EVOLUÇÃO,

UMA HIPÓTESE GRATUITA

O Transformismo tornou-se hoje em dia uma espécie de dogma indiscutível. Em muitos círculos culturais universitários, é com sorriso de compaixão que são vistos aqueles que ainda teimam em se conservarem fixistas. E em certos meios católicos há o esforço por conciliar o «sacrossanto dogma» da evolução com as verdades reveladas. Não é preciso refletir muito para suspeitar que esta conciliação se faça com sérios arranhões à Revelação. Causa pena esta atitude dos católicos, pois Transformismo não passa de mera hipótese; tal atitude manifesta uma desconfiança com relação à Sagrada Escritura, à Tradição e ao Magistério Eclesiástico.

Tanto mais censurável este temor dos católicos, quando são frequentes as asserções dos cientistas, a respeito da precariedade da hipótese transformista. Damos alguns exemplos: Lemoine, professor no Museum, antigo evolucionista convicto, escrevia em 1937: «A evolução é uma espécie de dogma, no qual seus padres já não creem mais: apenas a mantém para uso do povo. Eis uma coisa que é preciso ter coragem de dizer para que os homens das gerações futuras orientem suas pesquisas de outra maneira. (Encyclopédie française, vol. V). — Em 1951, o Professor H. Rouvière, da Academia de Medicina de Paris: «Depois de um longo período de triunfo, o Transformismo ruiu; e o mutacionismo que agrupou a maior parte dos seus adeptos, sofre, também ele, uma grande crise. (Anatomie philosophique. La finalité dans l'évolution — Paris). No ano seguinte, o professor Rabaud escrevia: «Há muito tempo se fala numa crise do Transformismo... Atualmente pensam certas pessoas que a crise evoluiu para a «falência», e consideram-se os «últimos transformistas» como gente apegada a concepções há muito fora de moda: a ideia transformista seria do número das ideias obsoletas» (Transformisme et adaptation — Paris, 1942).

Não é, pois, de admirar que o Professor Raguin, um dos mais eminentes geólogos da França afirmou, em 1943: «Verificando, como a maior parte das pessoas que estudaram estas questões, um abandono total ou parcial do sistema transformista pelos líderes das ciências da vida, chocou-me sempre ver que, não obstante, continuam, no ensino da mocidade, as doutrinas transformistas a serem apresentadas como uma síntese definitivamente incorporada ao patrimônio intelectual da humanidade».

Os próprios defensores atuais do Transformismo apresentam-no apenas como opinião que explicaria alguns fatos, mas muito longe de constituir conclusão rigorosamente científica. Assim, o professor Grassé, da Sorbonne, no seu curso de 1943: «Não se duvida mais da evolução, noção sem a qual a Natureza permaneceria, no seu conjunto, ininteligível, máquina de explorar o passado, talismã que abre os paraísos ou os infernos, explica o presente e projeta vivos clarões sobre o futuro; mas seu mecanismo é ainda hipotético. Nenhuma das explicações propostas — e elas são numerosas — atende, com exatidão, aos fatos e às experiências. O enigma da adaptação do organismo ao seu meio, às circunstâncias, perdura inscrito no frontispício do templo evolucionista». Como o professor Grassé pronunciam-se outros ardentes evolucionistas.

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Por tudo isso seria de esperar que certos estudiosos católicos tivessem mais reserva com respeito à evolução e não se apressassem a comprometer a Revelação com uma teoria ainda muito vacilante.

Isso tanto mais, que no próprio campo científico há sábios habituados ao exame minucioso dos dados das experiências, e inclinados a tudo resolver só em nome da Ciência, que absolutamente não creem na evolução.

Oscar Kühn, é preciso que se diga, atina bem com o cardo da questão, quando assevera que o Evolucionismo generalizado tem raiz filosófica, e não propriamente científica e experimental. É de fato nas tendências do espírito humano, laicista e contrário a todo sobrenatural, que vamos encontrar este adoçamento em acolher toda ideia da evolução. Razão pela qual, nós católicos, devemos não só não esquecer os argumentos de ordem filosófica e teológica que rejeitam o evolucionismo, mas dar aos mesmos a maior importância.

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Neste sentido, digna de todos os louvores é a obra do Eminentíssimo Cardeal Ernesto Ruffini, Arcebispo de Palermo na Sicília, conhecido por seus estudos bíblicos: «La Teoria dell'Evoluzione secondo la Cienza e la Fede» (Orbis Catholicus, Roma, 1948). Aí examina o ilustre Purpurado os argumentos propostos para admitir-se a evolução restrita ao corpo humano, e rejeita-os todos. O Transformismo, afirma peremptoriamente o sábio Arcebispo de Palermo, não se pode estender ao corpo do homem. E apresenta as razões clássicas, que, apesar da pressão dos evolucionistas, conservam ainda todo seu valor demonstrativo: a interpretação óbvia das palavras do Genesis; a comunidade de origem do homem e da mulher; o consenso dos Padres da Igreja, e dos Doutores quer antigos quer recentes; o senso católico dos fiéis que sempre aceitou a criação direta do homem, mesmo quanto ao corpo.

Todos estes argumentos não perderam seu valor; especialmente porque os evolucionistas nada apresentaram de realmente probativo em favor de sua tese.

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Não devem, no entanto, os sábios abandonar suas pesquisas. Dentro dos limites traçados pela Revelação e consagrados nos dogmas do Cristianismo, que requer a intervenção divina na formação do primeiro homem e da primeira mulher, o monogenismo e tudo o mais que ensina sobre a Redenção e o pecado original, há plena liberdade no estudo do problema, em cuja solução entram os dados da Fé e das Ciências Naturais. Esta liberdade, dentro dos limites acima expostos, está consagrada na recente Encíclica «Humani Generis», como CATOLICISMO teve oportunidade de salientar em «Correspondência» de seu número 5. Já em 1941, falando à Academia Pontifícia das Ciências, estabelecia Pio XII o mesmo critério: «Somente do homem poderia provir um outro homem que o chame de pai e progenitor; e o auxílio dado por Deus ao primeiro homem (Eva) procede igualmente dele; ela é carne de sua carne tornada sua companheira, e derivada dele; porque foi dele que ela foi tirada. No alto da escala dos viventes, o homem, dotado de alma espiritual, foi colocado por Deus como o príncipe e o soberano do reino animal. As numerosas pesquisas, quer da Paleontologia, quer da Biologia ou da Morfologia sobre outros problemas que respeitam às origens do homem, nada trouxeram ainda de positivamente claro e certo. Não nos resta, pois, senão deixar ao futuro a questão de saber, se algum dia a Ciência, iluminada e guiada pela Revelação, poderá fornecer resultados seguros e definitivos sobre problema tão importante. »


CORRESPONDÊNCIA

Escreve-nos A. G. C. (Lage do Muriaé, Est. do Rio): "Uma amiga emprestou-me um livro sobre os Novíssimos, com intuito de me proporcionar boa leitura. De fato, aproveitei muita coisa nesse livro: algumas, porém, achei estranhas, e peço a CATOLICISMO a bondade de explicar. A primeira é que o Autor afirma que o Inferno não é um lugar, onde se encontram as almas; mas um estado das mesmas almas, privadas da visão de Deus. Está certo? Então, como se explica a expressão "Cair no Inferno", "descer ao Inferno", etc., tão comum mesmo na pregação dos Padres, e nos livros de piedade? — A outra coisa que estranhei muito é o autor afirmar que no Inferno não existe fogo propriamente dito. Que a palavra fogo serve para indicar o tormento que sofrem os condenados com o remorso da consciência, tão atroz que se compara com a dor causada pelo fogo. Isto também está cerco? Sempre ouvi dizer que o fogo do Inferno é um fogo verdadeiro, que consegue castigar até as almas".

R. A Revelação nos manifesta os mistérios de Deus. Estes mistérios estão acima de nossa capacidade natural; e mesmo depois que a Bondade Divina se dignou nô-los tornar conhecidos, ainda o conceito que deles formamos é defeituoso. Pois não consegue dar-nos uma ideia adequada da Verdade Revelada. É sempre um conhecimento parcial; exato sim, objetivo, mas não perfeito. A imagem fica sempre aquém da realidade. A razão é que tudo quanto conhecemos, só conhecemos ao nosso modo, na medida de nossa capacidade que é sempre limitada, deficiente; e de maneira muito particular, quando se trata das verdades divinas, as que contem a Revelação.

Não obstante, não proíbe a Igreja que nos esforcemos por ter daquilo que foi por Deus revelado um conceito aproximado. Para tanto, a própria Igreja nos aconselha que nos sirvamos da analogia tomada ao que melhor conhecemos. É este o papel da Teologia. Em outras palavras, deve ela fornecer o dicionário para traduzir em termos humanos as verdades divinas.

Dada a Revelação, estuda a Ciência Sagrada a maneira de conceituá-la, de exprimir-lhe o conteúdo numa ideia que diga aos homens o mistério de Deus. Esta síntese entre o humano e o divino exprime-a Santo Anselmo na célebre frase "Fides quaerens intellectum". O papel da Teologia é dar à fé a intelecção, o conceito.

O perigo a que se expõem os estudiosos, neste ponto, é duplo: preestabelecer-se um sistema filosófico como verdadeiro, e depois obrigar, a todo o custo, os Dogmas revelados a se enquadrarem na teoria tida como certa. Foi o erro de muitos teólogos que naufragaram na Fé desde o início do Cristianismo e o é de muitos recentes que inauguram uma Nova Teologia, censurada pelo Santo Padre na alocução aos Mestres da Companhia de Jesus. O outro perigo é levar a Filosofia tão dentro da Teologia que pretenda dar de todos os Dogmas uma noção exata e adequada. Esquecem-se tais teólogos que um conceito pode ser real, objetivo sem o conhecido; como pode não ir além da analogia, cujo papel na Teologia é de suma importância.

Para evitar semelhantes desvios, é preciso que o fiel não perca jamais o contato com a Tradição. "Quod sempre, quod ubique quod ab omnibus", como advertia S. Vicente de Lerins. Não devemos nos afastar daquilo que está na profissão de fé comum do povo, ainda quando cause dificuldades ao nosso modo de conceber as coisas.

É o caso apresentado pela amável consulente. Segundo a Filosofia aristotélico-tomista os seres puramente espirituais não ocupam lugar. Em outras palavras, não pode haver lugar onde não há corpo, não há quantidade, não há dimensão. Ora as almas, espirituais como são, só ocupam lugar em razão do corpo material com que não estão substancialmente unidas. Separadas dele não podem ocupar lugar. O mesmo se diga dos demônios, puros espíritos, como são, por natureza. Baseados nestes princípios, houve teólogos que afirmaram que o Inferno não é um lugar. Nada haveria que determinasse o lugar do Inferno; não os demônios que são incorpóreos; não as almas que, antes da ressurreição, ainda não reassumiram seus corpos. O Inferno seria, então, apenas, um estado, um modo de ser, quer dos demônios quer dos condenados, no qual uns e outros têm consciência da perda eterna do fim último a que estavam destinados pela Providência Divina. E com isso, sofrem atrozmente.

Toda esta concepção é muito interessante, mas não tem base na Revelação; antes, não leva em conta a crença comum e tradicional em toda a Igreja, de que o Inferno é um lugar verdadeiro, onde se encontram as almas e onde são elas atormentadas. Ora, seja qual for a concepção que tivermos das coisas, não nos é lícito afastar-nos da crença comum em matéria revelada.

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Retenhamos, portanto, que o Inferno é um lugar e não apenas um estado, e não nos impressionemos com a dificuldade de conceber este lugar, nem nos preocupe a curiosidade de saber onde ele fica. Já Santo Agostinho, no seu tempo, advertia que tal problema é sem interesse para quem só deve ter em vista a fuga de tão irreparável desastre.

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A segunda questão proposta pela consulente é conexa com a primeira. Isto é, uma pessoa a quem repugna aceitar o Inferno como lugar está naturalmente propensa a recusar o fogo do Inferno como real.

De fato. Se aceitasse a realidade do fogo do Inferno, já teria um elemento material, com que determinar o lugar deste último, uma vez que para tanto o que lhe faltava era precisamente algo de corpóreo.

Entretanto, que o fogo do Inferno seja real, é uma dessas verdades sobre as quais a Igreja não admite dúvidas. Primeiro porque as expressões de Nosso Senhor nos Evangelhos são, neste particular, insistentes e explícitas. Leia-se por exemplo, o Evangelho de S. Marcos, cap. IX, vers. 41 e segs., onde, a propósito do pecado de escândalo, seis vezes repete o Divino Mestre que o fogo do inferno é inextinguível e não se apaga. Depois, porque assim sempre entendem a Tradição. Quando ocorria a dificuldade, muito natural aliás, sobre a ação do fogo, agente material, sobre os demônios e as almas, seres espirituais, os Santos Padres não a resolviam com a negação da realidade do fogo infernal. É celebre a resposta de um deles, que o fogo atormenta os condenados "miris at veras modis"' de modo misterioso sim, mas real.

Por isso, a Sagrada Penitenciaria Apostólica, em fins do século passado, mandou que se negasse absolvição àqueles penitentes que recusassem aceitar o fogo do Inferno como real. Sobre a natureza desse fogo não se pronuncia a Igreja. Apenas quer que admitamos aquilo que normalmente sugerem as palavras de Nosso Senhor. A saber que, assim como o fogo para nós, seja extrínseco aos demônios e condenados, e que, como o fogo em nós, cause ele nos habitantes do Inferno sofrimentos atrozes.

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Esta a doutrina tradicional e católica. Não precisa, pois, nossa correspondente retificar seus conceitos. Siga a Tradição e estará com a Igreja.


O MECANICISMO REVOLUCIONÁRIO E O CULTO DO NÚMERO

Plinio Corrêa de Oliveira

Governo do povo é uma expressão que tem significados totalmente diversos na linguagem da Igreja e na dos revolucionários.

A concepção católica de governo do povo conduz a uma estrutura de Estado informada e vivificada por uma sociedade orgânica e hierárquica.

A concepção revolucionária conduz a um Estado mecânico e onipotente, dominando e movendo a massa inumerável dos cidadãos anônimos e iguais.

No número passado de CATOLICISMO, analisamos a alocução de Pio XII aos dirigentes do “Movimento Universal por uma Confederação Mundial”, que contém importantes ensinamentos relativamente à estrutura do Estado e da sociedade internacional em nossos dias.

Mostramos nesse comentário que a Igreja - segundo os ensinamentos de Leão XIII - não é incompatível com qualquer das formas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Entretanto, o conceito de democracia, nascido da Revolução Francesa, e fundado sobre os quatro grandes dogmas da soberania popular, da infalibilidade popular, da fidelidade absoluta ao sufrágio universal como expressão da vontade popular, e da organização da república democrática representativa universal, são incompatíveis com o pensamento da Igreja.

Um grande equívoco

Quando democratas à maneira de 1789 e católicos falam sobre “governo do povo”, há habitualmente entre eles dois graves equívocos, um sobre a palavra “governo”, e outro sobre a palavra “povo”. É devido a estes equívocos que a colaboração entre uns e outros tem visos de possibilidade. Quanto à palavra “governo”: para os católicos, todo o poder vem de Deus, paira acima dos súditos, e consiste em dirigir o povo; pelo contrário para os homens de 1789 o poder vem do povo, os súditos ditam sua vontade aos governantes, e governar não é dirigir a nação, mas fazer a vontade da massa.

Quanto à palavra “povo”, para a Igreja é a sociedade humana em que cada homem é dotado de convicções e princípios pessoais estáveis, lógicos, capazes de determinar duravelmente todo um estilo de vida e de ação; uma sociedade em que os grupos sociais, definidos e constituídos, são ricos de vida: uma sociedade em que as classes sociais são admitidas, reconhecidas, e hierarquizadas; uma sociedade enfim em que há elites de hereditariedade, de cultura, de capacidade, amadas, admiradas, reconhecidas, e classes populares vivendo na modesta mas profunda dignidade de sua condição a vida laboriosa, tranquila, farta, que compete a filhos de Deus. Pelo contrário, para os homens de 1789, o povo não é senão a “massa”, isto é, uma multidão anorgânica de pessoas todas iguais, todas anônimas, todas padronizadas, uniformizadas, estandardizadas, que vivem de um pensamento que não é individual, mas coletivo, que não procede das profundezas mentais de cada um, mas dos caprichos e das paixões da demagogia. Para os homens de 1789, “governo do povo” é governo da massa. Para os católicos, é a participação, na coisa pública, de uma sociedade orientada por elites.

Estabelecidas estas noções gerais, salientamos a justeza das observações do Santo Padre Pio XII sobre o sufrágio universal, mera contagem numérica de votos, em que as opiniões dos eleitores são tomadas em consideração apenas segundo sua quantidade, e que, pois, é muito mais adequado a exprimir a opinião da massa, do que o pensamento do verdadeiro povo.

O problema que a esta altura se põe é o seguinte: se, segundo a doutrina católica, “governo do povo” absolutamente não é o que entendem os homens de 1789 (“entendem”, dizemos, e não “entendiam”, pois hoje em dia há mais homens de 1789 do que em pleno terror, já que o número dos revolucionários não fez senão crescer continuamente), como existiria na ordem concreta dos fatos o que a Igreja entende por legítimo “governo do povo”?

Vida orgânica e unitarismo mecânico

Voltemos ao texto da alocução pontifícia. Lendo-a com atenção, veremos que Pio XII estabelece uma série de antíteses:

a — o mundo deve “libertar-se da engrenagem de um unitarismo mecânico”, para chegar a uma organização que “se harmonize com o conjunto das relações naturais, com a ordem normal e orgânica que rege as relações particulares dos homens e dos diversos povos”;

b — este “unitarismo mecânico” existe atualmente “no campo nacional e constitucional” sob a forma de um “culto cego do valor numérico”. Em outros termos, “o cidadão é eleitor. Mas, como tal, não é ele na realidade senão uma das unidades cujo total constitui uma maioria ou uma minoria que o simples deslocamento de algumas vozes, quando não de uma só, basta para inverter. Do ponto de vista dos partidos políticos, o eleitor não conta senão por seu poder eleitoral, pelo concurso que seu voto dá”. Pelo contrário, se deveria tomar em consideração também “sua situação, seu papel na família, e na profissão”, do que os atuais sistemas de voto absolutamente “não cogitam”;

c — Este “unitarismo mecânico” se manifesta “no campo econômico e social” no sentido de que “não há qualquer unidade orgânica natural entre os produtores”, e pelo contrário, “o utilitarismo quantitativo, a mera consideração do lucro é a única norma, que determina os lugares de produção e a distribuição do trabalho, desde que é a classe que distribui artificialmente os homens na sociedade e não mais a cooperação na comunidade profissional”;

d — “no campo cultural e moral”, em lugar de imperarem “os valores objetivos e sociais, a liberdade individual, desembaraçada de todos os liames, de todas as regras, de todos os valores objetivos e sociais, não é na realidade mais do que uma anarquia mortal, sobretudo na educação da juventude”;

e — na esfera internacional, é preciso evitar que penetrem na futura organização do mundo “os germes mortais do unitarismo mecânico”, e, pelo contrário, é necessário que essa organização “favoreça em toda a parte a vida própria de uma sadia comunidade humana, de uma sociedade cujos membros concorrem todos juntos para o bem da humanidade inteira”.

Liberdade cristã e mecanicismo revolucionário

Nestes contrastes, se delineiam com nitidez dois caminhos, um que se deve seguir, e outro que se deve evitar. Precisemos, por um confronto, ambas as linhas, situando o pensamento pontifício no quadro geral da doutrina tradicional.

I - Doutrina Católica: Os homens são naturalmente desiguais por seu valor intelectual e moral, por sua capacidade artística, por sua constituição física, pelas tradições de que vivem, pela educação que receberam, e por todas as pequenas particularidades individuais, de alma e de corpo, que resultam do que um ser tem de mais profundo e peculiar, e que caracterizam sua personalidade. Deste fato natural decorre a estrutura hierárquica da sociedade.

Pensamento Revolucionário: Nega a estrutura hierárquica da sociedade, e, em consequência, não toma em nenhuma consideração as desigualdades de alma e de corpo dos homens, bem como de suas características individuais. O Estado não conhece homens concretos, como são na vida e na realidade, mas homens em tese, homens em abstrato, homens apessoais e anônimos.

II - Doutrina Católica: Segundo a lógica dos fatos, a ordem natural das coisas, expressa através das mil e mil desigualdades legítimas existentes entre os homens, dá naturalmente origem a toda uma série de relações entre pessoas, famílias, grupos sociais, grupos econômicos ou profissionais, classes, que são produzidas pela própria realidade, e constituem o jogo fecundo das forças vivas da sociedade.

Pensamento Revolucionário: Tudo isto não é do conhecimento do Estado, e compete ao mero campo da atividade privada. A vida do Estado ignora todos estes fatos, e não os toma em qualquer consideração.

III - Doutrina Católica: A razão de ser do Estado consiste em manter esta vida na linha do Decálogo e do bem comum; em a favorecer de todas as formas; e, pois, em se modelar segundo for necessário para que esta vida siga seu curso, cada vez mais rica em seiva de realidade natural. Vicejam assim livremente as famílias, os grupos sociais, as classes sociais, os organismos que promovem a vida cultural, a caridade, etc. Não há uma lei estatal uniforme para todos. Cada qual se estrutura segundo o costume, as necessidades de cada dia, as circunstâncias históricas, etc. Estes organismos quase infinitamente diversificados entre si nas nações muito vastas e povoadas, devem ter oportunidade de intervir na vida pública, cada qual na medida de sua natureza, de seu papel histórico, da situação que ocupa no conjunto dos outros organismos.

Pensamento Revolucionário: O Estado não toma em consideração toda esta esfera de atividades, porque corre risco de as desnaturar deixando-se impregnar por ela. Este risco se torna mais premente no caso de se formarem grandes famílias, grandes instituições, grandes classes sociais que influenciem o Estado. Pelo que este, que em princípio não deveria conhecer de tais assuntos, intervém neles, para reduzir a seu controle as forças sociais. É o ponto de transição do liberalismo para o socialismo.

IV - Doutrina Católica: O Estado não pode escolher arbitrariamente sua forma de governo. Ele será monárquico, aristocrático ou democrático na medida em que a própria ordem natural das coisas produzir por uma lenta e gradual evolução histórica alguma destas formas.

Pensamento Revolucionário: O Estado deve ser sempre democrático, e dirigir a vida social de sorte que a constituição de aristocracias seja impossível.

V - Doutrina Católica: O modo porque as famílias, e demais grupos sociais intermediários, intervêm na vida política, é constituído aos poucos pela própria vida dos grupos e da sociedade do que por plano meramente teórico e pré-estabelecido.

Pensamento Revolucionário: A forma do Estado é o mecanismo teoricamente escolhido pelos pensadores de 1789. Não resulta da vida, mas de um plano de gabinete. Todo este plano deve ser executado pelas várias unidades sociais como as peças de um mecanismo desempenham o papel pré-estabelecido por quem as ordenou. Movem-se, não pela vida que há dentro delas, mas pelo movimento que lhes vem do Estado.

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Entende-se por aí o que o Sumo Pontífice chama “mecânico”, e o que chama “vivos”. Resta saber qual a relação entre estes conceitos e o culto do número, de que nos fala em sua alocução.

O culto do número e o mecanicismo revolucionário

Número é uma palavra que supõe a noção de quantidade. Bem distinta desta é a noção de qualidade. O culto do número é o estabelecimento de uma ordem de coisas na qual a quantidade seja critério supremo. Evidentemente, tal ordem de coisas é profundamente distinta de outra em que se colocasse no devido realce o fator “qualidade”. Na concepção revolucionária, essencialmente igualitária, o fator qualidade é necessariamente prejudicado em favor da quantidade. Pois se todos são iguais devem ter a mesma cultura, a mesma educação, o mesmo padrão de vida, a mesma influência, o mesmo prestígio. E isto conduz forçosamente à ideia de dar mais valor à alfabetização do que à formação das elites; de tornar mais abundante a produção em lugar de a tornar também melhor; de padronizar e estandardizar tudo, segundo as conveniências do tipo abstrato de homem, ao qual todos se devem nivelar, não lhes sendo lícito ficar aquém ou além do modelo oficial.