SEGURANDO pela mão seus dois filhos, uma jovem mãe aguardava, no meio da multidão, o ingresso do Santo Padre na sala de audiência. A muito custo conseguira colocar-se na primeira fila. Pio XII passaria bem na sua frente; talvez mesmo lhe dirigisse alguma palavra. O menino, muito mais esperto e vivo que sua tímida irmã, preparara já uma frase para dizer ao Santo Padre.
Abrem-se as portas. Aparecem primeiramente alguns altos dignitários, e logo atrás surge a silhueta do Santo Padre. Todos se calam, penetrados pela majestade que irradia da figura do Papa Pio XII lhes dirige algumas palavras, e concede sua benção. Passa então a caminhar por entre a multidão, enquanto todos se comprimem, procurando a primeira fila, tentando pelo menos tocar as mãos do Papa, que paternalmente se estendem.
— "Santo Padre — grita o menino com voz segura — quando eu for grande, serei Papa".
Detendo-se, Pio XII fita a criança; sorri e murmura lentamente, com a voz penetrada de imensa bondade: — "Oh! Pobre criança".
Com a fisionomia levemente espantada, o menino pergunta: — "Mas não é bom ser Papa?"
— "Não meu filho — responde Pio XII, paternalmente — não é como você pensa".
Na sua ingenuidade infantil, a criança via apenas a suntuosidade fascinante da audiência. Mas, encoberta por essa aparência majestosa, esconde-se a vida íntima do Papa, toda ela feita de trabalho, de sacrifícios, de constante sujeição a um árduo e rotineiro programa de vida. "Não, meu filho; não é como você pensa".
Às 6 h 15, toca o despertador nos aposentos pontifícios. Logo depois, o ruído do aparelho elétrico de barbear utilizado pelo Papa dá o sinal para que faça vir Gretel, o pintassilgo que caiu de seu ninho nos jardins do Vaticano, sendo levado por feliz coincidência ao apartamento privado de Sua Santidade. Ali foi elevado à condição de íntimo da casa, tornando-se o cantor particular do Santo Padre. Sem pedir permissão, e sem o menor constrangimento, Gretel pousa sobre a mão direita de Sua Santidade; balançando-se nela como sobre um ramo, lança o seu canto de saudação matinal. Saltita audaciosamente sobre os ombros e a cabeça do Papa, e se entristece quando o aparelho de barbear para e ele é posto de lado.
Às 7 horas, o Santo Padre está na sua pequena capela particular. Desde o momento de sua entrada, este lugar, por si já tão sagrado, torna-se o próprio coração da Igreja. Na união com Deus, o Sucessor de Pedro sente fortificar-se o amor e o espírito de sacrifício exigidos a todo o instante pela "sollicitudo omnium Ecclesiarum".
Esta santa missa, à qual não assistem senão algumas poucas pessoas de maior intimidade, constitui cada vez um novo e maravilhoso acontecimento.
Em sua simplicidade costumeira, mas irradiando uma dignidade indescritível, Pio XII aproxima-se do altar. Nos seus lábios, o "Confiteor" reveste-se de um tom especial de súplica, como se os pecados de toda a cristandade e de todos os homens pesassem sobre seus ombros profundamente inclinados.
O ambiente reflete a atmosfera celeste; os vitrais, onde se vê o escudo da pomba com um ramo de oliveira, deixam penetrar uma luz calma e recolhida. Tudo é harmonia em torno daquele altar, o mesmo que outrora se encontrava no primeiro andar do palácio apostólico quando ali vivia o Secretário de Estado de Pio XI.
Contra a parede da esquerda, entre as duas janelas, está uma estátua de Maria Santíssima. À direita do altar, um relicário contém um fragmento, do sagrado corpo do Bem-aventurado Pio X, que agora abençoa o pontificado daquele jovem Prelado de seu tempo, a quem confiou tantas missões particularmente importantes e delicadas. Mais para o fundo da capela, estão as relíquias de São Luís Maria Grignion de Montfort, o grande discípulo e apóstolo de Nossa Senhora, a quem o próprio Pio XII elevou à glória dos altares.
Os sagrados paramentos estão, também eles, em sua tocante simplicidade, em harmonia com as linhas sóbrias da capela. Alguns reproduzem desenhos clássicos, outros são obras de mãos simples — uma casula branca foi doada, há alguns anos, por um grupo de doentes do Cottolengo — mas todos apresentam, na diversidade das cores litúrgicas, uma decoração majestosa e escolhida.
Terminada a Santa Missa, Pio XII permanece só, absorvido na ação de graças. Concluindo-a, ajoelha-se diante da imagem de Maria, a quem recomenda seus trabalhos e os milhões de almas que, dispersas pela face da terra, tanto necessitam da poderosa intercessão da Mãe de Deus.
Às 8 h 20, mais ou menos, Sua Santidade toma rapidamente algum alimento. Nesta refeição matinal, como em todas as demais, está inteiramente só. Apenas os pequenos passarinhos lhe fazem companhia, saltitando sobre suas mãos e seus ombros. Recebem todos o seu quinhão, pois o cerimonial não vale para eles. Mas sabem que o tempo de sua liberdade termina quando notam maior movimento. Deixam-se então levar tranquilamente para a sala vizinha, onde a gaiola os espera.
Exatamente às 9 horas, o Santo Padre está pronto para as audiências. O que elas significam corno fadiga e responsabilidade, como tensão espiritual e física, só Deus pode com exatidão avaliar.
São primeiramente examinados assuntos importantes e urgentes com os altos Prelados da Secretaria de Estado. Nessas audiências, que frequentemente se estendem por cerca de duas horas, apresentam-se motivos de alegria e de dor, examinam-se problemas e questões vitais para toda a Igreja. Comparecem logo após, conforme a ordem previamente estabelecida, os Cardeais Prefeitos ou Secretários das Sagradas Congregações romanas e dos diversos dicastérios, que, nos assuntos de sua competência, mantém um contato direto com Sua Santidade e necessitam de sua decisão para tornar efetivos seus atos e decretos. Intercalam-se, então, muitas vezes, as visitas de Chefes de Estado, de representantes de Governo, de altos funcionários, de membros do Corpo diplomático acreditado junto a Santa Sé, bem como, diariamente de Bispos, Prelados missionários, Superiores de Ordens religiosas e personalidades do mundo leigo. Seguem-se as audiências especiais, e as públicas.
Tudo isso se realiza como atividade ordinária e quotidiana, salvo quando há alguma grande cerimônia papal em São Pedro ou na Capela Sistina. Mas todo o tempo que resta depois das solenidades, geralmente concluídas por volta do meio dia, é também reservado para as audiências, até às 13 h 30, às 14 horas ou ainda mais tarde.
É apenas então que o Santo Padre, esgotado, retorna ao seu apartamento privado. O médico pode insistir para que as audiências sejam suspensas ao menos um dia por semana: suas observações vigilantes desfazem-se ante a resposta inelutável do Supremo Pastor: "Teria ainda mais trabalho no dia seguinte", ou: "Os que talvez não pudessem vir senão nesse dia não teriam, também eles, o direito de ver o Papa?".
Não é raro ver-se o Soberano Pontífice voltar tão fatigado das audiências, que na mesa mal consiga articular uma palavra. Na verdade, isso pouco o perturba, pois não tem como convivas senão aos seus pássaros. Mas quando, mesmo para eles, o Papa não tem pelo menos algumas poucas palavras, Gretel pousa sobre seus ombros e se aproxima de seu ouvido. Sua Santidade então sorri e o toma na palma da mão, enquanto os outros convidados esvoaçam em torno, em busca de algo que lhes satisfaça ao paladar.
Logo após o almoço, Pio XII examina a correspondência por meia hora ou 45 minutos. Depois de 20 minutos de repouso, com uma pontualidade meticulosa, o Papa sai para um passeio no jardim. Já por mais de uma vez tentou economizar — como diz — até mesmo esse tempo. Mas felizmente os médicos jamais conseguiram descobrir algo de eficaz para suprir seus benéficos efeitos sobre a saúde do Santo Padre. Contudo, mesmo durante esse passeio ao ar livre o Soberano Pontífice se submete a um regime ale concentração e recolhimento. Leva sempre consigo algumas folhas de papel; às vezes, mesmo andando num passo apressado, elabora um discurso ou fixa brevemente suas grandes linhas.
Voltando ao seu gabinete, absorve-se logo num trabalho intenso, cortado por breves intervalos de oração. Não deve agora ser interrompido por nada e por ninguém. São estas as horas que mais lhe pertencem. Algumas vezes, lá pelas 20 horas, vêm altos funcionários do Vaticano, para relatórios especiais.
O jantar é a mais solitária das refeições, pois então os pássaros já dormem; reina na sala um silêncio absoluto.
Se, devido a algum acontecimento especial — de que pôde tornar conhecimento pela manhã, em sua rápida leitura dos principais jornais — está previsto algum importante discurso radiofônico, Pio XII lhe consagra sua atenção, pelo menos por alguns breves momentos
Às 21 h 30, Sua Santidade se dirige à capela privada para a recitação do terço com as pessoas mais íntimas.
Em seguida, o Papa despede a todos. Começa para Ele uma espécie de vigília, dedicada inteiramente à oração e ao trabalho. Das 23 horas à meia noite fica só, na capela, para terminar o breviário e suas demais preces quotidianas. Retoma então com o Divino Mestre aquele colóquio íntimo, que mal se poderia dizer interrompido durante o dia. É o Sucessor de São Pedro que confia a Deus suas esperanças e seus cuidados, que Lhe pede pelas inumeráveis necessidades do gênero humano. À meia noite, volta para seu gabinete de trabalho, onde fica até cerca de duas horas da madrugada.
Muitos são os que conhecem a janela iluminada do terceiro andar, brilhando sobre a Praça de São Pedro como os olhos do Pastor vigilante, esquecido de si mesmo, consagrado inteiramente ao fiel cumprimento da vontade d'Aquele que colocou entre suas mãos a chave do Reino dos Céus.
Pio XII conta já 76 anos de idade, mas não tem tempo para se sentir cansado e para repousar. Mesmo as suas estadias em Castelgandolfo (completamente suprimidas, aliás, durante os anos de guerra, em nada diminuem seu labor insano. É uma mudança de ambiente, não porém de ritmo de vida, pois seu programa diário mantém-se quase sempre o mesmo. As audiências "di tabella" são ali temporariamente suspensas, mas mesmo essa pausa está sujeita a numerosíssimas exceções. E o Santo Padre jamais sabe dizer "não" aos incontáveis peregrinos que se aglomeram em Castelgandolfo, ansiosos por vê-lo.
É esse o programa diário de Sua Santidade Pio XII, que com justiça pode dizer-se o "Servus servorum Dei"; e é por meio desse trabalho incessante, dessa penosa sujeição a um ritmo de vida extremamente árduo e monótono, que Pio XII conduz a cristandade no serviço d'Aquele Senhor "cui servire regnare est".
(Resumido do "Osservatore Romano" de 21 de março. de 1952)
Episódio da 7.a Cruzada, descrito por Joinville na história de São Luís IX, Rei de França:
Frei Hugo de Jouy, marechal da Ordem dos Templários, tinha sido enviado ao sultão de Damasco da parte do Mestre (ou Superior Geral) daquela Ordem, para tentar obter, a propósito de um extenso território que os Templários ocupavam e que o Sultão reivindicava, um acordo que atribuísse a cada qual a mesma extensão. O acordo foi feito, sob reserva da aprovação do Rei. Frei Hugo trouxe consigo um Emir da parte do Sultão de Damasco, e juntamente as convenções contidas em um escrito chamado "monte foy", isto é, que fazia fé em justiça. O Mestre relatou este assunto ao Rei, que ficou absolutamente fora de si e lhe disse que se tinha mostrado muito audacioso concluindo ou negociando uma convenção com o Sultão sem nada lhe participar; e exigiu do Mestre que lhe fizesse reparação.
Eis como esta foi realizada: o Rei fez levantar os panos de três de suas tendas, das quais se pôde à vontade acercar todo o exército. O Mestre do Templo e todos os cavaleiros da Ordem para ali se dirigiram, pés nus, atravessando todo o acampamento, fora do qual estavam suas tendas. O Rei fez sentar diante de si o Mestre do Templo e o mensageiro do Sultão, e disse ao Mestre em voz alta: "Mestre, direis ao mensageiro do Sultão que vos pesa haver celebrado com ele uma convenção sem me falar, e que, nestas condições, considerais desobrigado de quanto vos prometeu, e lhe restituis todas as suas promessas". O Mestre tomou as convenções e as entregou ao Emir, dizendo-lhe: "Eu vos restituo as convenções, que fiz erradamente, e lamento de as haver feito". O Rei disse então ao Mestre que se levantasse e fizesse levantar todos os seus cavaleiros; e assim foi feito. "E agora, ajoelhai-vos e fazei-me um ato de reparação por haverdes empreendido estas negociações contra a minha vontade". O Mestre se ajoelhou e estendeu a ponta de seu manto ao Rei, e pôs à disposição deste todos os bens da Ordem para que deles tirasse a multa que lhe aprouvesse. "Quero antes de tudo, disse o Rei, que Frei Hugo, que assinou as convenções, seja banido de todo o Reino de Jerusalém". Nem o Mestre, que, na qualidade de padrinho do Conde de Alençon (quinto filho de São Luís), era compadre do Rei, nem a Rainha, nem qualquer outra pessoa, pôde auxiliar Frei Hugo impedindo que ele fosse banido da Terra Santa e do Reino de Jerusalém.
Legenda: São Luís IX servindo os pobres — Miniatura do século XVI nas "Petites Heuvres" de Catarina de Medicis