A Igreja é na ordem espiritual, uma Sociedade Perfeita, e como tal possui em sua plenitude os três poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo.
Desde a Revolução Francesa, os Estados contemporâneos vêm adotando o princípio da separação dos poderes que, sob a alegação de «evitar a tirania», debilita a autoridade, proibindo que uma só pessoa, detenha mais que um dos mencionados poderes. Não assim a Igreja. Sua forma de governo, que não foi escolhida pelos homens mas estabelecida definitiva e imutavelmente por Jesus Cristo, é a hierárquico-monárquica, onde a mesma autoridade (seja da Igreja universal, seja de uma circunscrição particular — a Diocese) enfeixa em si os três poderes.
A única limitação imposta aos poderes da autoridade suprema do Papa é o Direito Divino. A autoridade dos Bispos, além de circunscrita geograficamente ao território de sua Diocese, acha-se subordinada à do Sumo Pontífice, e por esta limitada, assim como pelas determinações do Direito Canônico; isto posto, porém, é sempre a única pessoa do Bispo Diocesano que exerce sobre toda a Diocese os poderes legislativo, executivo e judiciário.
Esta organização de origem divina não impede, entretanto, que razões de conveniência ditem a constituição de órgãos auxiliares especializados. E, a sabedoria dos Papas, baseada numa experiência plurissecular, foi multiplicando e reformando os Dicastérios Pontifícios à medida que a Igreja se dilatava, e adaptando-os às novas necessidades. No que diz respeito às Dioceses, o Direito Canônico foi paralelamente determinando certas normas, e fazendo algumas imposições, alargando ou restringindo competências, conforme o pediam os interesses e o bem comum dá Igreja Universal, de que as Dioceses são partes integrantes.
Quanto aos poderes executivo e legislativo, o Papa é auxiliado pelas Congregações Romanas (organismos que têm certa analogia com os Ministérios de nosso País), cujos poderes se estendem sobre toda a Igreja, no âmbito da competência peculiar a cada uma. Em suas funções legislativas e executivas, os Bispos têm como auxiliares o Cabido, o Vigário Geral e outros oficiais da Cúria Diocesana, conforme as normas do Direito Canônico e as Constituições sinodais de cada Diocese.
Quanto ao poder judiciário, há os Tribunais Eclesiásticos para administrar a Justiça e dirimir as controvérsias. O Bispo, assim como o Papa, pode reservar a si pessoalmente o julgamento das causas que lhes são propostas; mas nos casos especificados pelo Direito, o Bispo é obrigado a fazer que as causas sigam a devida tramitação no Tribunal Diocesano, que ele pode sempre presidir, salvas algumas exceções. Sempre que o Direito Canônico estipula a formação de um processo, o Tribunal, desde a primeira instancia, funciona colegialmente, com um numero de Juízes nunca inferior a três; e na sua constituição entram o Notário, ou escrivão, e o Promotor da Justiça.
Este, nas causas matrimoniais, tem o nome de Defensor do Vínculo, dado que sua missão é defender a manutenção do vinculo conjugal.
Da sentença de um Tribunal Diocesano, cabe apelação para o Tribunal Metropolitano, ou seja o da sede da Província Eclesiástica. Se a primeira instancia fora julgada por um Tribunal Metropolitano, cabe apelação, para o de uma Diocese ou Arquidiocese próxima, estavelmente determinada pela Santa Sé.
Os Tribunais Romanos Pontifícios têm jurisdição sobre toda a Igreja. Julgam em primeira instancia as causas que escapam à competência dos Tribunais Diocesanos, as que lhes são especialmente atribuirias, e recebem as apelações de tribunais inferiores.
Para o foro interno (por exemplo, absolvição de excomunhões) há em Roma o Tribunal da Sagrada Penitenciária. Para o foro externo há dois Tribunais ordinários: a Rota e Signatura Apostólica. Além destes, há a considerar os tribunais extraordinários: a Congregação Santo Ofício funciona como Tribunal para determinadas causas (por exemplo, delitos contra a Fé); e à Congregação dos Ritos estão afetas as causas de Beatificação e Canonização, que seguem a praxe processual canônica. Poder-se-ia enumerar também os Concílios Ecumênicos, os quais podem funcionar também como Tribunais soleníssimos.
«O Supremo Tribunal da Signatura Apostólica» tem suas origens no Século XIII. Em sua constituição hodierna é uma espécie de Suprema Corte de Justiça, à qual estão afetas causas especiais: julga os Auditores da Rota, recebe recursos contra esta, dirime conflitos de competência entre tribunais inferiores, etc.
Atribuições especiais lhe cabem em relação ao Estado do Vaticano. Algumas concordatas estipulam formalmente que determinados assuntos lhe ficam sujeitos.
Entretanto, o mais conhecido dos Tribunais Romanos é a «Sagrada Rota Romana», que recebe as apelações e recursos contra os tribunais diocesanos. Sua maior fama reside no fato de decidir em última instancia as declarações de nulidade nas causas matrimoniais.
Este tribunal tem suas raízes históricas na antiquíssima Chancelaria Apostólica, onde havia oficiais encarregados de ouvir as partes queixosas e instruir as causas que o Papa deveria julgar. Chamavam-se «auditores causarum curiae domini Papae», ou simplesmente auditores. No século XIII o Papa Inocêncio III lhes outorgou também o poder de pronunciar algumas sentenças, e depois de Gregório X passaram a formar um tribunal estável. Em 1331 João XXII deu um regulamento especial a esse Tribunal que, desde tempos imemoriais, é conhecido pelo nome de Rota, nome que provavelmente deriva do recinto circular em que se reuniam os Juízes; estes por sua vez conservaram o antigo nome de «auditores», e sua nomeação tem sido sempre reservada ao Papa.
Com o desenvolvimento das Congregações Romanas, as atribuições da Rota foram decrescendo, a ponto de ficar reduzida, na primeira metade do século passado, quase a simples tribunal de apelação dos Estados Pontifícios. Consequentemente, com o esbulho de 1870, isto é, com a incorporação de Roma ao Reino da Itália, a Rota cessou suas atividades, até que em 1908 o Papa Pio X a reconstituiu, atribuindo-lhe a competência e organização que hoje possui. Compõe-se o Tribunal da Rota de um determinado numero de Juízes ou Auditores que têm o título de Prelado, escolhidos pelo Sumo Pontífice entre Sacerdotes provectos em idade, prudência e saber, e que sejam laureados pelo menos em Direito Canônico e Direito Civil. A nomeação é vitalícia; mas aos 75 anos de idade passam à classe de «Auditores eméritos». Nos últimos anos, dado o volume dos trabalhos, o Santo Padre Pio XII elevou de 12 para 14 o numero de Prelados Auditores.
A Rota pode funcionar em tribunal pleno. Habitualmente, entretanto, reúne-se por turnos de três juízes, sendo que excepcionalmente, com autorização pontifícia, poderá o número ser 5 ou 7. Cada causa é atribuída a um turno rotal, que decide por maioria de votos; um dos auditores — na maioria dos casos, o mais antigo do turno — é designado relator da causa e preside à sessão. Os documentos antigos referiam-se a este desempenho com a locução «ponere in relationibus», donde o nome de «ponens» ou «ponente» dado ao juiz relator do processo.
Os turnos rotais são designados pelo Decano, «primus inter pares», que é sempre o Auditor mais antigo; quase sempre são organizados da seguinte forma: um turno é formado pelo Decano, mais o segundo e terceiro Prelados Auditores, por ordem de antiguidade no cargo; outro turno, pelo 2º, 3º e 4º; o seguinte, pelo 3°, 4º e 5º; e assim por diante. De uma sentença da Rota pode-se apelar para a mesma Rota ; a causa é então obrigatoriamente atribuída a um turno rotal diferente do que a julgou em primeiro lugar. Em geral cessa o direito de apelação quando se obtêm duas sentenças concordes.
A praxe processual da Rota é em linha geral a de todos os tribunais: além dos Juízes funcionam no processo o Promotor da Justiça ou Defensor do Vinculo e o Notário ou escrivão; as partes se fazem representar por advogados.
Junto à Rota Romana funciona, sob os auspícios e direção dos Prelados Auditores, um «Studium», ou seja um curso especial, trienal, de aperfeiçoamento para laureados em Direito, que depois poderão funcionar como advogados rotais, ou irão aplicar seus conhecimentos nos vários tribunais diocesanos do mundo.
Dissemos que a Rota Romana é mais conhecida no mundo pelas suas decisões em causas de nulidade de matrimonio.
Dispensamos relembrar aqui que um matrimônio valido, pleno, jamais poderá ser anulado, dada a indissolubilidade do vinculo conjugal perfeito. A única questão que pode surgir é se foi valido um determinado matrimonio, em face de certas circunstancias que poderiam ter viciado o consentimento ou mesmo o objeto do contrato matrimonial. A sentença portanto, se favorável à parte que move o processo, não significa que o casamento é então anulado, mas apenas reconhece e declara judicialmente que desde o início foi ele nulo.
A Igreja parte sempre da presunção que é valido todo matrimonio, enquanto não se provar o contrário; daí a praxe de propor-se a questão nos seguintes termos: «prova-se a nulidade do matrimonio de N. e N.?». Se a sentença de um tribunal diocesano for negativa, isto é: negar a existência de provas em favor da nulidade, confirmando portanto a existência do vínculo conjugal, o processo pode terminar aí, podendo também as partes interessadas apelar para a Rota Romana. Se, entretanto, o Tribunal Diocesano julgar nulo o matrimônio em causa, o processo não termina, visto que o Defensor do Vínculo está obrigado a empregar todos os meios jurídicos para defender a validade do matrimonio, e por dever de ofício tem que apelar da sentença diocesana para a instancia superior da Rota, à qual unicamente compete uma sentença definitiva de nulidade matrimonial.
Compreende-se este rigor da Igreja pela necessidade de circundar de todas as cautelas possíveis a santidade e indissolubilidade do vínculo conjugal, sobretudo diante da propaganda divorcista de nossos dias. Ainda por esta razão, uma declaração de nulidade de matrimonio só pode considerar-se definitiva e ser executada, quando constar de pelo menos duas sentenças, e não se tiver feito apelação da última; e mesmo depois, sem qualquer limite de tempo, diante de novas razões a causa poderá ser reexaminada, não passando jamais em julgado.
Terminando, uma estatística: no ano de 1949 foram proferidas pela Rota Romana 142 sentenças, sendo que varias delas em apelações de julgamentos anteriores da mesma Rota. Dessas 141, 135 se referiam a causas matrimoniais; destas 91 concluíram pela validade do matrimonio e 44 apenas, ou menos de um terço, admitiram a nulidade. Considere-se que destas 44 algumas ainda, seriam reconsideradas em virtude de apelação do Defensor do Vínculo ou mesmo de uma das partes; lembre-se que este número refere-se a causas provenientes dos 450 milhões de católicos espalhados pelo globo, e teremos a proporção real de matrimônios declarados, nulos pela Santa Sé.
Durante o mesmo ano de 1949 foram arquivados sem julgamento final 44 processos, sendo 36 de causas de nulidade matrimonial. O motivo mais comum a de terminar o arquivamento foi o abandono do processo pelas partes, ou sua explicita desistência.
Plinio Corrêa de Oliveira
Uma tendência muito frequente nos artistas cuja produção possa ser reputada tipicamente “século XX” consiste na deformação do homem. Fugindo de copiar a realidade com as formas em que as vê habitualmente o olho humano, representam-na com alterações destinadas a lhes manifestar o aspecto mais profundo. Tomado em tese, este processo nada tem de mau. Entretanto, chama a atenção que, quando alteram os aspetos correntes da realidade, muitos artistas, dos mais tipicamente modernos, de fato deformam a realidade quase até a hediondez. Assim nos quadros modernos, não é difícil encontrar figuras humanas perfeitamente cômicas: cabeça minúscula, ombros pouco mais largos do que a cabeça, cintura muito mais larga do que a cabeça, cintura muito mais larga do que os ombros, pernas que parecem ir crescendo até o tornozelo no qual se entroncam pés literalmente imensos. Em certas esculturas, os pescoços não são apenas grossíssimos, mas deformados, apresentando num ou outro ponto bócios alarmantes. Em suma, se algum mágico aparecesse a qualquer homem normalmente sensato, e lhe oferecesse um líquido para transformar sua fisionomia e seu corpo no de uma figura-tipo da arte moderna, tal oferecimento seria seguido de uma imediata e enérgica recusa... Esta obsessão do disforme, do feio, até mesmo do hediondo, chegou em certas produções artísticas aos limites do inconcebível. Veja-se por exemplo o quadro intitulado “Nossa Imagem”, que aqui publicamos. É a figura moral do gênero humano, como a quis apresentar um artista tipicamente ultramoderno.
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Que haja no universo disformidades físicas e morais terríveis, e que seja lícito ao artista representá-las sempre que daí não decorra ofensa aos bons costumes, ninguém o contesta. Entretanto, pintar só o horror, não pintar nem esculpir senão para deformar, como se o universo não fosse senão um receptáculo de ignomínias, eis o que revela um estado de espírito errado, e uma concepção indiscutivelmente falsa e perigosa, quer dos homens, quer do mundo. Esta tendência para o hediondo tem em sua raiz uma visão desesperada e blasfema da criação, que é obra de Deus. As pinturas ou esculturas feitas à influência desta visão deformam a alma; e os ambientes impregnados deste estado de espírito só podem degradar o homem, extinguindo nele todos os surtos de inteligência e de vontade para um ideal verdadeiramente nobre, puro e elevado.
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A título de contraste, apresentamos aqui, tirado a esmo da imensa produção artística dos séculos passados, um quadro que representa um homem na sua maturidade.
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E muito mais do que o físico deste homem, seu estado de espírito, seu feitio moral. É Richelieu, pintado por Philippe de Champaigne em três atitudes diferentes. Todas as qualidades - e também todos os defeitos - do grande estadista se refletem neste admirável estudo, em que a alma humana pôde ser retratada no que tem de mais íntimo, vivo e sutil, sem que o artista precisasse recorrer, para isto, a deformações que degradam a própria natureza humana.
Bertrand de Poulangy
No início do século XIX, a ideia da união dos católicos para a defesa a Igreja era uma novidade que encontrava oposição por parte até dos melhores dentre eles. Os bispos e a grande maioria do clero não apoiavam a constituição do Partido Católico, e os leigos viam com indiferença ou amedrontados os esforços de Montalembert para arregimentar o movimento. Era natural que o desânimo começasse a abater o líder, desânimo que se agravou quando uma doença da Condessa de Montalembert o obrigou a se retirar de Paris, procurando na ilha da Madeira um clima mais propício para sua esposa.
Ao se despedir de Veuillot, não pôde Montalembert esconder o seu desânimo à vista da perspectiva, que parecia quase certa, da extinção do Partido durante a temporada que ia passar longe da França. Veuillot tudo fez para animá-lo, mostrando quanto "L’Univers" poderia fazer para mudar o curso das coisas, e prometendo que, se Montalembert não abandonasse a causa e enviasse da Madeira artigos vigorosos para o jornal, ele trabalharia com afinco. Garantiu-lhe que, ao voltar, encontraria um grande partido católico do qual seria o chefe. Concluindo, disse Veuillot: "Eu vos prometo um exército".
Foi o que aconteceu. Tendo iniciado sua colaboração em "L’Univers" com a responsabilidade de uma única seção — "Propòs divers" —, Veuillot se tornou desde logo o principal redator do jornal. Seus artigos inflamados, cheios de amor à Igreja e da mais pura ortodoxia, eram acolhidos entusiasticamente, e a França, admirada, via surgir um jornalista exclusivamente católico e um jornal dedicado unicamente à causa da Igreja.
Com Melchior du Lac, cujas dificuldades de família o obrigavam a renunciar às suas aspirações ao sacerdócio, e Eugène Veuillot, que também se convertera, Louis Veuillot reformou completamente "L’Univers", transformando a pequena folha num jornal combativo, vivo e respeitado, que não deixava impune o menor ataque à Igreja. "L’Univers" era o órgão do Partido Católico. À medida que o jornal progredia, crescia o Partido, a adesão do clero se generalizava e as vitórias se sucediam.
Como era de se esperar, a oposição foi também violentíssima, não só por parte dos inimigos da Igreja como também dos católicos "sensatos", que não viam com bons olhos um jornal que a toda hora lhes recordava os deveres.
Cansado de se defender contra os ataques injustos que sofria, e temendo que os colaboradores viessem a desanimar, Veuillot redigiu para eles um programa. Depois de recordar que os redatores de "L’Univers" pertenciam exclusivamente à Igreja e à Pátria, e deveriam obedecer fielmente à Igreja, acrescenta:
"Igreja e Pátria quer dizer submissão amorosa às verdades da Fé; submissão às adoráveis disposições da Providência, mesmo quando pesadas, e principalmente quando parecerem insuportáveis; constância no trabalho que parece inútil; generosidade no sacrifício desconhecido; lealdade no mais vivo combate e contra o inimigo mais desleal; perdão e esquecimento; na derrota e na vitória, devotamento ao adversário vencedor ou vencido, porque ele é menos um adversário que irmão, e foi em seu benefício que se combateu contra ele.
"Sim, obedecer à Igreja contra os nossos desejos e contra os instintos de nossos corações; contra esses instintos ainda, amar os irmãos ingratos; suportar os preconceitos, os rancores e os ódios que existem contra nós; aniquilar até os ressentimentos mais legítimos; suportar não só a injúria e a calúnia dos maus, como também a suspeita e as queixas dos que professam a nossa fé".
Mostrando que a obra de "L’Univers" pertencia à Igreja, e portanto a necessidade que havia de não se afastarem os redatores do caminho que lhes apresentava, continua:
"Pelo fundo e pela forma, estamos fora das condições que ajudam ou entravam, sustentam ou arruínam a imprensa. Vivemos de devotamentos infatigáveis, e por isso não queremos alardear independência, mas é melhor sofrer cem calúnias do que escrever uma palavra claramente injusta. Criticaremos, se necessário, os nossos amigos mais generosos, mesmo que eles venham a nos abandonar.
"Pouco importa que a coluna de sombra e luz que nos guia se dirija, às vezes, para as montanhas intransponíveis, e outras vezes nos apareça sobre as imensas extensões dos mares. O nosso Chefe é Aquele que ordena às águas que se abram e às montanhas que se abatam".
Essa linha de conduta, estabelecida em 1843, foi rigorosamente mantida durante toda a vida de "L’Univers". Muitas vezes Veuillot não era compreendido, e nos primeiros tempos não foram poucas as ocasiões em que Montalembert e mesmo Lacordaire tiveram de intervir em sua defesa, com argumentos que eles mesmos teriam tido grande proveito em reler depois, quando o liberalismo os afastou do grande jornalista.
Em carta a Montalembert, de 21 de julho de 1843, Lacordaire diz: "Estou radiante com tua aproximação com "L’Univers". São pessoas boas e corajosas, e seus excessos de jornalistas são bem difíceis de evitar em uma polêmica quotidiana. Não conhecemos bem isso? Verdadeiramente, sem esse jornal, haveria porventura na França o menor ruído na defesa de nossos direitos?"
Montalembert, em carta a T. Foisset, defende brilhantemente o jornalista:
"Sem dúvida, L’Univers" é bem difícil de dirigir e eu deploro os seus excessos. Não aprovo que ele compare as blasfêmias de Michelet a salsichas dependuradas numa salsicharia. Mas mostre-me nas circunstâncias atuais um jornal católico que tenha o seu valor. Ele fez um grande bem, forçando nossos opressores hipócritas a se desmascararem.
"Quanto aos católicos que o Sr. me cita, eis o que penso deles. São os nossos piores inimigos, mil vezes mais perigosos e odiosos que os filósofos e os liberaloides: estes não querem senão nos oprimir e nos amordaçar; aqueles nos desonram. Eles venderiam uma a uma nossas liberdades em troca de um aperto de mão do Sr. Saint Marc Girardin. Há muito tempo nós nos deixamos enganar por sua covardia e trair por seu servilismo. Há muito tempo, por um vergonhoso silêncio, entregamos aos dentes de nossos inimigos o que mais nos importava defender e glorificar do nosso passado. É preciso acabar com isso, e entrar novamente na posse do que nos pertence.
"Se depois da revolução ganhamos alguma coisa — refleti, eu vos peço —, a quem o devemos? Aos prudentes, aos tímidos, aos homens de transação, à escola cuja mais alta e mais nobre personificação é certamente Monsenhor Frayssinous? Não, certamente. É aos bravos, às coragens altaneiras, aos loucos, como chamavam ao Conde de Maistre e ao Padre de Lamennais. Eis os homens que fizeram o que somos".
O Partido Católico estava formado, e a união entre seus chefes era a mais perfeita possível. Ele se lançará à luta contra o monopólio do ensino e conseguirá a maior manifestação de força e fé do Catolicismo no século XIX.
J. de Azeredo Santos
MARITAIN escreveu mais um livro no domínio da sociologia: "O Homem e o Estado". Dele se ocupa o sr. Tristão de Atayde no "Diário" de Belo Horizonte de 15 de abril próximo passado, distribuindo antecipadas bordoadas àqueles que ousarem discordar do "mestre". Diz ele: "Remeto o leitor à leitura (sic) e à meditação dessa grande obra — aliás pequena em tamanho, verdadeiro catecismo democrático à luz da razão natural e da revelação cristã — caso não queira fazer, como tantos fanáticos, condenando Maritain, sem terem jamais tomado conhecimento de sua obra ou combatendo-o com os preconceitos do burguesismo, do legitimismo ou do totalitarismo, comunista ou fascista".
Há, portanto, quem combata as ideias do sr. Maritain por ignorar sua obra ou por preconceitos. E seria uma lástima a existência dessas vozes discordantes, pois a sorte do mundo estaria suspensa nas páginas desse novo livro. Com efeito, sentencia o sr. Amoroso Lima: "Por meu gosto, continuaria indefinidamente a analisar esta obra prima do pensamento político, mais puramente humano e verdadeiro, que os homens de nosso tempo, em qualquer parte do mundo, nos países do lado de lá ou do lado de cá da cortina de ferro, nos países católicos ou protestantes, nos países do Velho ou do Novo Mundo, precisam ler e meditar e aplicar, se não quisermos entrar no caos social, com ou sem guerra universal, onde perecerá toda a esperança de felicidade humana" (artigo citado).
* * *
A ser exata semelhante declaração, seria o caso de se desejar o aparecimento de um novo Califa Omar para queimar, como inúteis, as bibliotecas do mundo inteiro, pelo menos no ponto em que se referem ao pensamento político. Se é verdade o que escreve Tristão de Athayde, tudo quanto existe fora do novo livro do sr. Maritain, deve ser queimado como calhamaços ineficientes, visto que estamos diante de um autêntico Alcorão, aliás prodigiosamente sintético. E não temos tempo a perder diante da catástrofe que se avizinha e da qual já presenciamos as primeiras escaramuças. Se o que existe fora desse livrinho genial nele não se acha, deve ser também queimado, pois evidentemente está errado. Por outras palavras, conteria essa obra do sr. Maritain toda a sabedoria antiga e moderna em matéria de filosofia social e política, condensando, segundo o sr. Tristão de Athayde, "o seu pensamento anterior, expresso já em numerosos volumes, à luz de sua própria experiência e das críticas que tem recebido, mormente da parte de meios reacionários e ditatoriais, católicos ou não" (art. cit.).
Aguardemos, portanto, a chegada desse novo silabário político e vejamos se o seu autor nele de fato corrigiu os pontos em que claramente incidira em erro em suas obras anteriores. E se se tratar efetivamente de uma errata e não de uma diluição ou disfarce de seus pressupostos conhecidamente falsos, teremos uma prova do mérito das críticas feitas a certas ideias do sr. Maritain. Ademais, ficará demonstrado que não é por ignorância de sua obra, ou por meros preconceitos, que se discorda dele.
Dir-se-á que não se tem em vista uma retratação, mas o esclarecimento de seu pensamento, para evitar que ele seja deturpado pelos seus inimigos. Voltamos, assim, à velha questão do espírito geométrico e do "esprit de finesse". E é curioso notar-se o seguinte: Depois de toda a polêmica iniciada em outubro de 1943 em torno do livro "Os direitos do homem e a lei natural", tudo fazendo os maritainistas nestes últimos sete anos para esclarecer sua posição, nela mantendo-se irredutíveis e não aceitando a mais leve restrição às ideias de seu principal doutrinador, — havendo, portanto, decorrido tempo suficiente para um julgamento geral e objetivo de toda a questão, — a conhecida revista de cultura "La Civiltà Cattolica", mantida em Roma pela Companhia de Jesus, acaba de retomar o fio da meada, publicando em seus números de 1º de julho, 5 de agosto, 4 de novembro e 2 de dezembro de 1950 e 3 de fevereiro de 1951 uma série de estudos do revmo. Padre A. Messineo S.J., em que as teses principais do sr. Maritain no campo político e social passam por um rigoroso cotejo com a verdadeira doutrina. E as conclusões a que chega esse douto jesuíta são justamente aquelas dos intelectuais católicos que há sete anos atrás julgaram ser seu dever dar o brado de alarma para evitar a propagação dos erros de que era então acusado o sr. Maritain. Não se trata, portanto, de uma questão de interpretação, mas da própria força de suas expressões.
* * *
Devem, portanto, o sr. Alceu de Amoroso Lima e demais maritainistas deste e do velho Continente renunciar ao recurso de injuriar seus adversários no campo das ideias. Tanto mais que a terminologia usada por eles é rigorosamente a mesma usada pelos inimigos da Igreja. Reacionários, fanáticos, fixistas, agentes do Santo Ofício, clericais e ultramontanos, são os ápodos comuns que nos dirigem tanto os maritainistas quanto os livre-pensadores tipo 1870. No artigo citado, por exemplo, diz o sr. Tristão de Athayde: "O liberalismo, durante o século XIX, invadiu os meios católicos, em matéria político-econômica, como no século XX o mesmo vem sucedendo com o reacionarismo, que outra coisa não é, como o comunismo, senão uma consequência lógica do liberalismo".
"Há no mundo político uma como espécie de moeda corrente reconhecida falsa, mas que tacitamente se convencionou receber. Os iniciados é que se não enganam sobre o seu verdadeiro peso e valor real". Nestas palavras com que Balmes, no "Critério", encerrou suas observações sobre os jornais como meios de se chegar à verdade pelo menos a respeito das pessoas e das coisas, temos a explicação do exato alcance do adjetivo "reacionário" hoje tão corrente para classificar e ferretear os que se opõem aos progressos da revolução que, sob o disfarce de uma nova ordem proletária e democrática, procura instaurar no mundo o totalitarismo socialista.
Tal adjetivo representa um tão grande insulto que até o nosso tolerante parlamento resolveu proscrevê-lo de seus anais ao lado de outros baldões que não se casam bem com o decoro a ser mantido em torno dos pais da pátria.
O mesmo se pode dizer com relação às classificações de "clerical" e "ultramontano". A moeda falsa de curso forçado nos meios hostis à Igreja foi lançada com tamanha propaganda e habilidade que às vezes até os próprios católicos se consideram ofendidos quando se lhes aplicam aqueles epítetos.
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Entretanto, atrás da própria palavra "reacionário" se acha a razão dessa campanha contra os católicos. Efetivamente, não é preciso fazer apelo ao dicionário para se verificar que reacionário é aquele que reage contra alguma coisa. E o desejo dos modernos artífices de erros políticos e sociais é justamente que não exista essa reação, para que os não entrosados no plano revolucionário pelo menos permaneçam inativos e indiferentes, se não quiserem pôr o ombro à roda. Pela mesma razão detestam o modo de agir do clero católico, que também lhes é contrário. Daí o anticlericalismo. E já dizia o sectário Gambetta em seu tempo: "o clericalismo, eis o inimigo". Indo adiante em seu desespero ao verificar os entraves que a Igreja lhes oferece, dirigem também suas baterias contra os ultramontanos, isto é, contra os que procuraram ser fieis e leais servidores do Papa. Que maior título de glória pode ter o católico do que ser ultramontano, isto é, estar com o Santo Padre em todos os terrenos?
Compreende-se, portanto, muito bem essa campanha contra os católicos que se querem manter fieis à ortodoxia. São mais do que claros os desígnios dos que lhes emprestam as denominações de reacionários, de clericais e de ultramontanos, identificando-os com a pseudo-reação que as próprias forças do mal organizam para torpedear o verdadeiro movimento de resistência contra os males modernos.
O que se compreende menos é que entre os próprios católicos exista quem use dos mesmos processos e expressões contra os seus irmãos na Fé. Pusessem os discípulos do sr. Maritain todo o ardor de sua pugnacidade a serviço da doutrina da Igreja diretamente abeberada nos documentos pontifícios e não na fonte suspeita de um "humanismo integral" que o Padre Messineo bem classifica como naturalismo total, e não teríamos a lamentar essa divisão entre católicos, que somente serve para reforçar a posição de nossos inimigos. Não se pode falar em fanatismo quando o alvo de nossos esforços e combatividade são a Verdade e o Bem. É o fanatismo a confiança exagerada, irrefletida e incondicional em alguém ou em alguma doutrina. O fanatismo pertence ao grupo dos vícios que se opõem por excesso à virtude da Religião, genericamente compreendidos na superstição, que consiste em dar a Deus um culto indigno Dele ou em dar às criaturas o que só a Deus pertence.
Pergunta-se, portanto: Onde está o fanatismo? Em quem procura seguir fielmente a doutrina tradicional da Igreja ou em quem deseja emprestar ao sr. Maritain uma infalibilidade que está longe de possuir?