verdade que todos podem e devem ter, intencionalmente, valor individual, ninguém, entretanto, pode ser intencionalmente, uma pessoa-símbolo.

Foi o individualismo que, considerando a sociedade uma simples soma aritmética de elementos iguais, impediu que se visse, através dos indivíduos, realidades trans-individuais. Contudo, uma das inteligências mais penetrantes de nossos tempos, Proust, já exprimira este fato: «Em compensação, por momentos meu pensamento discernia em Saint-Loup um ser mais geral que ele mesmo, o «nobre», e que, como um espírito interior, movia seus membros, ordenava seus gestos e suas ações; então, nestes momentos, embora junto dele, eu estava só como se estivesse diante de uma paisagem, cuja harmonia eu tivesse compreendido. Ele era apenas um objeto, que o meu devaneio procurava aprofundar.

Ao encontrar sempre nele este ser anterior, secular, este aristocrata que Roberto justamente aspirava não ser, eu experimentava uma viva alegria, mas da inteligência, não da amizade. Algumas vezes eu me repreendia de ter assim prazer em considerar meu amigo como uma obra de arte, isto é, a olhar o jogo de todas as partes de seu ser como harmoniosamente regulado por uma ideia geral à qual estavam suspensas, mas que ele não conhecia e que, por conseguinte, nada acrescentavam às suas qualidades próprias, a este valor pessoal de inteligência e moralidade a que atribuía tanta importância» (A l’ombre des jeunes filles en fleurs).

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Pio XII sentiu profundamente a necessidade do princípio aristocrático mesmo para as democracias, afim de que elas sejam compatíveis com a lei natural e a lei divina.

Na sua célebre mensagem de Natal de 1944, em que definiu as condições da verdadeira democracia, afirmou: «Em um povo digno de tal nome, todas as desigualdades, que derivam não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, de bens, de posição social — sem prejuízo, bem compreendido, da justiça e da mútua caridade — não são um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e de fraternidade. Pois até aquelas, longe de prejudicar, de qualquer modo, a igualdade civil, lhe conferem o seu legítimo significado, a saber, que diante do Estado cada um tem o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, no posto e nas condições em que os desígnios e as disposições da Providência o colocaram.

Contrastando com este quadro de ideal democrático de liberdade e de igualdade, em um povo governado por mãos honestas e providentes, que espetáculo oferece um Estado democrático abandonado ao arbítrio da massa! A liberdade, enquanto dever moral da pessoa se transforma numa pretensão tirânica de dar livre vazão aos impulsos e aos apetites humanos, com dano alheio.

A igualdade degenera num nivelamento mecânico, numa uniformidade monocroma: o sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito da tradição, a dignidade, numa palavra, tudo quanto dá à vida o seu valor, pouco a pouco desmorona e desaparece».

Com a igualdade, como a compreende Pio XII, é diferente da igualdade socialista, ou da de muitos obreiros da Justiça Social! E, por aí mesmo se pode aquilatar, da profunda, da incomensurável diferença que separa a democracia cristã das democracias pagãs de nossos tempos.

Infelizmente, é preciso reconhecer que o espírito da falsa democracia penetrou a fundo nas camadas populares. Em nosso primeiro artigo apontáramos vários exemplos da decadência espiritual das classes inferiores.

Deixamos para agora este último sintoma: há uma revolta contra tudo o que é nobre, elevado, digno, refinado, augusto. Esta revolta indica uma grave perversão do espírito, pois o ser racional naturalmente ama tais coisas. Mas são odiadas, hoje em dia, pelas massas intoxicadas pela demagogia. Para satisfazer às suas necessidades materiais estão dispostas a destruir os mais belos florões da civilização. Parece que todos os jardins são supérfluos, e tomam o lugar das hortas.

Caminhamos, assim, para uma época em que o comer e o vestir constituirão os alvos mais altos da vida humana. Os novos bárbaros não vêm necessariamente do Oriente, mas de baixo, das massas deseducadas pela demagogia. Pois bem, a Justiça não consiste apenas em premiar os méritos, mas também em punir os deméritos. O que é também punir os deméritos. O que é também um imperativo da caridade, pois uma das obras de misericórdia é castigar os que erram.

Aliás, os males morais em via de regra não se curam sem castigo. A punição é o verdadeiro caminho para a regeneração espiritual. Toda a moral e toda a ascese do Catolicismo se baseiam sobre este princípio. Sine sanguine non fit remissio. A Justiça Social também não pode escapar a esta verdade. No Antigo Testamento, quando o povo pecava, os profetas verberavam duramente as suas faltas. E já depois de Cristo, encontramos um São Paulo que não media palavras para castigar os vícios dos primeiros cristãos. E não apenas S. Paulo, mas todos os pregadores depois dele não abrandaram a vara que profligava os pecados do povo. E, quando isto não bastava, Deus mesmo enviava, envia e enviará punições coletivas para corrigir as multidões pecadoras. O que também é Justiça Social.

(1) É evidente que quanto melhor for a disposição do corpo, tanto se obtém uma alma melhor: o que manifestamente se vê nos seres que são diferentes segundo a espécie. A razão disso está em que o ato e a forma [NR: truncado no texto original] capacidade desta. De onde, como também nos homens alguns têm um corpo melhor disposto, obtêm uma alma de maior poder de intelecção: de onde se diz em Aristóteles, II de Anima, que os que são brandos de corpo têm boa aptidão mental.


A ÚLTIMA PALAVRA NÃO PERTENCE AOS TÉCNICOS

Cunha Alvarenga

Estamos na época dos técnicos. Por todos os lados se ouve o apelo à racionalização, à especialização, à coordenação, ao dirigismo. E os técnicos, ciosos de suas prerrogativas, vivem a apregoar suas reivindicações, a primeira das quais quase sempre é a exclusividade para seu ramo de atividade. Transforma-se, assim, com esse exagero, uma coisa boa em si, que é a técnica, quando mantida em determinados limites, numa deusa burocrática que tudo quer devorar, e vão sendo criados compartimentos estanques para os quais o mundo se resume ora a um fichário, ora a determinados ensaios de laboratório, ora a certas normas, especificações e nomenclaturas, cujo manuseio pertence, de modo privilegiado, a determinados grupos de indivíduos, que são os donos da eficiência, outra deidade, que de simples meio passa a ser um fim em si.

O mal causado por essa obsessão da técnica seria mais ou menos circunscrito a certas zonas da sociedade humana e não causaria danos de monta, se não fosse a sua complicação com o fator político. A mania da técnica atingiu também os Estados e chegamos a um ponto em que a burocracia estatal não dispensa o concurso desses vários ramos de especialistas que usam antolhos. E como há técnicos para todos os fins possíveis e imagináveis, essa oficialização dos técnicos tem o resultado nefasto de uma cada vez maior intervenção do Estado nos vários setores da vida social, sobretudo do ponto de vista econômico.

Ora, acontece que, como tudo que interessa ao bem da sociedade humana, este assunto acaba de ser focalizado pelo Pai Comum da Cristandade. Em alocução aos membros do VIII Congresso Internacional das Ciências Administrativas, a 5 de agosto de 1950, o Santo Padre Pio XII mostra como os excessos do poder estatal constituem um mal a deplorar em todas as épocas, mas que nos tempos atuais "os casos dessa hipertrofia se sucedem quase que sem interrupção", sendo muito visíveis as suas consequências.

O conhecimento da importância real, do papel, do fim do Estado, diz o Santo Padre, se acha em razão inversa do aumento dos poderes, e isto não somente da parte dos que, no Estado, não vêm senão a fonte de seus lucros, ou que sofrem por causa dele, mas mesmo da parte daqueles que têm a missão de dar ao Estado sua constituição e sua forma.

E qual é a verdadeira noção do Estado, senão aquela de um organismo fundado sobre a ordem moral do mundo? Não é ele "uma onipotência opressiva de toda legítima autonomia". Sua função, sua magnífica função é, antes, favorecer, ajudar, promover a íntima coalizão, a ativa cooperação no sentido de uma unidade mais alta, dos membros que, respeitando sua subordinação ao fim do Estado, promovem do melhor modo o bem de toda a comunidade, precisamente na medida em que eles conservam e desenvolvem seu caráter particular e natural. Nem o indivíduo nem a família, diz Pio XII, não devem ser absorvidos pelo Estado. Cada um guarda e deve guardar sua liberdade de movimento na medida em que ela não corre o risco de causar prejuízo ao bem comum.

Em seguida aborda o Santo Padre o tema que de modo especial queremos salientar, que é a do Estado planificador de toda a vida social. Diz Pio XII: "A época presente assiste a uma luxuriante floração de "planos" e de "unificações". Nós reconhecemos de bom grado que, em justos limites, eles podem ser desejáveis e mesmo requeridos pelas circunstâncias e, ainda uma vez, o que Nós rejeitamos não é senão o excesso de absorção pelo Estado. Mas quem não vê, nessas condições, o dano que resultaria do fato de a última palavra nos negócios do Estado ser reservada aos puros técnicos da organização? Não, a última palavra pertence àqueles que vêm no Estado uma entidade viva, uma emanação normal da natureza humana, àqueles que administram, em nome do Estado, não imediatamente o homem, mas os negócios do país, de modo a que os indivíduos não venham jamais, nem em sua vida privada nem em sua vida social, a se acharem sufocados sob o peso da administração do Estado. A última palavra pertence àqueles para os quais o direito natural não se confunde com uma regra puramente negativa, nem com uma fronteira fechada aos esbulhos da legislação positiva, nem com um simples ajustamento técnico às circunstâncias contingentes, mas que reverenciam nele a alma dessa legislação positiva, alma que lhe dá sua forma, seu sentido, sua vida. Possa, portanto, a última palavra, a palavra decisiva, na administração da coisa pública, ser o apanágio de tais homens."

"Mais ainda que a energia laboriosa, o que lhes é necessário é a experiência, é a fidelidade a manter a noção exata, a promover o verdadeiro fim do Estado, é a iniciativa e a perseverança, a objetividade e o senso corajoso da responsabilidade."

Como vemos, a realidade social é muito mais rica do que imaginam aqueles que, através de uma falsa noção dos processos científicos e técnicos, só conseguem aumentar a burocracia estatal. Elaboram eles miríficos programas, em cuja aplicação agem como aquele pediatra que, ao saber que uma criança havia se recusado a tomar um alimento preparado com todos os dados da ciência dietética moderna, ordenou que se jogasse fora não o alimento, mas o menino, pois o alimento estava certo, e o menino é que estava errado.


A ADAPTAÇÃO DOS RELIGIOSOS AOS NOVOS TEMPOS

Um dos acontecimentos de maior importância, de que foi teatro a Cidade Eterna durante o Ano Santo, foi o Congresso de todas as Ordens e Congregações Religiosas existentes na Igreja de Deus, reunidos sob os auspícios da Santa Sé para tratar do importantíssimo tema da "adaptação dos Religiosos aos tempos atuais". Para tal Congresso, o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, deu preciosas diretrizes constantes de uma Carta ao Emmo. Cardeal Micara. Prefeito de Congregação dos Religiosos, datada de 12 de novembro de 1950, e uma alocução aos membros do Congresso, pronunciada a 8 de dezembro do mesmo ano. Dada a alta importância do assunto, condensamos aqui os principais ensinamentos do Vigário de Jesus Cristo:

I — O Santo Padre deseja, em principio, que as Ordens e Congregações Religiosas conheçam exatamente os problemas de nosso tempo e desenvolvam de tal maneira suas meritórias atividades, que deem realmente solução a tais problemas;

II — devem contudo ser evitadas "certas opiniões nascidas e propagadas no próprio seio da Igreja acerca da constituição e natureza da perfeição moral", e resultantes do afã de adaptar sem prudência nem discernimento as atividades apostólicas dos Religiosos aos tempos presentes (Alocução de 8-XII);

III — é preciso, antes de tudo, evitar ideias falsas sobre as relações entre o Clero Secular e os Religiosos. "É errado crer, a respeito das bases sobre as quais Jesus Cristo constituiu sua Igreja, que a situação própria ao Clero Secular, enquanto secular foi estabelecida e consagrada por nosso Divino Redentor, e que a condição do Clero Regular, por mais legítima e boa que seja, decorre do Clero Secular, e, pois, devera ser considerada como secundária e auxiliar. Pelo contrário, se se tem diante dos olhos a ordem estabelecida por Cristo, nenhuma das formas do duplo Clero goza da prerrogativa de direito divino, pois que este direito não confere preferência a um ou ao outro. Quanto a determinar a diferença entre eles, e suas mutuas relações, bem como a parte a confiar a cada qual na missão de trabalhar para a salvação do mundo, Jesus Cristo o deixou na dependência da diversidade das circunstâncias e necessidade de cada época, ou melhor, para definir mais claramente nosso pensamento, Ele o confiou à decisão da Igreja" (Alocução).

IV — "Acontece que, muitas vezes, nos territórios de Missão, todo o Clero, inclusive o Bispo, pertence a uma Ordem Religiosa. Não se deve entender que haja nisto algo de extraordinário e anormal, ou pensar que esta situação é puramente provisória, e que, desde que seja possível, este governo sagrado deve ser entregue ao Clero Secular (Alocução).

V — "A isenção das Ordens Religiosas (com referência à autoridade do Bispo) não está em oposição com os princípios da Constituição dada por Deus a sua Igreja; e ela não se opõe de nenhum modo à lei em virtude da qual o Sacerdote deve obediência ao Bispo. Com efeito, de acordo com o Direito Canônico, os Religiosos isentos estão sob a dependência do Bispo na medida em que o pede o múnus episcopal e a boa organização da cura espiritual das almas. Sem falar nisto, as discussões que a tal propósito se realizaram nos últimos dez anos sobre a isenção, não se pôs em realce suficiente que os Religiosos isentos, em virtude das próprias prescrições do Direito Canônico, estão sujeitos por toda a parte e sempre ao poder do Pontífice Romano como a seu supremo superior, e a ele devem obediência em virtude do próprio voto que emitem (can. 499, § 1). Ora o Soberano Pontífice exerce sua jurisdição ordinária e imediata não só sobre toda a Igreja mas sobre cada Diocese e cada fiel. Em consequência, é obvio que esta lei fundamental, estabelecida por Deus, segundo a qual Clérigos e leigos devem ser sujeitos ao Bispo, deve ser perfeitamente obedecida, mesmo pelos Religiosos isentos, e que enfim a vontade e as ordens de Jesus Cristo devem ser executadas por um e outro Clero com igual diligencia". (Alocução).

VI — "Não é conforme a verdade afirmar que o estado clerical, enquanto tal, e porque procede do direito divino, por sua natureza ou pelo menos em virtude de um postulado de sua natureza, exige que seus membros professem os conselhos evangélicos, e, por tal razão, devem ou podem reivindicar o estado de perfeição evangélica". (Alocução).

VII — "Há quem afirme que o estado religioso é, por sua natureza e por seu fim, aliás louváveis, mero refúgio de salvação concedido aos fracos e aos tímidos, que, incapazes de vencer as tempestades da vida, e não sabendo ou não querendo suportar suas dificuldades, abandonam covardemente o mundo e se refugiam no porto de um tranquilo convento". (Alocução).

VIII — ''Não podemos Nos impedir de fazer uma observação inteiramente oposta à opinião mencionada. Se o número daqueles ou daquelas — sobretudo de moças — que desejam entrar no jardim fechado da vida religiosa descresse, o motivo disto está em que se considera por demais duro renunciar a seu próprio juízo e alienar sua liberdade, o que está implícito no voto de obediência. Mais ainda, alguns colocam no ápice da formação moral, não mais a renúncia à liberdade por amor a Jesus Cristo, mas a minimalização desta abnegação. Por conseguinte, para formar o homem justo e santo, dever-se-ia empregar esta regra: restringir a liberdade na medida em que tal se torne indispensável, e quanto ao mais soltar as rédeas tanto quanto possível". (Alocução).

IX — "Não é sem razão que nossa época viu nascer a filosofia chamada existencialismo. Os homens de hoje, com efeito, negligenciam de bom grado o estudo aprofundado das questões difíceis da metafísica e da Religião, quando os acontecimentos os levam a resolve-las. Eles se contentam em fazer o que em tais circunstâncias se impõe. Mas o que professa a santa Fé não consente em ocupar-se tão somente, segundo tais teorias, dos momentos que passam, e em se entregar à correnteza da vida. Ele sabe que as coisas invisíveis (Heb. XI, 1) devem ser soberanamente estimadas, que elas durarão eternamente e não perecerão jamais. Mas, infelizmente, não obstante as advertências e exortações que não faltaram, homens de Igreja, inclusive Religiosos, há, bem gravemente atingidos por este contágio — e, se bem que não neguem o que transcende dos sentidos dos homens e da ordem natural, eles o têm em pouca monta". (Alocução).

X — "Na maior parte das vezes, os fundadores dos Institutos Religiosos conceberam sua obra nova em função de prementes e urgentes necessidades da Igreja. Eis porque adaptaram seus projetos aos problemas de seu tempo. Se quereis caminhar nas pegadas de vossos pais, tomai-os por modelos, e fazei o que fizeram. Estudai as opiniões, os juízos, os costumes de vossos contemporâneos, em meio dos quais viveis, e, se neles encontrardes algo de bom e de justo, tomai-o para vós; não tendes outro meio para os esclarecer, auxiliar, aliviar e dirigir. Mas há um patrimônio da Igreja que se conservou intacto, que não muda ao longo dos séculos, e que está sempre muito adequado às necessidades e desejos da humanidade. Ele é constituído sobretudo pela Fé, que recentemente acabamos de defender contra novos perigos na Encíclica "Humani generis". Esta Fé, que não tem mácula, conservai-a com o maior esmero, e tende a persuasão de que ela contém em si forças suficientes para vivificar qualquer século". (Alocução).

XI — "Esta reforma completa de si e do que se possui, não é nem de longe uma renúncia ou um irrefletido menosprezo de quanto os antecessores estabeleceram laboriosamente, e que deve ser considerado como a glória e a honra de cada Instituto. Ela consiste antes em não se entorpecer na inércia, em traduzir na vida os grandes exemplos dos fundadores, em alimentar intensamente a chamada piedade, a empregar todos os esforços por que as santas leis de cada Instituto não fiquem degradadas para a condição de um conjunto de regras exteriores inutilmente impostas, cuja "letra, na ausência do espírito, mata" (II. Cor., III, 6), mas que cada lei seja realmente um meio de adquirir a virtude sobrenatural, e que os que são chamados a se servir destes meios possam conceber um desejo sempre maior da santidade, empregando toda a sua atividade, a exemplo do Apóstolo São Paulo, na salvação de seus irmãos.

"Porém tal necessidade de adaptação ao progresso dos costumes atuais absolutamente não significa para as almas consagradas a Deus, que devem dobrar-se, de qualquer modo que seja, às exigências do mundo e às suas loucas seduções, bem como a seus convites. Mas seu dever consiste de servir de exemplo a todos pela integridade da vida, de utilizar tanto quanto possível o progresso das ciências e das artes em benefício da Religião". (Carta ao Cardeal Micara).

XII — "A melhor reforma consiste, habitualmente, em voltar às origens de maneira a reaquecer o espírito paterno ou materno que presidiu à fundação, e a fazer reflorescer as boas tradições, cumprindo os preceitos dos estatutos com escrupulosa precisão, cimentando os vínculos sociais pelo respeito à autoridade, pela observância da vida comum, na cordialidade fraterna, alimentando cada vez mais o entusiasmo pela própria vocação e a dedicação plena às obras que ela comporta". (Discurso inaugural do Emmo. Cardeal Piazza, O. Carm. Desc.).

XIII — "Há uma vã ilusão em supor que se pode dissimular a indigência da vida interior e trabalhar eficazmente pela difusão do Reinado de Jesus Cristo pelo emprego de estranhos métodos interiores", diz o Papa Pio XII na Encíclica "Menti Nostrae". E omitiu deliberadamente de aludir a certos critérios ou métodos de transformação e penetração nas massas operárias, que são absolutamente inúteis para a causa, e que debilitam o espírito eclesiástico do Clero Secular e Regular em virtude de contatos perigosos". (Discurso do Emmo. Cardeal Piazza).


[Comentários]

* Se houver nova guerra, o comunismo jogará uma cartada perigosa, pois os Estados Unidos, juntamente com o bloco de nações que o apoiam, reúnem em suas mãos o maior potencial humano, bélico e monetário do mundo. Compreende-se, pois, que os senhores de Moscou se sintam apreensivos diante dos riscos, e, ao mesmo tempo que se preparam para a luta, muito natural é que estudem estratagemas para assegurar a sobrevivência do comunismo em caso de serem derrotados.

Certas famílias rurais brasileiras tomaram no tempo do Império o hábito que dura até nossos dias, de colocar parentes em todos os partidos. Assim, qualquer que seja o resultado das eleições, a política municipal estará sempre em suas mãos. Se Stalin se tivesse inspirado no mesmo pensamento, teria procurado colocar comunistas no campo americano, para salvarem a bandeira rubra de um malogro total em caso de vitória ianque. E como este pensamento acudiu a nossos políticos, bem poderá ter acudido a Stalin.

Isto posto, pergunta-se: a ruptura com Tito não será um estratagema deste tipo? E as incontáveis defecções que se vão assinalando nas fileiras comunistas da Itália, da Inglaterra, da França, dos países escandinavos, não obedecerá ao mesmo desígnio? E a fundação de uma "Quarta Internacional Comunista" simpática a Washington não terá o mesmo objetivo? Se a vitória soviética se tornar eminente, estes elementos poderão atuar no campo ianque como quinta coluna para apressar o triunfo bolchevista. Se ela for pouco provável, os russos terão perdido a guerra, mas o comunismo sobreviverá incubado nas próprias fileiras vencedoras!

* A derrocada protestante depois da última guerra foi incomensurável, principalmente na Europa Central. Sob a pressão nazista, e depois sob a pressão comunista, os protestantes se dividiram em colaboracionistas, e anticolaboracionistas. Aqueles se desmoralizaram. Estes, vendo mais claro a respeito de sua religião, notando-lhe no cadinho do sofrimento a inconsistência, a superficialidade, a radical impotência, começaram a se voltar para o Catolicismo. Os pouquíssimos que ainda procuram conservar em suas seitas o "statu quo" religioso anterior a 1938, se vêm cada vez mais isolados e abandonados.

O mesmo se dá nas fileiras anglicanas. Enquanto em certa ala persiste sempre uma tendência para a reconciliação com Roma, em outra as simpatias pelo comunismo vão crescendo cada vez mais. E o elemento que procuraria manter o "equilíbrio" entre estes dois movimentos opostos, perde diariamente adeptos.

Neste sentido, muito característico é o recente pronunciamento do dr. Hewlett Johnson, conhecido como "deão vermelho" de Cantuária, que se manifestou oficialmente solidário com Stalin nas críticas por este feitas ao programa rearmamentista inglês.

O anglicanismo constitui a mais conservadora de todas as seitas protestantes do mundo. Cantuária é o maior centro religioso anglicano, em certo sentido uma Roma anglicana. Pois é no âmago deste setor do protestantismo, que se assumem e se propagam atitudes como esta!

* Caminha rapidamente o processo de beatificação do grande Pio X. Em recente reunião da Congregação Consistorial, realizada em presença do Santo Padre, foi lido o decreto aprovando os milagres alcançados pela intercessão do santo e imortal Pontífice. Feita a leitura do decreto, o Santo Padre Pio XII e as demais personalidades presentes se ajoelharam elevando preces a Pio X. Tal é o significado da beatificação daquele Papa, quer para a História da Igreja, quer para sua vida em nosso século, que por certo a cerimônia em que se der tal beatificação vai constituir um vigoroso traço de luz e de esperança, em meio das brumas da situação contemporânea.