Spes Nostra (conclusão)

É falha qualquer visão dos problemas humanos que abstraia da providência de Maria

(continuação)

A possibilidade de um “pessimismo sadio” é precisamente o que muita gente quer a todo transe negar.

* * *

Resumindo, deve-se ser sempre, e inflexivelmente, realista. Quando a realidade é boa, devem-se daí extrair augúrios otimistas no sentido bom do termo. E quando a realidade é má devem-se tirar dela prognósticos pessimistas, também no bom sentido do termo. “Otimismo sadio”, “pessimismo sadio”, só são expressões legitimas e razoáveis, se se identificarem sempre, e inexoravelmente, com “realismo absoluto”.

Isto posto, a pergunta sobre se devemos ser otimistas ou realistas a respeito da época presente, se converte nesta outra: se nossa época justifica prognósticos bons, ou maus.

É, pois, do que vamos tratar.

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O que está mal justifica prognósticos maus. E o que está bem justifica prognósticos bons. Pois o efeito não pode ter qualidades que de algum modo não estejam contidas na causa. Devemos, em consequência, perguntar se as coisas vão bem, ou se vão mal em nossos dias.

Evidentemente, nossa época tem aspectos bons e aspectos maus, como todas as épocas históricas, mesmo as piores, ou as melhores. Assim, a situação do povo eleito, quando cometeu o crime do deicídio não era inteiramente má. Os judeus, é verdade, rejeitaram o Messias e O mataram; e nisto andaram mal. Mas quando Nosso Senhor veio ao mundo eles eram fiéis à Sinagoga, e monoteístas, e nisto andavam bem. Que um homem cuide de se prover dos bens necessários ou convenientes ao sustento da vida, é um bem. Assim, um ladrão, na medida em que se preocupa com seu futuro e deseja prover a sua própria subsistência, está certo. Seu pecado começa apenas no momento em que decide empregar meios ilícitos para atender a esta preocupação justíssima em si mesma. Nem tudo, portanto, nas intenções do ladrão é mau. Neste sentido, em rigor, o próprio ato de Judas, quando roubava as esmolas que os Apóstolos reservavam aos pobres, e quando por fim vendeu o Homem-Deus, tinha algo de legítimo, enquanto significava uma apetência de bens necessários ao sustento de sua vida. O que não impediu que de Judas se pudesse dizer “melius erat illi si natus non fuisset”, que por toda a parte os ladrões sejam punidos como criminosos, e que o povo de Israel tenha sofrido o mais retumbante castigo de toda a História humana.

Assim, pois, devemos reconhecer que não julga acertadamente a respeito de um homem, de um país, de um século, quem se limita a distinguir o bem e o mal que neles possa existir. É preciso remontar, desta legítima distinção de aspectos, para a unidade fundamental que existe nos homens, e procurar ver na correlata a unidade de sentido que estes aspectos, em seu conjunto, devem apresentar, qual a nota preponderante.

A questão, portanto, se reduz a esta outra: dos múltiplos aspectos de nossa época, que visão unitária e de conjunto se desprende? Quais os valores, os princípios, os fatores, os “leitmotiv” que preponderam?

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Não cabe aqui fazer o inventário do que nos parece bem, do que nos parece mal, e depois estabelecer o que prepondera, se o bem se o mal. A tarefa seria hercúlea, e dificilmente caberia num livro. A fortiori não poderia ser contida num artigo de jornal.

Entretanto, nem por isto ficaremos sem resposta. Se queremos saber o que prepondera em nossos dias, se a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou o espírito do mundo, basta abrir S. Paulo.

Segundo o Apóstolo, as obras da carne são: “fornicação, impureza, desonestidade, luxúria, idolatria, malefícios, inimizades, contendas, ciúmes, iras, rixas, discórdias, partidos, invejas, homicídios, embriaguez, orgias e outras coisas semelhantes” ( Gal. V, 19-21 ). Pelo contrário, os frutos do espírito são: “caridade, gozo, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência, castidade” ( ibid. 22-23 ). Não é preciso perguntar se o que prepondera em nosso século são as obras da carne ou os frutos do espírito.

Tomemos a mesma verdade em outro ângulo. Ousaríamos dizer que a civilização de nossos dias ainda é preponderantemente cristã? Neste caso deveríamos reconhecer que a corrupção dos costumes, a ganância, as rivalidades, as lutas, a universal desordem que nela preponderam são frutos próprios e típicos da influência da Igreja. Quem não vê que, com isto blasfemaríamos? Assim, pois, é forçoso reconhecer a verdade: nossa civilização não é informada pelo espírito de Jesus Cristo. Ela produz os frutos típicos das civilizações dominadas pelas trevas.

* * *

Disto, o que se pode esperar? Com mais algumas décadas, de guerras, de discórdias, de lutas entre nações e classes, onde iremos ter? Se a corrupção dos costumes se acentuar com a crescente velocidade com que se vem desenvolvendo, onde estaremos daqui a cinquenta anos, por exemplo em matéria de danças, de decotes, de familiaridades entre os sexos?

Se quiser raciocinar com toda a probidade, será forçoso reconhecer que muito pouco nos separa da catástrofe total, e que, a continuarmos nesta linha, dentro de não muito tempo sofreremos um eclipse de cultura e de civilização análogo à queda do Império Romano do Ocidente.

E qual será, neste mundo, o futuro da Igreja? Será condenada a viver mais alguns séculos nas catacumbas? Verá reduzir-se a um grupinho insignificante o número de seus fiéis?

* * *

O futuro só Deus o conhece. Ninguém poderia razoavelmente surpreender-se se toda a estrutura da atual civilização viesse a desabar fragorosa e tragicamente, num grande banho de sangue. Mas há uma razão - e não é a única - para se esperar que a Providencia não permitirá que a Santa Igreja volte às catacumbas por muito tempo. É que, entre as desolações da época presente, já existe um prenuncio de vitória: a ação por assim dizer visível, da Virgem Santíssima na terra.

Desde Lourdes, desde Fátima, até os dias de hoje, quanto mais a crise universal cresce de ponto, tanto mais as intervenções de Maria Santíssima se tornam numerosas e palpáveis. Combate-se a devoção a Nossa Senhora, não só fora da Igreja mas - horribile dictu - até em certos meios que são ou se supõem católicos. Mas é em vão. Vê-se que aqui e acolá a Virgem Santíssima continua atraindo a si miríades de almas, e desenvolvendo um plano de regeneração que evidentemente conduz a um grande, a um espetacular desfecho.

Todas as circunstâncias parecem adequadas a um triunfo imenso da Virgem. A crise é trágica. Ela se aproxima do auge. Os meios humanos de salvação estão a bem dizer inutilizados. Nós não merecemos qualquer graça assinalada, mas apenas castigos e mais castigos por nossos pecados. Todas as características de uma situação humanamente perdida parecem acumular-se não só típica mas arquetipicamente no momento presente.

Quem nos poderia salvar? Somente quem tivesse para conosco uma complacência sem limites, uma complacência de Mãe, de Mãe ilimitadamente boa, generosa, exorável. Mas seria preciso que esta Mãe fosse ao mesmo tempo mais poderosa do que todas as forças da terra, do inferno e da carne. Seria preciso que fosse onipotente junto ao próprio Deus, justissimamente irritado por nossos pecados. Salvar-nos nesta situação seria a mais rútila das manifestações do poder de uma tal Mãe.

Ora, esta Mãe, nós a temos. Ela é Mãe nossa, e Mãe de Deus. Como não perceber que tantos desastres e tantos pecados por assim dizer clamam pela intervenção de Maria Santíssima. E como não perceber que ela atenderá a este clamor?

Quando? Durante o grande drama que se aproxima? Depois dele? Não sabemos. Porém uma coisa parece absolutamente provável: é que Maria Santíssima não prepara para a Santa Igreja, como desfecho desta crise, séculos de agonia e de dor, mas uma era de triunfo universal.

* * *

E é assim que, neste mês consagrado a Maria Santíssima, olhos postos n’Ela, com toda a serenidade podemos responder à pergunta sobre se se deve ser otimista ou pessimista: um sadio pessimismo nos deve persuadir de que merecemos tudo, e talvez soframos muito, muitíssimo; mas um otimismo sadio e sobrenatural nos deve persuadir de que o triunfo da Igreja se está preparando nas dores de nossos dias, pelo esmagamento completo do espírito do século. Este pessimismo, este otimismo, constituem realismo sadio, porque toma em consideração uma grande realidade sem a qual qualquer visão dos problemas humanos é falha: a Providência de Maria.


NOTA INTERNACIONAL

A crise militar brasileira (II)

Adolpho Lindenberg

Corrente democrática

Nesta corrente notam-se duas influencias: a francesa e a norte-americana.

As forças armadas de um país devem normalmente espelhar a mentalidade e a cultura de seu povo e, justiça seja feita, o Exército Nacional nunca constituiu um corpo estranho e hostil ao caráter do brasileiro, mas muito pelo contrário sempre procurou ser urna expressão das correntes de pensamento predominantes no Brasil. Assim, teve papel decisivo na Abolição, mas a Abolição não foi imposta ao povo pelos militares, e a proporção de abolicionistas entre estes era a mesma que em qualquer outro setor do país. Ora, o Brasil até a primeira grande guerra pôde ser considerado como filho espiritual da França, cuja cultura assimilou com tudo quanto ela tem de bom e de mau. Com a cultura francesa recebemos a filosofia do positivismo, que encontrou campo fecundo nas forças armadas, já que seus princípios de ordem e sobriedade de vida se casavam bem com a vida militar, de um lado, e a estruturação artificial, anorgânica, planificada do corpo social recomendada por Augusto Comte, em muito se assemelha à estrutura que legitimamente deve ter um exército. A influência da França também se fez sentir através das missões militares que ela nos enviou no começo do século.

Com a colaboração do Brasil com os EE.UU. nesta última guerra, iniciou-se um intercâmbio ativíssimo não só de armas, munições e matérias primas, mas sobretudo de ideias e mentalidades. Grande parte da população brasileira inclusive bom número de elementos de projeção de nosso exército viram com suspicácia, receio e hostilidade essa aproximação artificial de dois povos profundamente diferentes, e em face disso tomaram as várias atitudes a que nos referimos na nota passada. Outros, no entanto, ansiavam por participar da cruzada mundial contra o totalitarismo nazista, e outros ainda previam muito bem que uma vitória da Alemanha representaria um perigo gravíssimo para a integridade de nossas fronteiras. O envio de nossa Força Expedicionária e a cavalheiresca e amigável acolhida que lhe foi dispensada pelas tropas aliadas fizeram com que a maioria dos oficiais que dela participaram ficassem estimando e admirando os norte-americanos, suas armas e sua concepção de democracia. Sucessivos tratados de aliança com os Estados Unidos, a hostilidade em relação aos americanos por parte da Argentina, nossa tradicional rival no campo militar, o reequipamento de nossas forças armadas com material estadunidense vieram estreitar ainda mais as relações do Brasil com nosso vizinhos do norte.

Como nós católicos podemos apreciar a influência da cultura francesa e a da norte-americana, tão bem aceitas e recomendadas pelos elementos militares da corrente democrática? Do mesmo modo como fizemos em nossa última nota ao tratar da corrente nacionalista das forças armadas, também neste caso precisamos distinguir vários aspectos, uns maus e outros bons. Os inconvenientes da influência filosófica francesa não precisam ser mais profligados do que já o são. O tipo convencional do positivista, militar ou civil, probo, heroico, sóbrio, sublime, de grandes bigodes e ar superior, mas ateu, anticlerical, republicano e maçom já é por demais conhecido e demodé para que nos demoremos em analisá-lo. O tipo muito moderno de militar ou civil "Coca-Cola", risonho, ignorante, esportivo, desleixado, igualitário, liberal para com os inferiores e desrespeitoso para com seus superiores, antipatizando-se com a hierarquia militar ou social, favorável à simplificação da farda e do traje civil, à abolição do dólmen ou do paletó, eis aí a grande novidade. É certo que, independente das imensas vantagens econômicas que o Brasil aufere com sua amizade e apoio à política internacional norte-americana, existe também o fato de que em muitas de suas concepções sobre o papel do militar na vida de uma nação, os norte-americanos, ingleses, canadenses, etc. estão muito mais adiantados que nós sul-americanos, e lucraríamos muito em assimilar tais concepções. Assim, por exemplo, os norte-americanos sempre tiveram um corpo de oficiais de primeira classe, mas o seu exército de paz é pequeno e pesa pouquíssimo no orçamento nacional. Por outro lado, os oficiais norte-americanos procuram não influir na vida política da nação e consideram o exercício de cargos políticos como uma diminuição, como de fato o é, para um militar. Só em ocasiões de perigo nacional é que ocupam posições de caráter político, como talvez venha a se dar com Eisenhower.

Os católicos temos a obrigação de apoiar todos os elementos militares, de qualquer feitio, empenhados na campanha anticomunista e favoráveis à participação do Brasil na guerra fria contra a Rússia. Não são poucos os estados latino-americanos que se acham sujeitos a governos comunistas e socialistas e este é um dos melhores meios de preservar nosso país dessa lepra. Conservar a nossa juventude pura da contaminação da cultura infantil e amoral que por uma generalização excessiva se chama de norte-americana, aceitar a colaboração do capital estrangeiro no desenvolvimento de nossas riquezas, apoiar com todas as nossas forças a política externa dos EE.UU. contra a Rússia e declarar guerra de morte aos elementos comunizantes existentes em bom número no país, eis aí um programa para nós católicos e para nós verdadeiros patriotas.


REVOLUÇÃO BOLCHEVIZANTE NA GENTILIDADE ORIENTAL

Plinio Corrêa de Oliveira

A Rússia aufere imensas vantagens com a transformação ideológica que se processa no Oriente

Para que um leitor ocidental compreenda todo o alcance dos acontecimentos que se desenrolam no mundo islâmico, é necessário que renuncie de vez a certos hábitos mentais mais ou menos indefinidos, que se manifestam sempre que as circunstâncias o levam a pensar em homens, fatos ou coisas daquelas longínquas paragens.

Uma concepção falsa: o mundo das mil e uma noites

Estamos afeitos a considerar as nações do Islã como um mundo fechado, rico em florestas encantadas, palácios maravilhosos, príncipes fabulosamente ricos, odaliscas deslumbrantes, e misteriosos duendes. É a terra da fantasia, da poesia, das mil e uma noites enfim, que estacionou de vez na linha do progresso, e guarda consigo todos os mistérios e encantos com que deslumbrou os cruzados e trovadores que por lá andaram.

Claro está que um mundo assim pode constituir tema agradável, em momentos de ócio e repouso, para alimentar as cogitações de um Ocidental, enfarado com a trivialidade inexorável de nosso ambiente técnico democrático. Não pode porém incutir, nem verdadeira admiração, nem temor de qualquer espécie. Bem sabemos que na atmosfera das mil e uma noites não havia apenas as odaliscas, os príncipes, os palácios, mas ainda as superstições degradantes do paganismo, a magia, a poligamia, uma deformação social monstruosa que sujeitava populações inteiras de miseráveis à dependência absoluta de senhores despóticos, uma absoluta anorganicidade social que punha o poder público em perpétua instabilidade, pelo jogo irregular e trágico das competições e rivalidades palacianas, bem como pela demagogia bárbara de um ou outro surto de furor popular. De outro lado, a estagnação inevitável que deteve sempre o progresso das nações pagãs, impedira estes povos de caminhar, por seu próprio dinamismo, a “pari passu” com as nações cristãs. De onde decorreu que os meios de comércio, de produção industrial, e de conquista das potências ocidentais se tornaram tão mais poderosos que estas se habituaram a exercer sobre estes povos uma espécie de tutela. Descobrimos que muitas delas dispõem de importantes jazidas de petróleo, e têm possibilidades consideráveis como fornecedores de matérias primas para a indústria ocidental. De outro lado, tivemos o desejo de passar férias naquelas terras de sonho. Por tudo isto, nós, ocidentais, instalamo-nos no Oriente(*) com uma sem-cerimônia absoluta, como um intruso dispõe dos bens de um menor ou de um débil mental. Assim, durante muitas décadas usamos e gozamos o Oriente como bem entendemos. E, como o Império Britânico foi o principal beneficiário desta situação, é explicável que estas décadas coincidam precisamente com a fase de maior esplendor da hegemonia quase mundial da Inglaterra.

A contradição ideológica do imperialismo ocidental

Esta situação poderia durar? Dada a mentalidade das nações colonizadoras do Ocidente, especialmente as principais — principais pelo menos quanto à extensão de suas colônias — isto é a Inglaterra e a França, parece, que não.

Tanto uma quanto outra — e o mesmo poderia ser dito da Itália, da Espanha, de Portugal, da Holanda, da Bélgica, dos Estados Unidos — viviam, em sua política interna, sob a influência profunda das ideias da Revolução Francesa, que apregoou a igualdade de todos os homens. Foi sob a pressão do princípio de igualdade, que ao longo de todo o século XIX e desta primeira metade do século XX as estruturas sociais, políticas e econômicas, os usos, os costumes, as artes, tudo enfim no Ocidente se transformou. Ora, estes mesmos princípios, na esfera internacional, trazem como consequência forçosa a igualdade de todos os povos. Assim, entre as conveniências econômicas do Ocidente que o levavam a conquistar o Oriente, e os princípios doutrinários que o levavam a proclamar a igualdade de todos os indivíduos e todas as nações, e a consequente ilegitimidade de qualquer domínio exercido por um povo sobre outro, havia evidente incoerência. Tanto mais grave era esta incoerência quanto, nem os princípios tinham força suficiente para dominar e coibir os surtos de apetite imperialista; nem o imperialismo era bastante forte para impor uma total rejeição dos princípios que se lhe opunham. Como a incoerência é para a mente humana um estado antinatural e doloroso, chegou-se a uma explicação de compromisso:

1) os povos orientais estavam em uma situação material miserável, graças à incompetência de seus governos, e à evidente menoridade mental das massas;

2) suas leis e seus costumes eram atrasados, injustos, despóticos, contrários à ordem natural;

3) a riqueza de seu solo e subsolo, que eles se mostravam materialmente incapazes de aproveitar, perdia-se sem vantagem para ninguém;

4) as nações ocidentais cumpriam pois um dever, penetrando no Oriente, libertando os povos de seus governos ineptos, de suas leis retrógradas, de seus costumes semibárbaros, instruindo-os, “higienizando-os”, organizando-os, lançando as bases de um aproveitamento técnico em larga escala de seus recursos naturais;

5) os lucros que daí proviriam para o Ocidente seriam a paga dos gastos, trabalhos e riscos desta enorme tarefa.

Os princípios doutrinários de um imperialismo católico

Esta justificação teórica do imperialismo ocidental suscita várias questões, que procuraremos analisar do ponto de vista da doutrina católica. A primeira consiste em saber se um povo mais desenvolvido pode impor seu progresso a outro menos desenvolvido. Em última análise, não tem cada qual o direito de organizar sua vida como lhe apraz? E de que adianta o progresso, se não satisfaz às aspirações de bem estar e dignidade que cada qual tem o direito de conceber como entende?

A resposta a estas perguntas se dá com a enumeração de alguns princípios que são incontestavelmente ortodoxos:

1 — É certo que cada homem, cada família, cada região, cada povo tem o direito e até o dever de organizar sua vida temporal atendendo ao seu feitio mental próprio, de sorte que a imposição pura e simples dos padrões de vida do Ocidente contemporâneo ao Oriente, em nome do progresso, constitui ou constituiria uma violência inadmissível; disto nos dá um exemplo a própria Igreja que, respeitando a diversidade de índole dos povos, tem uma liturgia e um direito canônico próprio para os Ocidentais, e liturgias e legislações consideravelmente diversas para os Orientais. Assim, na medida em que os ocidentais mataram as tradições, a arte, a cultura do velho Oriente, substituindo-as por nossa “civilização” de cimento e aço, erraram.

2 — Entretanto, nenhum povo tem o direito de levar tão longe sua própria liberdade de pensar e viver à sua guisa, que desobedeça à Lei de Deus. Às nações pagãs não é lícito fechar-se aos que em nome de Jesus Cristo lhes vão anunciar a Boa Nova. Cada vez que um missionário bate às suas portas, vai assistido pela graça de Deus, que dá a todo pagão as luzes necessárias para perceber — se estiver de boa fé — que aquele é um ministro da verdadeira Religião. Assim, se o enxota, não será, ao menos na imensa maioria dos casos, por ignorância mas por pecado. E, esgotados os meios suasórios, devem as nações cristãs usar da força para obrigar os governos pagãos a dar aos enviados de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja o direito de exercer livremente a missão que lhes conferiu o próprio Deus. Admitir o contrário seria afirmar que é preciso obedecer mais aos homens do que a Deus.

Assim, se um povo tem leis que violam o Decálogo, se manda queimar as viúvas junto à sepultura do marido, se admite a poligamia, o infanticídio, o poder de vida e de morte dos senhores sobre os escravos, etc., é um direito e um dever das nações civilizadas, de lhe impor o cumprimento da Lei de Deus. E se um povo obsta a entrada de missionários, é igualmente um direito e um dever das nações católicas empregar seu prestígio e até fazer uso da força se necessário, para assegurar a liberdade dos ministros da Igreja.

3 — O uso da força conduz evidentemente, em muitos casos, à conquista. Os meios desta conquista, entretanto, devem ser leais e brandos. Leais, no sentido de que não devem consistir em mentira, em fraude, para criar situações que se prestem, por sucessivos abusos, a uma total vitória. Não é por meio de violações das Leis de Deus que os católicos hão de adquirir sobre os outros povos um domínio destinado a levar estes últimos a obedecer à mesma Lei. Seria uma incoerência monstruosa. Devemos ser guerreiros cheios de nobreza e de sinceridade. E também devemos ser brandos, no sentido de que o uso da força não deve ir além do necessário para a conquista, de sorte a assegurar tanto quanto possível caminhos abertos para que reine a caridade entre vencedores e vencidos.

4 — A vitória, alcançada em nome de Jesus Cristo, não deve caber senão à Santa Igreja. O povo vencedor tem o direito — é certo — de se pagar dos gastos e prejuízos da guerra. Mas não deve levar além disto a exigência de compensações. Poderá manter sobre o povo vencido uma tutela política que será legitimamente mais extensa, ou menos, conforme a conduta deste último. Mas não poderá nem deverá transformar a nação vencida em mera fonte de lucro. O espírito de sua dominação deve ser fraternal, como de um irmão que admoesta — se necessário com inflexível vigor — seu irmão mais moço. Nunca como um senhor que governa um escravo. Por isto, o povo vencedor não imporá seus costumes, nem sua lei, nem sua cultura. Assegurará apenas à Igreja a liberdade e a autoridade necessária para elevar e santificar com os fermentos da graça e da verdade as leis, costumes e cultura típicos do país vencido.

Benfazeja ou malfazeja a ação colonial do Ocidente?

Procederam assim as nações ocidentais? Dolorosa pergunta!

É fato que elas abriram as portas — sobretudo as nações católicas — aos missionários. E nisto merecem ser louvadas. Mas, de outro lado, infeccionadas pela influência do neopaganismo moderno, o melhor de seu prestígio, de seus recursos, de sua ação, se empregou em difundir uma cultura, um ambiente, uma situação oposta diametralmente em muitos pontos essenciais, à doutrina pregada pelos missionários. Foram os missionários ao Oriente, é verdade. Mas foram também os cinemas, os rádios, a imprensa imoral, e todo o oceano de infâmias e de misérias que habitualmente por esses meios extravasam sobre a massa. De sorte que, em última análise, a civilização neopagã moderna serviu para combater e circunscrever no Oriente os frutos da evangelização do Oriente, precisamente como circunscreve e combate a ação da Igreja no Ocidente. E, de modo global, a invasão do neopaganismo no Oriente foi muito mais geral e profunda do que a do Catolicismo. É certo que as missões produziram grandes frutos em certos pontos, mas para se compreender nosso pensamento é preciso que se comparem esses frutos ao que conseguiu a penetração torrencial do neopaganismo ocidental no Oriente...

É preciso, aliás, que a este respeito não nos tomemos de uma compaixão lírica pelos orientais. Nós, ocidentais, conhecemos a Igreja, e pecamos porque em lugar de a seguir, nos deixamos arrastar pelo neopaganismo moderno. Os orientais estão no mesmo caso. Tiveram graça suficiente, todos os que ouviram os ministros do Senhor. Mas isto não isenta de toda a culpa aos fautores de escândalo, que tanto concorreram para que os orientais não ouvissem a Igreja: e estes são os próprios imperialistas do Ocidente.

Fora de discussão

Há duas categorias de pessoas que não concordarão com estas apreciações. Em primeiro lugar os patrioteiros, que acham que as respectivas nações foram concebidas sem pecado original, e que, pois, tudo fazem bem feito, de sorte que, se ocuparam a Índia, a Timor, a Tripolitânia, a Tunísia ou o Marrocos, corre por lá tudo muito bem, e há injúria à bandeira e aos brios de sua pátria em afirmar o contrário, etc., etc., etc. Com este “patrioteirismo” infantil e primário, fácil em se sentir ofendido e mais fácil ainda em ofender, não discutimos. Como seria bom se essas pessoas amassem a Igreja como amam suas pátrias! Em segundo lugar, não concordarão conosco os espíritos superficiais que acham a atual civilização ocidental excelente, e não percebem o imenso dissídio que há entre o mundo contemporâneo e a Igreja. Com estes também não se pode discutir. Porque nossos argumentos tendem a tirá-los de seu “doce sossego”, e nada há de mais intransigente, de mais irritadiço, de mais irracional, do que um idólatra do sossego, quando se lhe dizem as verdades que conduzem à luta.

Um dom inestimável que o Oriente recusou

Todas estas considerações, entretanto, não seriam completas se não acrescentássemos que, se bem que a civilização ocidental seja hoje em dia pagã em suas manifestações mais essenciais, mais profundas, mais características; se bem que seu paganismo seja em certo sentido muito mais radical que o dos Orientais, restam nela sob várias formas valores cristãos tradicionais inestimáveis; e borbulha no Ocidente esta perpétua fonte de vida espiritual renovada que é a Santa Igreja. De sorte que erraria gravemente quem dissesse que o domínio do Ocidente sobre o Oriente não trouxe a este nenhum benefício.

Sem falar num indiscutível abrandamento dos costumes, numa difusão mais geral da instrução e da higiene, num aproveitamento mais inteligente dos recursos naturais, devemos mencionar como o maior de todos os benefícios o contato com a ação missionária.

Quais têm sido ao certo os frutos desta ação? Têm eles sido tão diferentes de lugar para lugar, que difícil seria formular uma resposta geral, válida indiscriminadamente para todas as nações — tão diversas em tudo e por tudo — da Ásia e da África. Entretanto, é indiscutível que o êxito da ação missionária não depende exclusivamente do missionário, mas do missionado. Diante do ministro do Senhor, cada homem, cada cidade, cada povo têm em mãos, como dissemos, a possibilidade de aceitar ou de rejeitar a Boa Nova. Se bem que muitos a tenham rejeitado, e, pois, se tenham recusado a fazer uso das vantagens da ação missionária, não deixa de ser verdade que aqueles que lhes puseram ao alcance o missionário lhes proporcionaram um grande bem. Para ilustrar este pensamento, imaginemos o caso de alguém que põe nas mãos de um doente um remédio decisivo. Ainda que o doente, por desídia ou qualquer outro motivo, não venha a fazer uso do remédio, não deixa de ser verdade que a esmola feita pelo generoso doador é de grande valia. Se não surtiu resultado, a culpa terá sido o doente. Assim, nos numerosos lugares onde a Igreja deitou raízes na África e na Ásia; a penetração ocidental terá trazido com isto um benefício imenso, inapreciável. Nos lugares onde o missionário chegou, mas sua voz não foi ouvida — ao menos por oras — nem por isto o benefício deixou de ser de grande valia. E, para o católico que sabe prezar antes de tudo o Reino de Deus, este benefício supera a ação de alfabetização ou de higienização, como o Céu supera a terra.

Para onde rumam os fatos?

É claro que, se as relações entre o Ocidente e o Oriente fossem norteadas — pelo menos do lado do Ocidente — pelo espírito católico, mudariam consideravelmente de rumo e de aspecto. De um lado, a penetração cultural no Oriente deveria fazer-se com respeito às velhas civilizações, às velhas tradições, aos velhos estilos de vida, de modo a proporcionar aos diversos países um progresso rigorosamente adaptado ao que eles têm de legitimamente seu. Assim, tratar-se-ia de cristianizar o Oriente, muito mais do que de o ocidentalizar.

Em segundo lugar — nem seria necessário lembrá-lo — a influência do Ocidente seria escoimada do que ela tem atualmente de mau; o tecnicismo exagerado, a sujeição do homem à máquina, a vulgaridade chocante, o espírito de “série” e de “padronização”, e sobretudo a imoralidade, o desejo delirante de fazer da existência terrena uma série ininterrupta de prazeres.

Por fim, se bem que o Ocidente devesse receber a justa paga dos capitais e dos esforços que aplicou no Oriente, toda a espoliação econômica ou política deveria cessar em virtude de uma atuação hábil e prudente.

Mas isto não se dá. O Ocidente continua a despejar sobre o Oriente todos os benefícios e malefícios de sua ação. Não é o caso de abordar aqui o problema relativo à preponderância dos benefícios sobre os malefícios, ou destes sobre aqueles. A grande questão é outra. À vista desta política do Ocidente, como está reagindo o Oriente? Esta reação é capaz de melhorar a situação?

Origens da xenofobia oriental

Nas relações entre Oriente e Ocidente, há duas etapas muito nítidas. Na primeira, que vem de meados do século passado até, mais ou menos, o fim da primeira guerra mundial, o Oriente viveu sob a ação de um verdadeiro complexo de inferioridade em relação ao Ocidente: envergonhava-se de suas velhas religiões, de seus velhos hábitos, de sua arte antiga. Daí a imitação sistemática: por toda a parte, cheiks, rajahs, príncipes, beis, ulemas, visitando a Europa, começaram a se ocidentalizar, e a introduzir em seus países, por vezes com uma energia que roçava pela violência, a ocidentalização. A guerra de 14-18 foi, porém, para o Ocidente um golpe terrível. A Europa — foco da cultura ocidental — saiu dela abalada, diminuída, deslustrada. E, em sentido contrário, o Oriente progredia. De um lado, a ação dos próprios europeus aumentava o nível de riqueza e de instrução das nações coloniais. De outro lado, os princípios igualitários da Revolução Francesa, pregados implícita ou explicitamente por todas as potencias colonizadoras, atingiram também o Oriente. Como era inevitável, dia chegou em que os orientais se perguntaram por que motivo deviam obedecer ao Ocidente. Foi este o ponto de partida ideológico do nacionalismo que depois de 1918 começou a grassar por toda a Ásia e África. Este nacionalismo encontrou bons argumentos nas próprias deficiências da ação ocidental: as espoliações, a exploração econômica, o orgulho dos ocidentais, sua dissolução de costumes, a ausência de qualquer valor positivo na cultura de decadência que traziam consigo. O nacionalismo exacerbado movimentou a desconfiança e a má vontade das velhas religiões pagãs, ainda muito generalizadas e influentes, contra a ação missionária da Igreja. Tudo isto criou uma imensa mole de antipatias, de prevenções, de ressentimentos, que não foi difícil transformar em verdadeira oposição política. E assim, da China até a Jordânia, da África do Sul até a Tunísia, a gentilidade começou a efervescer.

Nesta oposição, contudo, duas forças distintas desde logo se delinearam: os tradicionalistas e os revolucionários. Os tradicionalistas quereriam enxotar o Ocidente, para manter a atual situação política, econômica e social, com todas as providências necessárias para o fortalecimento das antigas castas, dos antigos cultos, dos velhos usos. Os revolucionários, pelo contrário, não desejam apenas expulsar os ocidentais, mas transformar inteiramente o Oriente, acabando com todas as suas tradições, suas velhas instituições e costumes, e iniciando uma sociedade democrática e técnica, que explorasse em benefício dos orientais todos os recursos do Oriente. Como se vê, as duas correntes são diametralmente apostas. Uma toma a defesa da cultura oriental tradicional, contra o Ocidente. A outra quer destruí-la, substituindo-a inteiramente por uma cultura técnica nova, de base estritamente democrática. Enquanto o ódio comum ao ocidental mantiver a união entre as duas tendências, esta frincha não se manifestará talvez muito claramente. Mas se o poder do Ocidente continua a minguar — do que há graves e múltiplos indícios — a luta entre estas duas tendências, que já existe agora, se tornará claríssima. Qual delas preponderará?

Vencerão os nacionalistas revolucionários, ou os conservadores?

Diria Mr. de la Palisse que a mais forte. E, como de costume, Mr. de la Palisse teria toda a razão. Resta pois saber qual das duas tendências é a mais forte.

Indiscutivelmente a revolucionária. O conservantismo oriental não é senão um velho e imenso cadáver que os revolucionários agitam como espantalho para impressionar os ocidentais, e de cuja decomposição se alimentam.

Shás, beis, príncipes, rajahs, ulemas, tudo isto para o Oriente já é mais passado do que presente, corresponde a tradições e velhos hábitos mentais suficientemente fortes para ainda durar algum tempo, mas bastante fracos para não dar mais origem a qualquer movimento enérgico, em nenhum sentido. Pelo contrário, a massa citadina de todas as metrópoles orientais, fortemente sacudida pela demagogia, e a única a decidir tudo pois os trabalhadores rurais são de uma atonia total, pende cada vez mais para a revolução. Nas grandes organizações religiosas, alas revolucionárias importantes vão penetrando e galgando posição. De fato, o nervo, a alma, a vida do movimento nacionalista está cada vez mais com os revolucionários.

E por isto até se nota claramente que os representantes da velha tradição oriental, sentindo que o fogo lhes arde por debaixo dos pés, tendem a apoiar-se até certo ponto sobre os ocidentais. Os rajahs, os shás, os beis, o Rei Faruk, são evidentemente conciliadores. A intransigência está toda do lado dos revolucionários.

A “longa manus” comunista

Caso os revolucionários vencessem, a URSS auferiria com isto vantagens inapreciáveis:

1) um Oriente plasmado segundo os gostos dos revolucionários, teria uma ordem social e econômica muito próxima do comunismo, e, pois facilmente susceptível de ser bolchevizada;

2) um Oriente antiocidental perturbaria em larga medida a indústria europeia baseada no fornecimento de petróleo e matérias primas vindas do Oriente;

3) um Oriente antiocidental tenderia a negar bases militares e cooperação bélica ou econômica ao Ocidente contra a URSS;

4) os governos antiocidentais do Oriente só poderiam manter-se apoiados no prestígio internacional da URSS.

Estas considerações levam a crer que os russos já se tenham aproveitado amplamente destes movimentos, e que os estejam auxiliando com recursos financeiros. Em boa técnica política, equivale isto a dizer que os russos também já foram introduzindo homens de sua confiança um pouco por toda a parte, na direção destes movimentos, e que em última análise o motor de tudo é a URSS.

Perspectivas sombrias

Que possibilidades de resistência tem o Ocidente, contra esta imensa “onda” ideológica e política?

Em última análise, pequenas. Pois que uma política de reação ocidental provavelmente levaria a URSS a precipitar a guerra mundial, e durante a guerra o Ocidente deixaria de pensar no problema. Se vencesse a guerra, estaria tão gasto que não poderia reencetar senão dentro de vinte anos uma nova guerra para reocupação no Oriente. E durante estes vinte anos hipotéticos um sem número de “fatos consumados” no Oriente teria tornado impossível qualquer transformação da situação.

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Qual a posição destes “revolucionários” perante a Igreja? Hostilidade por vezes declarada, por vezes velada, mas irredutível porque decorrente de uma total diversidade de princípios e de espírito.

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Das várias hipóteses, a pior seria, pois, a que infelizmente parece mais provável, humanamente falando, isto é o triunfo da ala revolucionária.

“Humanamente falando”, dizemos, pois que não há só homens neste jogo. Há também interesses importantíssimos da Igreja. E quando a Igreja está em causa o “humanamente falando” tem valor sempre