MECANISMO REVOLUCIONÁRIO (conclusão)

A Igreja quer a prevalência da qualidade, a Revolução, o domínio cego da quantidade

Para um Estado mecânico, em que toda a atividade se faz exclusivamente sob o impulso das leis, portarias, circulares ministeriais e regulamentos, para uma sociedade composta de homens anônimos e iguais perdidos na massa, o que é cada homem senão um número? E para cada unidade humana, do que se necessita senão das unidades de cultura, de alimentação, de alojamento necessários para que possam prolongar a existência e multiplicar a descendência?

A quantidade é o ideal natural, o único objetivo atingível para o Estado mecânico. Muito diverso é o problema visto do ângulo da qualidade, pois esta só pode nascer da formação das elites de berço e de cultura, da apuração das potencialidades de alma existentes em medida tão desigual entre os homens, e da livre projeção destas desigualdades por todo o corpo social, bem entendido nos limites em que o permitem a justiça e a caridade ensinadas pela própria doutrina da Igreja.

Deixando as “rotas batidas”

Como se constituiria o Estado, nas atuais condições da sociedade, segundo os princípios que aqui acabam de ser enunciados? Em outros termos, se se libertasse a humanidade contemporânea do colete de ferro das leis, portarias, decretos, regulamentos de cunho socialista que de todos os modos lhe tolhem o natural desenvolvimento, para onde rumaríamos?

Isto equivale a perguntar que trajetória tomaria pelos ares um pássaro que se libertasse da gaiola. É imprevisível. Simplesmente se poderia dizer que voaria. Mas ninguém conseguiria pré-estabelecer ponto por ponto que movimentos faria, que rumos tomaria, na livre expansão de sua natureza viva.

Consideremos uma sociedade autêntica e profundamente católica, firmemente disposta a desenvolver sua atividade com a mais rigorosa observância dos princípios do Decálogo, e um Poder Público que considere sua missão mais alta punir o mal e estimular o bem — tomadas as palavras “mal” e “bem” precisamente no sentido em que as entende a Igreja — e perguntemos como ela se estruturaria caso se libertasse do culto do número, da tirania dos órgãos mecânicos que falseiam sua marcha como o fariam aparelhos ortopédicos a homens com pés sãos. Que formas de governo, que formas de organização social, cultural, econômica, assumiriam tais sociedades?

Diz Pio XII em sua alocução que “em verdade é impossível resolver o problema da organização política mundial sem consentir em se afastar às vezes das rotas batidas, sem apelar à experiência da História, a uma sã filosofia social, e mesmo a uma certa divinação da imaginação criadora”. Com o concurso de todos estes elementos, História, sã filosofia, divinação da imaginação criadora, ânimo resoluto de abandonar as rotas batidas do mecanicismo numérico de 1789, é possível fazer conjeturas para o futuro? Em certa medida não; pois, como dissemos acerca do pássaro que liberto da gaiola, há muito de imprevisível no operar dos seres vivos. Mas, de outro lado, dado que a natureza humana e a Lei de Deus não mudam, dado que no passado já tivemos sociedades constituídas pelo livre desenvolvimento das energias naturais legítimas, é possível prever algumas linhas gerais do futuro. É o que veremos em próximo artigo.


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

Elogio da direção espiritual

PIO XII: Outra recomendação se torna aqui oportuna: que ao arrostar e enveredar pela via espiritual não confieis em vós mesmos, mas com simplicidade e docilidade peçais e aceiteis o auxílio de quem possa guiar vossa alma com esclarecida direção, indicar-vos os perigos, sugerir-vos os remédios idôneos, e em todas as dificuldades internas ou externas vos possa dirigir retamente e levar-vos a uma perfeição cada vez maior, segundo o exemplo dos Santos e os ensinamentos da ascese cristã. Sem esta prudente guia da consciência, é assaz difícil, pelas vias ordinárias, secundar convenientemente os impulsos do Espírito Santo e da graça divina. (Exortação «Menti Nostrae», ao Clero católico, de 23-IX-1950).

As vantagens do casamento indissolúvel

PIO XI: Em primeiro lugar os cônjuges têm a estabilidade absoluta do vínculo aquele sinal certo de perenidade que é exigido por sua natureza pela generosa doação de toda a pessoa e pela íntima união dos corações, visto que a verdadeira caridade não conhece limites (I Cor. 13,8). Ela constitui, além disso, pela castidade fiel, um sólido baluarte de defesa contra as tentações de infidelidade, quer internas quer externas, se elas sobrevierem; excluindo qualquer ansiedade ou temor de que, pela adversidade ou velhice, o outro cônjuge se afaste, estabelece-lhe uma tranquilidade segura. Concorre igualmente para aumentar a dignidade dos cônjuges e o seu mútuo auxílio da maneira mais oportuna, o pensamento do vínculo indissolúvel recordando-lhes que não com a mira de interesses caducos nem para satisfação dos prazeres, mas para cooperarem juntamente na consecução de bens mais altos e eternos, é que eles contraíram o pacto nupcial que só a morte poderá dissolver. Admiravelmente ainda a estabilidade do matrimônio provê ao cuidado e educação dos filhos, obra de longos anos, cheia de graves deveres e de fadigas que mais facilmente poderão realizar os pais, unindo as suas forças. E não são menores os benefícios que dela dimanam para toda a sociedade em comum. De fato, a experiência ensina que concorre imensamente para a honestidade de vida em geral e para a integridade dos costumes a inquebrantável estabilidade dos matrimônios e que a estrita observância dessa ordem assegura a felicidade e a salvação do Estado. E que o Estado será o que forem as famílias e o que forem os homens de que se compõe, como o corpo de membros. (Encíclica «Casti connubii», de 31-XII.1930).


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Dois modos de ver a vida do campo

Plinio Corrêa de Oliveira

Seis horas da tarde. A faina diária está terminada. A nobre tranquilidade da atmosfera envolve a vastidão dos campos, convidando para o repouso e o recolhimento. Um crepúsculo cor de ouro transfigura a natureza, fazendo brilhar em todas as coisas um reflexo longínquo e suave da inexprimível majestade de Deus. Ouve-se o tilintar do Ângelus, amortecido pela distância. É a voz cristalina e material da Igreja, que convida para a oração. Rezam os camponeses. São dois jovens cujo físico manifesta a um tempo saúde e hábito já antigo de trabalho manual. Seus trajes são rústicos. Mas em todo o seu ser transparece a pureza, a elevação, a natural delicadeza de almas profundamente cristãs. Sua condição social modesta é como que transfigurada e iluminada por sua piedade, que incute respeito e simpatia. Em suas almas refulgem os raios dourados do sol, mas de um sol muito mais alto por todos os títulos: a graça de Deus.

Verdadeiramente, sua beleza de alma é o centro do quadro, o ponto mais alto da emoção estética. É linda a natureza, mas ela não serve senão de ambiente paro a manifestação da beleza dessas almas reunidas pelo Filho de Deus.

Nada nestes camponeses indica desassossego ou mal-estar. Eles são inteiramente conformes a seu meio, a sua profissão, a sua classe. Que outra dignidade, que outra ventura poderia desejar este casal?

Millet (Jean-François Millet - 1857-1859) reuniu admiravelmente em sua tela ( L'Angélus - Musée d'Orsay - Paris), os elementos necessários para que se compreenda a dignidade do trabalho manual na atmosfera plácida e feliz da verdadeira virtude cristã.

* * *

Nem todos os momentos da vida do campo são assim. Millet apanhou, no que chamaríamos um instantâneo feliz, um momento culminante de beleza material e moral. Mas seu quadro tem o mérito de ensinar os homens a ver, dispersos na rotina da existência rural quotidiana, os lampejos genuínos e frequentes desta fisionomia cristã das almas e das coisas num ambiente verdadeiramente vivificado pela Santa Igreja.

A atitude de espírito de Millet, que ele comunica a quem contempla sua obra prima, está toda voltada para Deus, e para os reflexos de beleza espiritual e material que Ele projeta na Criação.

Numa crítica psicológica do quadro, para ser exato, deveria deplorar apenas algum excesso de sentimentalismo.

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Poder-se-ia fazer o mesmo elogio do quadro de Yves Alix (1890-1969), também inspirado na vida dos campos, "Le Maitre des moissons"?

O autor não percebeu, não sentiu, não aceitou em sua visão do trabalho agrícola nada daquilo por onde ele se torna digno de ser praticado por um filho de Deus.

Neste quadro, não foi o espírito que dominou a matéria e a enobreceu; foi a matéria que penetrou o espírito e o degradou. Nos corpos, o trabalho material imprimiu uma brutalidade por assim dizer facinorosa. As fisionomias exalam um estado de espírito que lembra o botequim e o campo de concentração. Se os personagens do segundo plano não parecessem de tal maneira endurecidos, se fossem capazes de chorar, suas lágrimas seriam de fel; se fossem capazes de gemer, seus gemidos seriam como o ranger de engrenagens. A tristeza, a maldade, a cacofonia das cores, das formas e das almas se exala pela voz do personagem do primeiro plano. Não se sabe bem o que exclama, se uma ameaça ou uma blasfêmia.

Yves Alix reuniu e exagerou e deformou até o delírio os aspectos por ande o trabalho é uma expiação e um sofrimento, e a terra um exílio; exprimiu com uma fidelidade meticulosa - e como que entusiasmada! - o que na alma humana há de mais atroz e mais baixo, para apresentar o conjunto como aspecto real e normal da vida quotidiana, espiritual e profissional do trabalhador.

E por isto, enquanto da obra prima de Millet se evola uma prece, do pesadelo de Yves Alix se desprende um bafo de revolução.

Se Deus permitisse aos anjos embelezar a terra e a vida, eles o fariam no sentido de tornar mais frequentes, mais duráveis, mais belos os aspectos que Millet procurou observar e reunir. Se Ele permitisse aos demônios desfigurar os homens e a criação, estes formariam, na alma e no corpo, e nos aspectos das coisas, personagens e ambientes como os do quadro de Yves Alix.


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

A intransigência dos liberais cinde as forças católicas

Bertrand de Poulengy

O prestígio sempre crescente do Partido Católico e suas sucessivas vitórias não impediram que as divergências entre seus líderes fossem acentuadas com o tempo, em prejuízo da coesão tão necessária para o prosseguimento da campanha pela liberdade de ensino.

Formado por católicos de todos os matizes, de todas as tendências políticas, não era possível que o partido se mantivesse sem uma renúncia total de seus membros a atitudes políticas. Isso não se deu. Cada qual desejava que a campanha se desenvolvesse sem ferir as suas preferências partidárias, e todas as vezes que as julgava atingidas por um artigo, um discurso ou um panfleto, logo se punha a reclamar e a criticar a orientação do Partido. Na realidade, o que faltava nessa época era que os católicos fossem exclusivamente católicos.

Infelizmente, o chefe do Partido, o Conde de Montalembert, se desorientara completamente com a aventura de "L’Avenir". Suas convicções religiosas eram sólidas, mas já estavam arranhadas pelo liberalismo, ao qual iria se entregar de corpo e alma poucos anos depois. Nesse período que descrevemos, no entanto, era tal sua indecisão, que Guizot costumava se referir a Montalembert como um homem que mudava muito de ideia fixa. Por outro lado, Montalembert tinha um caráter difícil, era profundamente orgulhoso e vaidoso. Entendia que todo o movimento pela liberdade de ensino deveria seguir exatamente sua orientação, e o ideal seria que tudo fosse dirigido, escrito e executado por ele. Mas era difícil tal programa ser executado por um chefe indeciso, e cujas ideias políticas tinham pelo menos laivos de liberalismo.

Naturalmente, o homem mais visado nas divergências internas do Partido era Louis Veuillot. Exclusivamente católico, e tendo que combater diariamente através de "L’Univers", quer incentivando os companheiros, quer respondendo aos ataques da imprensa leiga, quer sustentando polêmicas com os adversários da campanha, nem sempre lhe era possível evitar censuras aos partidos políticos ou críticas aos regimes anteriores. Aliás, de propósito os adversários da Igreja provocavam essas definições de Louis Veuillot, sabendo que assim aumentavam as divergências do Partido Católico, ao mesmo tempo que colocavam o jornalista em situação difícil perante seus aliados. No fundo, tinham eles esperança de conseguir a retirada do redator de "L’Univers", e assim quebrar o esteio do movimento.

A situação se agravou bastante com o aparecimento em cena do Padre Dupanloup, que durante toda sua vida agiu em contradição com os princípios que dizia possuir: em política se declarava legitimista, mas na prática foi liberal; dizendo-se ultramontano, foi o real fundador do liberalismo religioso na França; pedagogo católico, defendeu e implantou o ensino clássico nos colégios que dirigiu; infalibilista, foi o chefe da corrente de bispos que combateu o dogma da infalibilidade pontifícia no Concílio Vaticano I; muito cioso da hierarquia e da autoridade, nem sempre se conformou com prontidão aos desejos de Pio IX. Era um homem inteligente, de uma capacidade de trabalho incalculável, hábil, maneiroso, bom orador, dotado em grau eminente do poder de induzir os outros a fazer o que ele queria.

Assim que o Padre Dupanloup surgiu no cenário, ocorreu o primeiro choque sério entre Montalembert e Veuillot. Inopinadamente, sem qualquer aviso ou prévia troca de ideias, Montalembert mandou dizer a "L’Univers" que o jornal iria ser dirigido por um comitê constituído pelo Padre Dupanloup, o Padre de Ravignan, Lacordaire, Lenormant e ele, e que esse comitê designaria o redator-chefe. Essa comunicação foi uma bomba, e significava a demissão de Louis Veuillot.

Nessa ocasião Montalembert já não tinha nenhum direito sobre o jornal, pois o empréstimo que lhe fizera tinha sido pago e a maioria das ações pertencia a Taconet, seu verdadeiro proprietário; mas, sendo "L’Univers" de fato órgão do Partido Católico, Montalembert acreditava, como seu chefe, poder intervir por essa forma.

Tanto Veuillot como Taconet mereciam receber do Partido um tratamento menos incivil. O primeiro, pelos serviços que já prestara à causa, e, quando nada, pelo mês de prisão que por ela sofrera; e Taconet por ser o proprietário do jornal. Por amor à paz e aos ideais que defendiam, dispuseram-se eles a tratar com o comitê a fim de compor a situação, mostrando a impossibilidade de ser o jornal dirigido dessa forma, que seria prejudicial principalmente à sua orientação política: o Padre Dupanloup e o Padre de Ravignan eram legitimistas; Lacordaire, democrata; Lenormant, favorável a Luís Felipe; e Montalembert, aristocrata. Essas razões não foram aceitas. Apenas foram autorizados Veuillot e Taconet a fazer parte do comitê.

Os redatores estavam indignados, e resolveram mandar Melchior du Lac conversar com Montalembert. A entrevista foi tempestuosa, e terminou com a declaração deste de que intervinha no jornal com o direito do mais forte.

Diante da intransigência do chefe do Partido, Taconet e Louis Veuillot propuseram, para conciliar as coisas, a formação de um novo comitê mais homogêneo, e que não significasse uma diminuição para o jornal. Sugeriram para seus membros: Montalembert; o Visconde de Carné; de Lavan e Bailly, dois grandes acionistas do jornal; o Padre Hiron, seu antigo diretor; e Frederico Ozanam. Montalembert recusou irritado, acusando "L’Univers" de traição e de querer matar o Partido Católico.

Poucos dias depois o Arcebispo de Paris enviava uma carta ao jornal, censurando-o pela atitude que tomara. Mas Louis Veuillot e Taconet o procuraram e lhe explicaram como tinham se passado os fatos, e então o Arcebispo deu em parte razão a ambos contra Montalembert. Por isso a ideia do comitê estava liquidada; mas, para manter a coesão do Partido, Veuillot se sujeitou a passar para um segundo plano. De acordo com os outros chefes do movimento, foi escolhido um novo redator-chefe: o Conde de Coux, antigo companheiro de Lacordaire e Montalembert no "L’Avenir".

Tudo se passara intramuros, durante as férias parlamentares que haviam interrompido a discussão do projeto de lei sobre o monopólio do ensino na Câmara dos Pares. Mas a questão, além de ter provocado a primeira divergência séria entre os chefes do Partido Católico, teve uma péssima consequência imediata. Ao se reabrirem os debates no Parlamento sobre o monopólio, Thiers deslocou a questão, passando a atacar os jesuítas. A ação de "L’Univers" foi então prejudicada, pois o Conde de Coux, inimigo da Companhia de Jesus, queria impedir Veuillot de defender os heroicos soldados de Santo Inácio.


NOVA ET VETERA

Aprendizes de feiticeiro

J. de Azeredo Santos

NA vigência do liberalismo usou-se e abusou-se do poder político e econômico como arma de opressão. Destruídos o antigo regime e os vários organismos nele existentes entre o indivíduo e o Estado, a sociedade passou a regular-se pelo livre acordo entre as partes. O capitalismo liberal assegurava a sua predominância pelo contrato e não pela lei. Emancipava-se o homem sobretudo da lei moral e passava a vigorar em campos cada vez mais extensos a teoria calvinista do bom êxito nos negócios. Em uma sociedade baseada no egoísmo e deixada a si mesma, prevaleceria a lei do mais forte e o conceito revolucionário da igualdade perante a lei somente serviria para dar aos poderosos as armas com que haveriam de esmagar os mais fracos.

Tamanha balburdia e tamanhas injustiças não poderiam perdurar por muito tempo. E os homens de consciência reta clamavam por um remédio que viesse sanar um tal estado de coisas. Ora, a revolução liberal viera com o fim ostensivo de implantar no mundo o império da lei. Nada mais natural, portanto, que se apelasse para a lei. Não se devia permitir que os indivíduos dessem livre curso ao seu egoísmo através da liberdade que o próprio Estado liberal lhes assegurava. E o Padre Lacordaire bradava do alto do púlpito de Notre Dame: "Entre o forte e o fraco, é a liberdade que oprime e é a lei que livra".

* * *

Ora, os conceitos tanto de lei, quanto de liberdade não se excluem, mas se completam. A verdadeira liberdade pode e deve coexistir com a lei justa. E assim como a verdadeira liberdade destrói a igualdade social, do mesmo modo a lei há de respeitar as desigualdades que nascem, não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas. Exceção feita dos princípios básicos do direito natural, ou dos direitos específicos derivados da igualdade fundamental de todos os homens, os direitos e os deveres não são iguais para os homens no sentido individual, sendo proporcionais à posição que ocupam na vida social. É justamente o que não queriam e não querem reconhecer os liberais, católicos ou não. E se havia, na sociedade liberal, abuso ou corrupção da liberdade, por que não existiria também abuso ou corrupção da própria lei?

Mesmo porque acontece que o mal que atingia a sociedade se entendia também ao Estado, pois este não era e não é uma entidade mitológica distante dos míseros mortais, mas é composto por homens de carne e osso como nós. Homens que do ponto de vista social e político eram justamente o que pior havia em matéria de liberalismo. Não bastava, portanto, apelar para a lei. Era preciso que a lei remontasse às suas origens, o que não seria possível se o próprio Estado, de que tais leis deviam emanar, também não voltasse à perene fonte da Justiça, que é Deus, Soberano Senhor de todo o universo criado e de todas as leis que devem governá-lo.

Apelar, portanto, para a lei numa ordem de coisas criada pela revolução seria, assim, agravar os nossos males em vez de atenuá-los e muito menos de eliminá-los. Eis porque o próprio Ripert, ao tratar do "Declínio do Direito" na sociedade moderna, não deixa de ter razão quando nega que a sujeição é até pior, pois um contrato pode ser declarado abusivo, ao passo que não existe praticamente nenhum recurso contra a tirania legal. "O homem se acha, assim, mais subjugado pela lei que pelo contrato", o que vem a ser o mesmo que dizer que a solução socialista, mediante a qual tudo reverte da órbita do direito privado para o direito público, e mediante a qual o Estado passa a regular tudo, em vez de ser um remédio para os abusos de uma ordem de coisas instaurada pelo liberalismo político e econômico, vem a ser o coroamento da obra iniciada pelos filhos da revolução a que Joseph de Maistre dava o nome de satânica.

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Não se trata, evidentemente, de esposar o conceito individualista que da lei tinham os liberais da velha guarda, mas de acentuar que entre dois abusos: o da lei e o do contrato privado, este é menos nocivo que aquele. E saindo de uma consideração de ordem teórica, para outra de ordem prática ou política, podemos entrever na desordem e nos abusos da economia liberal um mero agente provocador destinado a preparar as veredas para o Estado totalitário de nossos dias, absorvente, planificador, legiferante despótico dos menores atos da vida quotidiana de seus súbditos.

Nessa publicização ou coletivização cada vez mais crescente da vida social, os próprios católicos muito frequentemente se prestam ao papel de autênticos aprendizes de feiticeiro, isto é, ajudam a desencadear uma certa mágica que depois não terão forças para desfazer. Não se atina, em geral, para o fato de que o uso da expressão "social" acoberta simplesmente um sinônimo de "estatal" na gíria de certos mentores da opinião pública. Ora, o Estado, através de sua legislação tentacular, onímoda, confusa, coercitiva, vem gradualmente se substituindo à livre iniciativa dos diferentes e variados organismos, ordens, instituições, etc., de que se compõe normalmente a sociedade. É princípio sociológico elementar que a competência dos variados órgãos sociais é bem superior que a do Estado para regular os direitos e as obrigações que devem existir entre os diversos membros da sociedade, e entre os homens em si mesmos considerados. Não é do Estado, por exemplo, que deriva o direito consuetudinário, mas do próprio corpo social. É, ademais, uma lei de economia social que os organismos superiores não devem chamar a si o que os organismos inferiores podem fazer por si próprios. A excessiva centralização de tarefas e de normas de ação nas mãos do Estado, conhecida pelo eufemismo de publicização do direito, está longe de constituir um progresso. Mesmo porque o avassalador número de leis, decretos e regulamentos ou portarias, com uma multiplicidade complexa de proibições e de regras e de licenças e autorizações burocráticas, muitas vezes em conflito umas com as outras, acabam por provar sua ineficácia, sobretudo porque não podem às mais das vezes ser cumpridas por todo o corpo social, gerando injustiças, desrespeitos à lei ou indiferença perante ela, e portanto sua desmoralização, fomentadora da anarquia social que dá lugar aos despotismos.

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Que nos seja lícito terminar com um exemplo prático destas verdades. Exemplo que nos é fornecido, não por um simples aprendiz de feiticeiro, mas por um dos autênticos magos que conhecem os segredos através dos quais até um determinado limite se fazem e se desfazem os sortilégios com que vem sendo artificialmente criada a nossa legislação social. Diz ele em entrevista à imprensa diária: "O número excessivo de projetos em curso no Congresso, alterando a legislação trabalhista, está provocando inquietação. Não há dúvida que representa um perigo para a paz social". Esquecido do que diz o antigo ditado de que “o costume sem verdade é erro velho", apela para o exemplo de uma consolidação que fora feita, dada a existência "de um grande número de leis regulando a matéria, umas alterando ou revogando anteriores, de modo que os interessados tinham de percorrer um verdadeiro labirinto de textos legais até chegar ao que estava em vigor. O operário não sabia se o texto B revogava ou apenas alterava o texto A e muitas vezes ignorava que ainda existia um outro texto C. O mesmo acontecia com os patrões, e eram comuns os desentendimentos porque enquanto um argumentava com a lei A, o outro se apoiava na lei B". Tal consolidação teria sido uma "recapitulação dos valores coerentes que resultaram de uma grande expansão legislativa", mas quem teria sido juiz do que seria "coerente", do que estaria certo e do que estaria errado, ou se tudo não estaria errado, dada a colcha de retalhos que é a formação ideológica de nossos legisladores e do critério partidário para composição das respectivas comissões, quando os há e não se trata de simples outorga ditatorial de uma lei?

O mesmo se aplica, para completar o exemplo, ao princípio constitucional que impôs a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Diz o entrevistado: "Os projetos em curso, não obstante, levam ao desajustamento social. Num mesmo ramo de atividades haverá trabalhadores que receberão gordas participações e outros que apenas terão esmolas. Haverá atividades, como a da indústria de vidro nesta capital, em que os operários nada receberão. Será isso justo? Não será apenas um fator de intranquilidade de desarmonia entre os próprios trabalhadores?".

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Eis em que dá a nossa inflação legislativa, a preocupação de tudo resolver por passes de mágicas, através de leis e decretos, muitas vezes insuflados pelos tais aprendizes de feiticeiro. Não é por outra razão que o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, afirma que "a economia — como qualquer outro ramo de atividade humana — não é de sua natureza uma instituição do Estado; pelo contrário, é o produto vivo da livre iniciativa dos indivíduos e de seus grupos livremente organizados". (Alocução aos Delegados da União Internacional das Associações Patronais Católicas, em 7 de maio de 1949). Eis também o motivo pelo qual sua Santidade condena a cogestão, não em si mesma, mas se considerada como um direito do trabalhador. Mesmo porque a paz social não virá à terra através de leis e decretos que querem forçar a solução daquilo que somente será conseguido pela volta da sociedade ao verdadeiro Caminho, Verdade e Vida. Se Deus não se acha na base do edifício social, em vão trabalharão arquitetos e pedreiros em sua construção. Não é por outro motivo que o mundo moderno está se transformando em uma autêntica e formidável torre de Babel.