Pio X (conclusão)

SUA PALAVRA ERA BÁLSAMO...

(Íntegra na 1.a pág.)


Merry del Val (conclusão)

EU O ESCOLHI...

(Íntegra na 1.a pág.)


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

Os cristãos nasceram para o combate

LEÃO XIII — E esta covardia dos cristãos merece ainda maior censura, porque desfazer acusações caluniosas e refutar opiniões falsas, com pouco trabalho se conseguiria as mais das vezes e, com algum trabalho mais, conseguia-se sempre. Em último caso não há ninguém, absolutamente ninguém, que não possa fazer uso e mostra da fortaleza que tão própria é de cristãos e que só com assomar basta não raras vezes para derrotar os inimigos com todos os seus intentos. Acresce que os cristãos nasceram para o combate, e quanto mais bravo ele for, mais certa será com auxilio de Deus a vitoria "Tende confiança, eu venci o mundo" (Jo 16,33). Não venha alguém dizer que Jesus Cristo, como conservador que é da Igreja e vingador dos seus agravos, não precisa da cooperação dos homens, pois que, não por falta de poder, mas por excesso de bondade, quer Deus que contribuamos com alguma coisa para se obterem e lograrem os frutos da salvação que sua graça nos procurou. (Enciclica "Sapientae Christianae", de 10-1-1890).

É covardia não lutar pela Fé

LEÃO XIII — Neste enorme e geral delírio de opiniões que vai grassando, o cuidado de proteger a verdade e de extirpar o erro dos entendimentos é a missão da Igreja e missão de todo o tempo e de todo o empenho, como que à sua tutela foram confiados a honra de Deus e a salvação dos homens. Mas quando a necessidade é tanta, já não são somente os Prelados que hão de velar pela integridade da Fé, senão "que cada um tem a obrigação de propalar a todos a sua Fé, já para instruir e animar os outros fiéis, já para reprimir a audácia dos que o não são" (S. Tom. 2-2 q x a.2, q ad 2) Recuar diante do inimigo, ou calar-se quando de toda parte se ergue tanto alarido contra a verdade, é próprio de homem covarde ou de quem vacila no fundamento de sua crença. Qualquer destas coisas é vergonhosa em si; é injuriosa a Deus; é incompatível com a salvação tanto dos indivíduos, como da sociedade, e só é vantajosa aos inimigos da Fé, porque nada tanto afoita a audácia dos maus, como a pusilanimidade dos bons". (Ibidem).

Maria sempre nos socorrerá na luta contra a serpente

PIO X: Sabemos por experiência que as preces inspiradas pela caridade e protegidas por Maria são sempre valiosas. É certo que jamais cessarão os ataques contra a Igreja: "Porque é necessário que também haja heresias, para que os que são provados se façam manifestar entre vós" (1 Cor. 11,19). Mas, igualmente, a Virgem jamais cessará de socorrer-nos em todas as nossas angústias, mesmo nas mais cruciantes, e de prosseguir na luta desde sua Conceição travada, de modo que possamos repetir diariamente: "Hoje foi por ela esmagada a cabeça da antiga serpente" (Of. da Im. Conc., II Vesp. ad Magnif.). (Encíclica "Ad diem illum", de 11-11-1904).

Ousadia e deplorável miséria

LEÃO XIII: Quanto carecem desta suavidade e consolação e quanto devem ser deplorados aqueles que não têm a mesma fé, que não saúdam Maria e não a têm por Mãe. Mais deplorável, porem, é a miséria daqueles que, participando da mesma fé, ousam censurar o culto extremamente profuso para com Maria, prejudicando a piedade das almas generosas (Encíclica "Octobri Mense", de 22-IX-1891).


O ENIGMA DA BASTILHA

José Carlos Castilho de Andrade


«É um favor especial do Rei ser-se condenado a uma tão bela prisão.
Ali há comodidades e prazeres que nem todos os grandes Príncipes têm em seus palácios».

A 14 de Julho transcorrerá o 162º aniversário da queda da Bastilha. Como se sabe, a Revolução Francesa marca o fim dos Tempos Modernos e o início da Época Contemporânea. Este acontecimento, que fica situado entre duas eras históricas inteiramente diversas, começou com a capitulação da velha fortaleza real ante o populacho amotinado, que nela via o símbolo da ordem de coisas que queria destruir.

Compreende-se pois que a Bastilha, em torno da qual pairavam lendas tão sinistras e emocionantes, tenha atraído a atenção dos historiadores e a curiosidade do público.

* * *

O 14 de Julho assinala o crepúsculo da verdadeira liberdade

ESTA Bastilha Santo Antonio, que depois teve tão triste fama, começou a construir-se em 1.370, no reinado de Carlos V, chamado o Sábio. Era então apenas uma fortificação para proteger contra os ataques inimigos a entrada de Paris pela Porta Santo Antonio.

Já no século seguinte recebia esporadicamente prisioneiros, pelo menos os de guerra, o que não impedia os Reis de nela realizar grandes festas e hospedar personagens ilustres de visita à cidade.

Prisão de Estado

Ao Cardeal de Richelieu, pontífice do absolutismo francês, é que se deve a transformação da Bastilha em prisão de Estado. Fernando Bournon definiu muito bem o que era uma prisão de Estado no "ancien régime": “Por prisão de Estado — e em especial tratando-se da Bastilha — deve-se entender a prisão dos que cometeram crime ou delito que não é de direito comum, daqueles que, com ou sem razão, são julgados perigosos à segurança do Estado, quer se trate da própria nação, de seu chefe, ou de um grupo mais ou menos importante de cidadãos, grupo por vezes restrito a uma, família. Se se juntar a essa espécie de prisioneiros as personagens muito em evidencia para serem punidas, por crime de direito comum, como qualquer malfeitor vulgar, e a quem parecia dever ser reservada uma prisão excepcional, teremos enumerado as diferentes espécies de delitos que, na Bastilha foram expiados desde Richelieu até a Revolução”.

A Bastilha, garantia de liberdade

O Rei, no exercício das funções, que o "ancien régime" considerava inerentes à coroa, de chefe supremo das famílias de seu reino, também mandava para a Bastilha os membros da nobreza cujo comportamento não merecia a aprovação de suas famílias. Assim, o jovem Duque de Fronsac, futuro Duque de Richelieu, esteve na velha fortaleza "porque não amava sua mulher".

A principio a prisão na Bastilha, bem como a libertação, dependiam exclusivamente de uma "ordem de Rei", ou seja, de uma "lettre de cachet", o que significava que não resultavam de processo judiciário regular.

Os contemporâneos não viam nisso a manifestação de uma tirania odiosa, como se poderia supor. Para não nos estendermos na explicação desse fato, limitamo-nos a transcrever a magistral "miseau-point" da questão das "lettres de cachet" feita por Funck-Brentano: "A autoridade real, por sua existência mesma, era a condição essencial da liberdade na França, e a lettre de cachet era o unico meio de que o Rei dispunha para fazer valer essa autoridade. Graças a esse poder latente, que existia em toda a parte, sem se manifestar por fatos tangíveis, as mil e uma autoridades locais eram mantidas em equilíbrio, e no temor de abusar de seu muitas vezes, seu emaranhamento. De onde se chega à conclusão, por certo bem inesperada, de que as lettres de cachet formavam na antiga França a ossatura da liberdade" (L'Ancien Régime, cap. XI).

De resto, a partir da segunda metade do século XVII a Bastilha foi posta sob a autoridade de um personagem de caráter nitidamente judiciário, a um verdadeiro magistrado, embora investido de funções também administrativas: o Lieutenant de Polícia. Ele entra na prisão quando lhe apraz, estabelece comunicação direta e constante com os presos, e inspeciona todos os quartos ao menos uma vez por ano.

Desde então, vinte e quatro horas após sua entrada na Bastilha os presos deviam ser interrogados por um Comissario do Châtelet, o tribunal do viscondado de Paris. Embora com algumas exceções, de presos que esperaram duas ou três semanas para comparecer perante o magistrado, essa ordem era conscienciosamente observada.

O Comissario do Châtelet depois de tomar conhecimento das notas que lhe enviava o Lieutenant e de interrogar o preso, remetia o processo verbal do interrogatorio, juntamente com sua opinião fundamentada sobre os motivos da prisão, ao proprio Lieutenant, que resolvia se a prisão devia ou não ser mantida. Nos casos mais importantes uma comissão especial, composta de magistrados, é que interrogava os presos. Já não se podia dizer, portanto, que os detidos na Bastilha não eram sujeitos a julgamento.

Reconhecida a injustiça de uma prisão, nova "ordem do Rei" mandava pôr em liberdade o preso. E o melhor é que este era indenizado, quer com uma boa soma em dinheiro, quer com uma pensão vitalicia, quer ainda um emprego público.

No reinado de Luís XVI os conselheiros do Parlamento, juizes da mais alta Côrte de justiça de França, inspecionavam a Bastilha com a mesma liberdade que as outras prisões. Por fim, o Ministro Breteuil determinou que nenhuma ordem de prisão fosse aceita pelo Lieutenant da Policia se não indicasse a duração e os motivos da pena.

Em 1785 foram praticamente abolidas as "lettres de cachet".

Por outro lado, desde meados do seculo XVIII o Châtelet manda para a fortaleza da porta Santo Antonio, por sua propria autoridade, sem intervenção do Rei, acusados que estão sendo processados perante aquele tribunal, inclusive por crimes de direito comum.

Destarte a Bastilha foi perdendo progressivamente o carater de prisão de Estado, de prisão do Rei, e muitos anos antes da Revolução já se tornara uma prisão igual às outras, embora muito mais suave, como se verá.

O número de detenções

Ao mesmo tempo que se dava essa evolução, o numero das detenções diminuia. A fortaleza só comportava quarenta e dois presos alojados separadamente. Sob Luís XIV, de 1660 a 1715, recebeu 2.228 prisioneiros, o que representa uma media de 40 por ano; no reinado seguinte, de 1715 a 1774, esse numero elevou-se a 2567, numa media anual de 43; por fim, no reinado de Luís. XVI, baixou a 289, ou seja uma media anual de 19.

De 1783 a 1789, a Bastilha ficou quase deserta; na ocasião de sua queda continha apenas sete presos. Quatro deles estavam sendo julgados no Châtelet, por terem falsificado letras de cambio; outro, o Conde de Solages, cometera um crime monstruoso e fôra recolhido à Bastilha em consideração à sua familia, para evitar o escandalo de um julgamento. Os dois últimos eram loucos.

Assim, a velha fortaleza agonizava. Porisso, e como ficasse muito cara a sua manutenção, o governo decidira demoli-la. Os revolucionarios de 14 de julho apenas se anteciparam.

A vida na Bastilha

A principal nota distintiva da Bastilha era não ter nenhum dos caracteristicos de uma prisão no sentido proprio da palavra. “Meu desejo, rezam as "ordens do Rei", é que vos façais conduzir ao meu castelo da Bastilha” mais do que prisão, era ela um castelo forte onde Sua Magestade recolhia súditos cujo comportamento lhe desagradava.

Daí uma primeira consequencia: a estadia na Bastilha não deshonra ninguém, nem mesmo as mais altas personagens do reino. Antes pelo contrario, talvez fosse "distinto" ter lá estado, pois ela era reservada de preferencia aos membros da aristocracia: O Lieutenant de Policia D'Argenson diz de alguém, que não merece bastante "consideração" para ser mandado para a prisão real.

Esse é um ponto interessante e que se tem procurado esquecer: a Bastilha era destinada principalmente à nobreza. "A 14 de julho tomaram a Bastilha, escreve o Padre Rudemare; no dia 15 lá fui por curiosidade. Um maltrapilho disse-me então: "Não direis, Mr. le Chevalier, que foi para nós que trabalhamos destruindo a Bastilha, mas sim para vós, pois os miseraveis não tinham lá entrada. Para nós a Bicêtre... Não há por aí uns cobres para beber à vossa saude?" (Journal d'un Abbé Parisien).

Sebastião Locatelli, Padre bolonhês, que visitou Paris no tempo do Rei-Sol e dispôs de excelentes fontes de informações, escreve: "É um favor especial do Rei ser-se condenado a uma tão bela prisão... Ali há; é certo, comodidades e prazeres que nem todos os grandes príncipes têm nos seus proprios palacios, e uma liberdade tão grande que os olhos podem ali gozar agradaveis paisagens".

O Castelo dispunha de algumas enxovias, humidas e mal ventiladas, em parte subterraneas. Sob Luís XIV só iam para lá os presos da mais baixa esfera e os assassinos. No reinado de Luís XV quase só serviam para os insubordinados que maltratavam os guardas ou os companheiros de prisão, bem como para os soldados da guarnição culpados de grave indisciplina. Muito antes do 14 de julho já não eram utilizadas: desde o primeiro Ministério Necker (1776-1778) era proibido deter nas enxovias fosse quem fosse, e nenhum dos guardas interrogados no dia 18 de julho de 1789 se recordava de nelas ter estado algum preso.

Os "hospedes" habitavam os andares superiores, onde dispunham de quartos amplos e arejados, dotados de grandes janelas (que só receberam grades no fim do reinado de Luís XIV), e aquecidos por lareiras.

"Roteiro" de um prisioneiro

Como o ambiente da Bastilha não era propriamente o de um campo de concentração moderno, não havia necessidade de um grande aparato militar para convencer alguem de se recolher aos seus muros. Geralmente um oficial de policia notificava ao interessado a "ordem do Rei" e o conduzia em um carro de passeio, tomando o cuidado de não deixar morrer a conversa durante o percurso, conhecedores que eram os policiais de então das usages du monde. É o que contam diversas memorias de antigos prisioneiros.

As pessoas "de qualidade", cientes da "lettre de cachet"; apresentavam-se à prisão sem outro acompanhamento que o de seus parentes ou criados. Entre diversos exemplos lê-se no diario de Du Junca, delegado do Rei na Bastilha, que "Mr. de Villars tenente-coronel do regimento de infantaria dos Vosges, veio entregar-se à prisão, tendo estado detido na cidadela de Grenoble, de onde veio diretamente sem ser conduzido por ninguem", e que "Mr. de Jones, inglês", veio da Inglaterra, em absoluta liberdade, constituir-se prisioneiro da Bastilha.

Chegado à fortaleza, o novo preso era imediatamente conduzido à presença do governador, que o fazia sentar-se para conversarem um pouco. No tempo de Luís XIV, o governador costumava convidar seu novo jurisdicionado, bem como os amigos ou oficiais da policia que tinham acompanhado, a almoçarem ou jantarem em sua mesa.

Enquanto isso preparavam-se os aposentos do recem-chegado. (Com Mr. de Courlandon, coronel de cavalaria, que se apresentou à Bastilha em 26 de janeiro de 1695, aconteceu um fato muito desagradavel: não havendo quarto em condições de o receber, teve que passar a noite numa hospedaria próxima e só pode ser preso no dia seguinte ...)

Depois de pedir ao prisioneiro que esvaziasse os bolsos (só as pessôas de baixa condição eram revistadas), e de fazer um pacote com seu dinheiro, joias e armas, conduziam-no aos seus aposentos.

O "regime" penitenciário

Até o interrogatorio o preso era mantido incomunicavel e só, a menos que lhe tivessem permitido levar consigo algum criado. A administração facilmente concedia licença para isso, chegando a pagar não só a alimentação como também o ordenado dos criados, inclusive para detidos de classe inferior.

Havia também o cuidado de reunir dois e três parentes no mesmo quarto, para evitar o tedio da solidão. Comovido com o isolamento de Mme. de Fontaine, que não tinha parentes entre os prisioneiros, o Lieutenant da Policia, prendeu tambem seu marido, o que decididamente era levar as coisas um pouco longe.

Terminado o interrogatorio os prisioneiros podiam receber visitas de fora, mais comumente na presença de um oficial da guarnição. Em geral só lhes era permitido falar de questões de familia ou de interesses, mas não é caso unico o de Bussy-Rabutin que tratava livremente com qualquer de suas visitas e chegava a oferecer jantares a amigos da côrte.

A rarissimos presos era recusada autorização para passear pelas torres e pateos do castelo. No pateo interior reuniam-se e em grande número para conversar e divertir-se com as visitas e oficiais da guarnição. Era uma verdadeira vida de côrte, elegante, frivola e de grande brilho.

Manda a verdade que se diga que muito mais raro era a permissão de passear pela cidade, embora varios presos dela gozassem...

Tudo isso, bem entendido, quando não se tratava de alguem cuja prisão devesse permanecer secreta. Então, o preso era mantido em completo isolamento e podia ser obrigado a usar uma mascara de sêda para não ser reconhecido pelos guardas (daí a lenda do Mascara de Ferro). Esses casos geralmente de espiões e agentes secretos, são raros e deles não há exemplo no reinado de Luís XVI.

Em seus quartos os detidos faziam o que lhes aprouvesse: uns criavam aves e animais, alguns tocavam instrumentos de música, outros cantavam, bordavam, cosiam, jogavam cartas e xadrês. Não faltavam sequer as intrigas elegantes ou políticas, tão do gosto da côrte.

O mobiliário

A principio o mobiliario desses quartos não era dos melhores, pela simples razão de que não existia. Os presos mandavam buscar de suas casas os moveis que desejassem, ou alugavam-nos do tapeceiro do castelo. Aos que nada possuiam, o Rei mandava fornecer dinheiro, por vezes grandes quantias, que lhes permitia decorar os quartos a seu gosto. A partir do inicio do seculo XVIII foram sendo mobiliados definitivamente alguns aposentos, de modo que sob Luís XVI quase todos tinham mobiliario, aliás bem modesto. Mas os presos conservaram o direito de, após o interrogatorio, mandar vir de fora os objetos que desejassem.

Porisso alguns quartos eram até luxuosas. O do conde de Belle-Isle, por exemplo, tinha um serviço de linho fino para mesa, uma baixela de prata, um leito guarnecido de damasco vermelho bordado a ouro, quatro tapeçarias, dois espelhos, um guarda-fogo com a mesma guarnição que o leito, dois biombos, poltronas, cadeiras estofadas, mesas, comodas, sofás, castiçais de cobre prateado, etc. E para ocupar os ocios, uma biblioteca de 343 volumes.

Parece que essa questão de livros tinha muita importancia. Se um detido, mesmo de classe modesta, não encontrava na biblioteca do castelo alguma obra que lhe interessasse, a administração mandava adquiri-la, ainda que custasse bom dinheiro.

A pão e água...

Mas, "primum vivere ..." Antes de se entregarem ao estudo os suditos da Sua Majestade recolhidos ao seu castelo da Bastilha queriam alimentar o corpo (à custa da Real Fazenda, naturalmente). E como comiam! Constantin de Renneville, que esteve preso nos fins do seculo XVII, no libelo que escreveu contra a Bastilha conta que seu primeiro jantar na prisão constou de "uma esplêndida sopa de ervilhas e alface, bem preparada e de bom aspecto, com um pedaço de frango; em uma travessa uma suculenta posta de carne, com um molho de salsa; em outra um pastel acompanhado de arroz com vitela; aspargos, cogumelos, trufas, e como último prato uma lingua de carneiro guisada. Para sobremesa, biscoitos e maçãs. O carcereiro quis ter a amabilidade de me servir o vinho: era um excelente Borgonha". As sexta-feiras e durante a quaresma os presos deviam jejuar: "Eu tinha, diz Renneville, seis pratos e uma sopa de marisco. Entre os pratos de peixe vinham sempre fresquissimos linguados, percas, etc". Passado algum tempo, Renneville começou a receber a pensão dos presos de baixa categoria: "uma bôa sopa de pão, um regular pedaço de carne, uma lingua de carneiro guisada e dois bolos para sobremesa. E assim se manteve durante todo o tempo em que fui obrigado a permanecer em tão aborrecido local; por vezes o cardapio era aumentado com uma asa ou coxa de frango e dois pequenos pasteis".

A Tavernier, homem de baixa extração e acusado de conspirar contra a vida do Rei, um dos loucos encontrados na fortaleza no dia 14 de julho, recebeu durante o mês de novembro de 1788, alem de suas refeições habituais: quatro garrafas de aguardente, sessenta de vinho, trinta de cerveja, duas libras de café, três de açúcar, uma perua, ostras, castanhas, maçãs e peras.

"O governador de Launey, conta Poultier d'Elmotte, vinha frequentemente conversar comigo; procurava saber que especie de alimentação eu queria e ordenava que me fosse servido o que eu desejasse".

O Rei tambem vestia os presos pobres. Não, naturalmente, como hoje se usa, com uniformes de presidiario, mas com casacões almofadados com pele de coelho, casacos forrados de seda e trajes fantasia, tudo feito sob medida. A mulher do comissario Rochebrune procura por toda a cidade uma fazenda de seda branca com flores verdes, para atender o pedido de uma prisioneira, Mme. Sauvé. "Snr. Major, escreve o preso Hugonnet, as camisas que trouxeram não são as que pedi, pois lembro-me de ter escrito que queria finas e com punhos bordados e as que me mandaram são grosseiras, de mau pano e com punhos proprios para um carcereiro; peço-vos, portanto, devolve-las ao sr. comissario: que as guarde, para mim não servem".

A Bastilha, meio de enriquecimento

Até meados do seculo XVIII os presos podiam optar por um regime de vida mais modesto e guardar o que sobrasse da importancia destinada à sua manutenção. Com isso alguns chegaram a amealhar pequenas fortunas. A partir daquela época, porém, esse dinheiro devia ser aplicado integralmente ao fim a que era reservado.

A liberdade

Por melhor que fosse a vida na Bastilha, os prisioneiros geralmente anciavam pela liberdade. Esta, como a prisão, resultava de uma "lettre de cachet".

O governador da fortaleza vinha ao quarto do preso noticiar-lhe que estava livre. Cumpridas as formalidades, mandava servir ao que fôra seu hospede um magnifico jantar de despedida. Se se tratasse de pessoa de qualidade, convidava-o para sua mesa e, feitas as despedidas, mandava conduzi-lo em seu proprio carro acompanhando-o por veres até seu destino.

Naturalmente, a ordem de libertação nem sempre era tomada à risca. Se o preso lutava com dificuldades para se instalar lá fora, permitia-se-lhe que ficasse na Bastilha por mais tempo, até arranjar as coisas. E isso se deu muitas vezes. Muitos antigos prisioneiros — Le Maistre de Sacy, Mme. de Staal, Fontaine, o Padre Morellet, Dumouriez, o próprio Renneville, entre outros — referiam-se com saudades aos tempos felizes que passaram no castelo de Santo Antonio.

O enigma da Bastilha

Essa é a verdade sobre a Bastilha. Garantem-no a idoneidade e a autoridade do insigne Funck-Brentano, de cuja obra extrairam-se dados históricos. Garantem-no as fontes de que se serviu aquele historiador, a saber, os arquivos da famosa prisão de Estado, compostos de milhares de documentos, que foram reunidos na Biblioteca do Arsenal, em Paris, bem como as memorias de numerosos antigos prisioneiros. Como então a Bastilha se tornou simbolo da opressão, da tirania, e sinônimo de prisão asperrima e deshumana?

A explicação se encontra na propaganda revolucionaria, que aliás também conseguiu divulgar uma imagem adulterada de tantas outras instituições do "ancien régime".

Já nos últimos decenios que antecederam a Revolução a lenda da Bastilha criara raizes na fantasia popular. "A Bastilha, diz Restif de la Bretonne, era um terrivel espantalho, para o qual não me atrevia a olhar quando, ao cair da tarde, passava pela rua Saint-Gilles". Chevalier, major da Bastilha, dirigindo-se ao Lieutenant de Policia, fala das historias que circulavam a respeito da prisão: "Ainda que completamente falsas, dizia, julgo-as perigosas pela repetição que delas se faz há muitos anos".

De resto, o misterio de que a Bastilha se criava oferecia campo propicio ao desenvolvimento de toda a sorte de lendas. Quando um preso entrava na fortaleza, em uma carruagem com as cortinas descidas, os soldados da guarda deviam virar-se para a parede ou baixar as viseiras. Todo o pessoal da guarnição estava obrigado a guardar o mais absoluto segredo sobre a identidade dos prisioneiros e a vida que levavam. Ao ser posto em liberdade, o preso era convidado a assinar um compromisso de nada revelar do que tivesse visto no interior dos formidaveis muros do castelo (diga-se de passagem que muitos recusavam-se a assinar tal compromisso, sem que isso retardasse sua libertação, enquanto outros contavam a quem os quisesse ouvir tudo que sabiam e muito do que não sabiam, não constando que tenham sido incomodados por esse motivo).

Já ficou dito que a autoridade do Rei na França de antes da Revolução era a condição mesma da ordem. Seus fundamentos eram a tradição, e o amor e temor do povo. Amor aos filhos pelo pai, a autoridade real tendo se originado historicamente da autoridade paterna. E temor igualmente filial, resultante mais da grandeza, da magestade, do esplendor da realeza do que propriamente de sua força efetiva.

Apresentar a Bastilha como um temivel instrumento de opressão e tirania foi um dos muitos meios de que se valeu a propaganda revolucionaria para resfriar o amor do povo pelo Rei.

Mas, por outro lado, isso aumentava o temor, que era justamente o freio daqueles que, constituindo a bôrra da população, eram os mais seguros cooperadores potenciais da obra revolucionaria. Levando essa mesma ralé a derrubar aquilo que lhe apresentavam como o simbolo do poder real, a Revolução conseguiu fazê-la sentir a fraqueza do Rei e sua propria força.

Perdido o respeito pela autoridade paternal do Rei, o povo entregar-se-á a todos os excessos e a anarquia extender-se-á pela França. Para reimplantar a ordem Napoleão usará um guante de ferro e criará a formidavel máquina administrativa e policial do Estado moderno.

A verdadeira importancia da jornada de 14 de julho de 1789 reside nisso; no enorme impulso que deu à transição da velha França tradicional e organica, com suas liberdades e franquias, para a França administrativa e policial dos tempos modernos. O enigma está em que ainda hoje ela seja comemorada como a aurora da liberdade.