A Bastilha (conclusão)

(Íntegra na 3.a pág.)


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

Em plena luta

Bertrand de Poulengy

A pastoral de Mons. Clausel de Montals, atacando não mais o monopólio e sim o próprio ensino universitário, dividiu nitidamente os campos. Não era mais possível um universitário como Victor Cousin continuar a comédia que representara até então. E todos eles, chefiados por Michelet — que não se comprometera como o célebre professor de filosofia — passaram a defender abertamente o monopólio, enquanto os católicos, percebendo enfim a duplicidade de seus adversários, cerravam fileiras no Partido Católico, dispostos a combater até à vitória. Todos os jornais católicos e legitimistas seguiram "L’Univers", que não perdia oportunidades para demolir as posições pouco seguras do adversário, obrigando-o a revelar-se francamente favorável à Universidade.

Em janeiro de 1844, Luís Felipe, na fala do trono, anunciou que a questão da liberdade de ensino teria uma solução. Em resposta, a Câmara, depois de aplaudir, acrescentou esperar que o governo "mantivesse a autoridade e a ação do Estado sobre a instrução pública". Não poderia haver indicação mais clara sobre a orientação que o governo pretendia tomar.

No dia seguinte, Louis Veuillot lembrava em "L’Univers" que os católicos não amavam, nem detestavam, nem temiam o governo: "Não desejamos que lhe aconteça qualquer infelicidade. Aceitamo-lo tal como é, como um companheiro de viagem pelo qual temos pouca simpatia, mas que provavelmente vale tanto como qualquer outro. Com ele desejamos nos arranjar, mesmo porque não sabemos se vamos conservá-lo para sempre. Sem querer ofendê-lo, podemos lhe afiançar que não seremos nós os primeiros a morrer".

Tendo o governo revelado claramente suas intenções, a campanha se acentuou. Além dos artigos nos jornais, os católicos passaram a escrever brochuras, a dirigir petições à Câmara e a organizar núcleos de resistência. De seu lado, disposto a sufocar o movimento, mas sem coragem para atingir os chefes, o Ministério passa à ação, instaurando processo contra o Padre Cambalot, que num relatório muito vivo criticara a Universidade e a inércia do Arcebispo de Paris, Monsenhor Affre. Este não era partidário da luta, e repetia sem cessar que o melhor meio de combate eram relatórios confidencias, a serem enviados ao governo por todos os Bispos da França.

Os motivos invocados para a abertura do processo contra o Padre Cambalot revelaram bem a disposição do governo em defender a Universidade. Era o Padre Cambalot acusado de ter difamado e injuriado a Universidade, e de ter tentado perturbar a paz apontando ao ódio e desprezo dos seus leitores uma classe respeitável e o próprio governo do Rei.

Durante o julgamento, a acusação não deixou de pôr em relevo o silêncio do Arcebispo de Paris. Não correspondia à realidade, pois Monsenhor Affre tinha enviado ao Rei um relatório — confidencial... — assinado por todos os bispos de sua província eclesiástica, contra o monopólio da Universidade. Revoltado com o julgamento, Louis Veuillot publica o relatório de Mons. Affre, transformando a condenação do Padre Cambalot num verdadeiro triunfo para a causa católica. Quase todos os bispos da França acompanharam Mons. Affre, publicando relatórios, protestos e pastorais.

Luís Felipe, vendo que tinha dado um passo em falso, convidou o Padre Cambalot a almoçar nas Tuilleries, depois de este cumprir a pena de quinze dias de prisão, que lhe fora imposta. Nesse almoço, o virtuoso sacerdote repetiu ao Rei todas as acusações que fizera no seu relatório. O resultado foi um recrudescimento da campanha e novos processos instaurados pelo governo. Montalembert, na Câmara dos Pares, protestava contra essa perseguição, e Louis Veuillot publicava em "L’Univers" noticiários sobre os julgamentos, mostrando a parcialidade e injustiça dos processos.

A 10 de março de 1844, Veuillot anunciava em "L’Univers" uma brochura narrando o caso do Padre Cambalot e historiando toda a questão do ensino. A brochura foi apreendida no dia em que saiu. Nas pessoas de Louis Veuillot e Jean Barrier, "L’Univers" foi acusado de provocação à desobediência e desacato às leis, bem como de apologia de fatos reputados delituosos.

A sessão de julgamento do processo então instaurado já prenunciava uma nova vitória do Partido Católico. A opinião era francamente favorável aos acusados, e não foi sem hesitação que Veuillot e Jean Barrier foram condenados a 3.000 francos de multa cada, e a um mês de prisão. Imediatamente "L’Univers" abre uma subscrição pública para o pagamento das multas. Um dos primeiros subscritores foi o próprio Arcebispo de Paris, e dentro em pouco atingiu-se a soma necessária, tal a prontidão com que os católicos corresponderam à iniciativa.

Indo para a prisão, Veuillot esperava ter lazeres para se dedicar à literatura, seu sonho constante, e felizmente nunca realizado. Levara o projeto de escrever dois livros, mas tendo o governo resolvido tratar com benevolência os prisioneiros, permitiu que recebessem visitas, e seus dias de cativeiro foram tão cheios quanto os de liberdade, ou até mais. Cardeais, bispos, políticos, membros da aristocracia, todo o partido legitimista, Montalembert e a esposa, delegações católicas de todas as partes da França, fizeram questão de levar solidariedade ao prisioneiro ilustre. De tal forma que, quando solto, Veuillot mais uma vez teve que renunciar à sua literatura, voltando ao posto de combate e sacrifício em "L’Univers". Foi então que se estreitou a amizade entre ele e Mons. Parisis, que dentro em breve se tornaria um dos paladinos da ortodoxia na França e um sustentáculo de "L’Univers" no seio do Episcopado francês.

Voltando à liça, Veuillot veio encontrar a situação modificada. Sua prisão fortificara de tal forma o Partido Católico, que o governo resolvera abandonar a perseguição. Com a intenção de cortar o mal pela raiz, fizera com que o ministro da Instrução Pública, de novo Villemain, apresentasse um projeto de lei favorável ao monopólio, o qual ia ser defendido na Câmara por Thiers, um dos mais hábeis políticos da época. A reação foi violenta. Vendo que não lhe era possível fazer aprovar o projeto Villemain, a Universidade foi obrigada a distrair o movimento católico, passando ao ataque com uma formidável campanha contra os jesuítas, que desde sua fundação atraem o ódio e a má vontade dos inimigos declarados ou ocultos da ortodoxia.

Os universitários tiraram vantagem dessa mudança de tática, pois conseguiram fazer a primeira brecha no Partido Católico, que até então se apresentara coeso e caminhara de vitória em vitória.


ASPECTOS DA ÍNDIA

Ressentimentos nacionalistas - Os conflitos religiosos - Ação política de Gandhi e seus adeptos

Pouca gente está ao par do que vem acontecendo na Índia, nestes últimos anos. Talvez seja porque o mundo se acostumou a ver naquele país oriental, um povo apenas semicivilizado, que pouca ou nenhuma importância pode ter no panorama internacional. Todavia, essa ideia longe está da realidade, mormente hoje, devido à divisão do mundo em duas facções que se opõem, soviética e anti-soviética. Esta divisão confere grande importância à posição que a Índia eventualmente tomará, pois seu enorme potencial humano e econômico poderá influir de maneira decisiva no resultado de uma guerra.

Nacionalismo e socialismo

O término da segunda guerra mundial marcou o reinicio das manifestações de nacionalismo na Índia. Os excessos praticados pelos soldados brancos, quer ingleses quer norte-americanos, que ali esperavam repatriamento, excitaram justa indignação entre os nativos. Essa indignação se revelou das maneiras mais violentas, culminando mesmo em massacres terríveis. Até os indígenas vestidos à europeia se tornaram objeto de demonstrações hostis. A desordem social transformou-se em realidade sensível.

As greves se sucediam. Até os criados rebelavam-se contra seus senhores, reclamando aumento de salário.

Observação interessante, os ingleses, no meio de toda essa Babel, sempre se fizeram notar por sua bravura. Por frívolos e culposos que fossem os seus costumes, nunca eles perderam a calma. Atribua-se isso ao seu tradicional desprezo pelos nativos ou a outro qualquer motivo, mas o fato é que eles sempre souberam estar à altura das situações em que se colocaram.

Religiões indus

São duas as religiões predominantes na Índia: a muçulmana, mais concentrada no Paquistão, e a bramânica, preponderante no Industão. Sujeitos, como estavam, à enérgica administração britânica, os membros de ambas as crenças estavam mais ou menos acostumados a viver em boa paz. Dissemos mais ou menos, porque frequentes eram os conflitos: do tipo algazarra diante de uma mesquita porque um açougueiro muçulmano abatera uma vaca.

A propósito desta última causa de atritos. Jurnah, líder separatista do Paquistão, usava este pitoresco argumento em favor da independência de sua nação: «Os indus veneram as vacas, dizia, e nós, nós a comemos».

A nós ocidentais, que pouco conhecemos do fanatismo dos idolatras, poderá parecer ridículo tal argumento; contudo não pensavam assim os muçulmanos, que tinham todos os motivos para temer que, após a partida dos ingleses, viessem a sofrer as consequências do fanatismo dos indus, cujo número os superava cerca de 200 milhões.

É de se ver facilmente o absurdo que existe em reunir debaixo de um só governo duas nações de religiões diversas e de costumes que se opõem categoricamente. A divisão em país bramânico e país muçulmano, foi consagrada a 15 de Agosto de 1947 pela independência da Índia. Nascera o Paquistão, Jurnah e a Liga Muçulmana venceram a batalha contra Nehru, Gandhi e o Congresso.

O êxodo

Novos problemas surgiram ainda: era grande o número de indus no Paquistão e de muçulmanos no Industão. Foi decretado o êxodo. Famílias radicadas havia centenas de anos num lugar, tiveram de se mudar para longe, abandonando o que não pudesse ser levado, para tentar nova vida numa região completamente desconhecida. Grande parte não chegou ao fim : o cólera, as inundações e os massacres, que então recomeçaram, exterminaram a maioria dos retirantes.

Após o êxodo, houve como que um apaziguamento, mas não durou muito. Em 1950 os massacres recomeçaram na Bengala oriental e em Calcutá. Hoje eles ameaçam se alastrar. As massas da Índia parece que nunca se tornarão «indianas»; serão sempre indus ou muçulmanas.

O erro do Ocidente a respeito de Gandhi

Uma das maneiras de se fazer uma ideia clara sobre as doutrinas que se chocam na Índia atual, é estudar a doutrina de Gandhi e as reações por ela provocadas, a última das quais, aliás, foi o assassínio do próprio Mahatma.

Os ocidentais prestaram grande tributo à memória do líder indu, mas poucos conheciam a verdadeira personalidade de Gandhi. Muitos, até, o julgavam um «progressista» desejoso de fazer seu povo gozar das vantagens e dos prazeres da civilização. Exponhamos seu pensamento. Em 1909 escrevia ele: «A salvação da Índia consiste em desaprender aquilo que aprendeu durante os últimos cinquenta anos; caminhos de ferro, telégrafo, hospitais, advogados, médicos e todas as coisas análogas devem desaparecer. Aqueles que pertencem ao que se chama as classes sociais superiores devem aprender a levar a vida simples de um camponês, compreendendo que ela proporciona verdadeira felicidade».

Longe estavam seus partidários de pensar como o mestre; poucos deles estariam dispostos a abandonar o luxo e o conforto da civilização, para viver à moda antiga.

Nehru, examinando a atitude de Gandhi em relação às questões sociais, escreveu: «Ele (Gandhi) não tem confiança no socialismo e particularmente no de Marx, porque o socialismo admite a violência. Gandhi não tem desejo algum de elevar a situação das massas acima de um modesto nível, porque um alto nível e os lazeres que éle provoca podem, segundo ele, conduzir à preguiça, à complacência para com suas tendências, e chegar ao pecado».

«Ele não deseja que o povo tome como ideal um conforto e os lazeres cada vez mais acrescidos. O ideal das massas deve ser, pensa ele, o de uma vida moral, consistindo em rejeitar os maus hábitos e procurar sempre menos a sua satisfação».

Segundo Gandhi, «aqueles que querem servir às massas não têm que se esforçar em elevar sua situação material, mas descer ao nível delas. Isto é a verdadeira democracia».

Entretanto, Gandhi nunca praticou esse gênero de democracia. Sua pobreza tinha muito de ostentação. Sua vestimenta, simples que era, não diferia da de muitos seus patrícios. Sua moradia era modesta, mas era frequente estar ele hospedado em casa dos magnatas da indústria que tinham, em geral, residências principescas. Seu regime era vegetariano, porém copiosíssimo. Sua vida não diferia, pois, daquela levada por muitos «Gourous» indianos que, nada possuindo, são providos pelos seus discípulos tanto do necessário quanto do supérfluo.

Mas os seus íntimos, como o suportavam? Talvez estivessem imbuídos da ideia indiana de que o Mestre faz um favor insigne aos discípulos de quem aceita o devotamento. E, talvez, outra consideração menos mística... Hábil condutor de multidões, era Gandhi utilíssimo para a libertação da Índia. Seria ele útil, em uma Índia livre? Difícil afirmar. O Mahatma não sobreviveu muito à libertação de que participou.

Outra nota interessante. Debaixo de Gandhi hábil político, havia outro Gandhi, impregnado das velhas tradições indianas. Ele não era um autêntico brâmane, mas tinha um espírito profundamente místico, provido de uma religiosidade toda própria. Acreditava que a energia procedente dos sacrifícios que se impunha voluntariamente (o «tapas»), unida à energia proveniente da vontade, davam ao asceta o poder de derrubar todas as divindades, de seus tronos. E talvez pensasse que esse poder lhe facultaria anular a força que os ingleses tinham sobre os nativos e fazer com que estes lhe prestassem obediência. E era nessa atitude, de «gourou» inspirado, que o Mahatma abordava as questões sociais, perfeitamente seguro do que convém aos homens, embora possivelmente essas mesmas questões não o interessassem. Nehru conta que expor uma ideia a Gandhi era o mesmo que expô-la a uma porta fechada. Não seria isso um sinal de quanto eram preconcebidas as idéias do Mahatma? Um de seus discípulos o qualificou certa vez de «Bem amado condutor de escravos», mas a escravidão espiritual não desagrada aos indianos, sendo que a muitos só dá alegria. E a Gandhi muito agradava ser ouvido como líder infalível.

Era contra a riqueza, com seus lazeres, porém nunca sonhou em abolir as grandes fortunas, nem em projetar medidas próprias a pôr obstáculo ao seu crescimento excessivo. Não manifestou o menor interesse pelos operários dos grandes industriais de que era conviva habitual. Segundo ele, os senhores deviam se considerar não como proprietários de suas fortunas, mas como administradores designados por Deus e obrigados a delas se servir para o bem dos pobres. Entretanto, nunca tomou medidas que assegurassem a aplicação dessa doutrina. De acordo com palavras de Nehru, Gandhi queria resolver o problema da Índia pela simples aplicação da moral individual, esquecendo-se ou desprezando talvez a moral social e o bem comum. Ele reduzia o problema social ao problema do pecado. Estes eram os traços característicos do pensamento do Mahatma e deles poderemos tirar certas conclusões.

O assassínio de Gandhi

Quais seriam os motivos do assassínio de Gandhi? Uns o julgavam tíbio no cumprimento de seus deveres de religião; outros achavam que ele não se havia oposto suficientemente à independência do Paquistão. Não se pode afirmar com certeza em que grupo se encontrava Godse, o seu assassino. O que é certo é que esses e muitos outros grupos, planejavam a sua morte. Gandhi procurava a sua mística. Godse possuía uma mística diferente. Hoje elevam-se monumentos ao primeiro. Quem sabe se Godse não os terá um dia?

Nos bastidores da agitação religiosa

Quais serão as causas que levam as massas indianas a estar em constante agitação religiosa? Podemos dar como certa a influência da extrema ignorância do povo, facilmente sugestionável pelos seus líderes. Uma hipótese plausível é que ao puro fanatismo se associem inconfessáveis interesses econômicos e políticos de pessoas e sociedades, a quem convém manter a desordem e as lutas internas nos países do Extremo Oriente. Qual será o papel dos supremos dirigentes da Índia nisso tudo? Formulando melhor: quais serão os supremos dirigentes disso tudo? Não o sabemos e nada podemos afirmar. A única circunstância positiva que conhecemos, é o papel de fiel da balança que a Índia procura se arrogar diante da atual tensão internacional, e a maneira como essa posição se revelou na última conferência da Commonwealth.

Outro aspecto curioso a considerar na Índia, é a extraordinária missão levada a cabo pelo Mahatma Gandhi e o rápido desaparecimento daquele líder, logo após o término da mesma missão. Gandhi era o homem ideal para preparar e proclamar a independência da Índia. Suas doutrinas antiprogressistas, ele não as procurava executar, não hesitando mesmo, como vimos, em prestigiar pessoas que em tese atacava. E mesmo antes da libertação, éle não poderia pôr em prática suas doutrinas. Entretanto, proclamada a independência, tornou-se um ser inútil, talvez incômodo; o remédio era eliminá-lo. Pode ser que sua morte fosse resultado de puro fanatismo; estaria algo por detrás desse fanático que o assassinou ? Impossível saber. Porém não resta a menor dúvida de que tudo aconteceu como se a Rússia, ou coisa parecida, houvesse feito uma grande encomenda, e já a tenha recebido quase toda. E na Europa já se fala em fórmula «Nehru» para a paz.

Estejamos atentos.


NOVA ET VETERA

Apostolado petroleiro

J. de Azeredo Santos


A salvação deve vir de onde veio a perversão

Hyde Park é uma instituição tipicamente inglesa. Ali se permitem os maiores absurdos em matéria de oratória. Credos religiosos e políticos dos mais extravagantes ali encontram os seus defensores e os seus prosélitos ocasionais. Chesterton em "Flyng Inn" faz uma alusão pitoresca a outro local, certa cabana na praia de Brighton, onde também era livre a pregação de qualquer sistema filosófico, regime político ou plano de reforma das regras de ping-pong. Nada de surpreendente, portanto, que em tais sítios um agitador qualquer dê livre curso às suas idéias subversivas mais ou menos nos seguintes termos:—

"É hoje lugar comum a afirmação sediça a sustentação da tese de que estamos em face de vertiginosa e incoercível manifestação da ascensão das massas. Elas, às vezes, quase inconsciente, mas segura e paulatinamente, vão arrebatando à burguesia a liderança política para, amanhã, poderem estar em situação de atenuar as diferenças oriundas do poder econômico".

"É a progressiva realização da democracia econômica, por meio do sufrágio universal, da instrução obrigatória, facilitada pelos instrumentos de difusão das idéias, entre os quais se situam em primeiro plano, a imprensa, o cinema e a rádiodifusão".

"No dia em que foi inscrito nos textos legais dos povos civilizados que "todos são iguais perante a lei", os privilégios as divisões dos indivíduos em castas e classes, as ligações de parentesco e o favoritismo começaram a descer irremediavelmente a ladeira de seu inevitável declínio. É claro que o processo tem de ser lento e, muitas vezes, sujeito a bruscas interrupções de que são exemplos palpáveis a vitória do fascismo e do stalinismo em algumas regiões da terra".

Na marcha geral do progresso humano, entretanto, esses eclipses são efêmeros, passageiros e fugazes.

"Nada mais poderá deter essa marcha vitoriosa. Quem tem clarividência para entender a trajetória do progresso humano, vê com límpida clareza esta verdade. São momentos distintos dessa caminhada: as leis agrárias dos gracos; as lutas entre patrícios e plebeus, com a parcial vitória dos últimos; a divina pregação de Jesus, repassada daquela profunda humanidade, testemunha do encontro entre o passageiro e o eterno; a rebelião de Spartaco; o artesanato livre da idade média; as visões, embora imperfeitas, de Campanela e de Tomás Morus; em certo sentido, a própria Revolução Francesa; as reivindicações sociais, às vezes manifestadas de forma violenta, no fim do século XIX; as Encíclicas papais, "Rerum Novarum" e "Quadragesimo Anno" e as lutas hodiernas pela liberdade sindical."

* * *

Em Hyde Park ou na cabana da praia de Brighton ninguém estranharia esta linguagem. Mas o que acaba de ser exposto apareceu, tal qual, e com bastante destaque, em "O Diário", jornal católico de Belo Horizonte (última página do número de 7 de novembro de 1950).

O texto é claro:— Não se trata da transformação da massa em povo consciente, mas da deslocação da liderança política e econômica das classes superiores para as massas. Ora, para um católico, a chamada "ascensão das massas", entendida neste sentido, longe de ser um sinal de progresso, é um dos maiores flagelos que podem desabar sobre a humanidade. A massa é, segundo Pio XII, "a inimiga capital da verdadeira democracia e de seu ideal de liberdade e de igualdade". Mesmo porque, para o católico, o conceito de liberdade e de igualdade se acha a léguas do conceito revolucionário de igualdade, que é um sinônimo do socialismo. Segundo a doutrina social da Igreja, os privilégios não se confundem com as acepções de pessoas, nem as classes se confundem com as castas, nem os laços de parentesco com o favoritismo. Misturar todos esses elementos díspares e antagônicos e saudar seu declínio como "inevitável" e como ligado à "marcha geral do progresso humano", é ao mesmo tempo mostrar uma prodigiosa ignorância do pensamento social católico e um pendor irresistível para formar ao lado dos mais sanhudos ferrabrases da revolução proletária.

* * *

No que diz respeito ao artificialismo da igualdade perante lei, que vem destruindo as classes e as legítimas superioridades sociais, devemos nos lembrar que "em um povo digno de tal nome, todas as desigualdades, derivadas não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas, desigualdade de cultura, de haveres, de posições sociais — sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mutua caridade — não são absolutamente um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e de fraternidade". E assim como são desiguais os homens, também são desiguais as famílias e os diferentes grupos sociais, tendo "cada um o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, no posto e nas condições em que os desígnios e as disposições da Providência os hajam colocado". (Pio XII na radiomensagem do Natal de 1944).

Tudo isso, como se acha exposto pelo cronista de "O Diário", está suficientemente errado. Mas ainda é pior. Pois é uma inversão da realidade patente aos olhos de quem contempla os acontecimentos políticos e sociais contemporâneos com inteligencia e boa fé. A massa, ensina-nos Pio XII, é de si amorfa e mecânica. Recebe impulso de fora, "fácil instrumento nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, a cada passo, hoje esta, amanhã aquela outra bandeira." Como se pode, portanto, afirmar que a massa arrebatou de quem quer que seja a liderança política? A "ascensão das massas" é sinônimo da ascensão ao poder político e econômico de aventureiros que a elas não pertencem e que lhes manobram as forças elementares. "Da força elementar da massa, habilmente manejada e usada, pode servir-se o Estado: nas mãos ambiciosas de um só ou de muitos, que as tendencias egoístas hajam artificialmente agrupado, o próprio Estado pode, com o apoio da massa, reduzida a não ser mais que uma simples máquina, impor ao seu arbítrio a parte melhor do verdadeiro povo: o interesse comum fica assim gravemente e por longo tempo golpeado e a ferida bem dificilmente será curada." (Pio XII, doc. cit.)

Vê-se, portanto, que politicamente a massa é um elemento nocivo e instrumento para o exercício de tirania sobre a parte melhor do verdadeiro povo, e daí o interesse revolucionário em não resolver a questão social, mantendo o proletário como proletário, no que se prova a identidade de vistas do liberalismo e do socialismo.

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E seria o caso de provocar boas gargalhadas, si o assunto não fosse demasiadamente triste e sombrio, a pilhéria da realização da "democracia econômica" por meio do sufrágio universal, da instrução obrigatória, facilitada pelos instrumentos de difusão das ideias, entre os quais se situam em primeiro plano a imprensa, o cinema, e a radiodifusão. Como se o sufrágio universal emprestasse à massa infalibilidade no sentido da escolha dos melhores e mais capazes, quando o que vemos em nossos dias pelo mundo inteiro é a consagração da mediocridade e da demagogia, justamente pelo predomínio eleitoral das massas. Eis porque Pio IX já dizia:—"Franceses, o vosso sufrágio universal é a vossa mentira universal". E Pio XII agora acrescenta:— "Por toda a parte, atualmente, a vida das nações se acha desagregada pelo culto cego do valor numérico. O cidadão é eleitor. Mas, como tal, ele não é na realidade senão uma das unidades, cujo total constitui uma maioria ou minoria, que uma deslocação de alguns votos, de um único mesmo, bastará para inverter." (Alocução aos membros do "Movimento Universal por uma Confederação Mundial" — 6-4-1951) Como se a instrução obrigatória quando ministrada pelo moderno Estado leigo não fosse uma fonte de naturalismo e de destruição da personalidade humana. Como se a imprensa, o cinema e o rádio, em mãos inescrupulosas como frequentemente acontece, não fossem um dos mais terríveis instrumentos de todos os tempos, postos em ação pelas forças do mal para corromper a humanidade em escala sem precedentes. A consciência humana se vê por todos os lados dilacerada, como nos diz a Radio Vaticana, por duas potências:— a que nos fornece a mentira e a que nos recusa a verdade.

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Quanto à preparação remota da Cidade Totalitária que ameaça devorar o mundo moderno, pedimos ao cronista de "O Diário", por amor à verdade e à coerência, que dela retire pelo menos " a divina pregação de Jesus", "o artesanato livre da Idade Média" e as "Encíclicas papais". Em compensação, pode acrescentar a revolta de Lutero, pai de todos os igualitarismos, para tornar o quadro mais completo. E se faz figurar, nessa marcha vitoriosa das massas, "em certo sentido a própria Revolução Francesa", por que não colocar, em certo sentido, também a Revolução Soviética que foi o maior movimento de massas do mundo hodierno?

Um dos aspectos curiosos dessa cegueira de certos católicos é que os próprios revolucionários não escondem a convicção de não ter a massa ou o proletariado nada a ver com a liderança da subversão social. Pertenceriam Mirabeau, Robespierre, Danton à massa? Seriam Karl Marx e Lenine meros proletários? Assim é que Bernard Shaw confessa em sua recapitulação dos progressos do socialismo fabiano na Inglaterra:— "Nós fabianos éramos uma turma da classe média; e quando um proletário se unia à nós, ele não podia trabalhar mentalmente na mesma velocidade e do mesmo modo contra o mesmo fundo de quadro cultural, como nós o fazíamos. Ele era, portanto, um trambolho para o nosso trabalho, e finalmente nos abandonava com suas desconfianças de classe intensificada, gritando:— "Não confiem nesses homens!" Como nossas relações eram bem amigáveis desde que trabalhássemos em compartimentos separados, aprendemos que a segregação cultural é essencial nas pesquisas, sendo-lhes fatal a confraternização indiscriminada." (Bernard Shaw em Sixty Years of Fabianism" no volume "Fabian Essays", Jubilee Edition, 1948).

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Todo o resto da crônica de "O Diário" é destinada a provar a incapacidade da burguesia para entender essa "marcha geral do progresso humano" e que nada se pode esperar de uma coletividade em que a maioria dos pretensos líderes é "vesga, zarolha, mesquinha, capitulacionista e demissionária". Resultado:— Como os responsáveis não entendem o espírito de nosso tempo e as modestas reivindicações de nosso povo, estaríamos ameaçados de assistir "ao cair da estrutura social de um povo que poderia evolucionar sem tropeços, sem lutas, sem demasias, conservando as linhas clássicas de sua fisionomia nacional, informada nas mais puras fontes da imperecível formação cristã."

Ora, não se pode negar a corrupção generalizada do mundo moderno. O absurdo, porém, é, nesse quadro geral de decadência, falar em evolução e "marcha geral do progresso humano" conseguidas pela substituição da liderança política que, das elites dirigentes, passaria para as mãos das massas. A decadência do mundo moderno vem sobretudo do mau exemplo que procede do alto, "pela frivolidade religiosa das classes elevadas, e pela aberta luta intelectual contra a verdade revelada". Eis porque nos adverte Pio XII "que hoje a salvação deve vir de onde a perversão teve sua origem. Que não é difícil manter no povo a religião e costumes sadios, quando as classes altas caminham em sua dianteira com seu bom exemplo, e criam condições públicas que não tornem desmedidamente pesada a formação da vida cristã, mas a façam imitável e suave. Porventura não é essa a vossa função, diletos filhos e filhas, que pela nobreza de vossas famílias e pelos cargos que não raras vezes ocupais, pertenceis às classes dirigentes?" (Pio XII em alocução ao patriciado e à nobreza romana, 11 de janeiro de 1943).

A salvação, portanto, deve vir de uma elite verdadeiramente informada dos princípios da doutrina social da Igreja, que se anteponha à pseudo-elite dos demagogos exploradores das massas. E para isso ter-se-á que renunciar ao estranho apostolado petroleiro que vê nas massas, não a infeliz turbamulta largada aos seus instintos pela ação criminosa de vários séculos de trabalho maçônico de descristianização, mas o caldo de cultura de onde surgirá o demiurgo que encerrará a marcha vitoriosa do progresso “humano". Ou uma elite de filhos de Deus transforma essa massa em povo hierarquizado e consciente, ou uma pseudo-elite de filhos das trevas prosseguirá em sua obra de destruição e de nivelamento pela barbarie científica do totalitarismo moderno.