(continuação)
Alocução pontifícia (conclusão)
(7 ) — Lendo estas sabias palavras do Vigário de Cristo, lembramo-nos com angustia dos modernos arranha-céus que se vão multiplicando pela Brasil, e que parecem construídos para impor a limitação da prole.
(8) — Importantíssima afirmação. Diz o Santo Padre que, ao menos em suas partes essenciais, a questão operária já está resolvida. Isto é, que os princípios fundamentais segundo os quais esta questão pode ser solucionada já são conhecidos, e estão sendo postos em prática.
A afirmação, por certo, não agradará aos demagogos, que tendem a exagerar o alcance da questão operária, e sua verdadeira gravidade, para proclamar a necessidade de revoluções sociais cruentas ou incruentas, e para servir de um modo ou de outro à avançada socialista.
Por certo, em muitos países ainda há o que fazer para que esta questão se possa considerar resolvida, e entre estes se encontra o Brasil. Mas pelo menos já sabemos quais são os princípios fundamentais da solução. Encontram-se nas Encíclicas. Estas não são um tímido esboço, um primeiro passo indeciso no caminho longo das indefinidas reformas sociais sonhadas pelos demagogos. Elas já contêm o arcabouço definitivo da solução.
( 9 ) — Outra afirmação importantíssima. Em certos círculos, ouvem-se declamações contra a Igreja, como se ela tivesse falhado à sua missão de justiça e paz na questão operária. Não faltam católicos que apontam mesmo os seus irmãos que os precederam "cum signo Fidei" no século passado e nas primeiras décadas deste, como os principais culpados pela questão social. Pio XII nos afirma o contrário, vindicando serenamente a honra da Igreja e dos seus filhos. Poderá, é certo, ter havido ações e principalmente omissões graves. De modo geral, porém, "o mundo católico contribuiu para esta solução de modo leal e eficaz".
( 10) — É talvez o ensinamento culminante desta mensagem. Merece todo um artigo especial. É a própria Igreja, definindo os problemas mais urgentes da hora presente. Ensina o Santo Padre que no terreno social a grande questão do momento não é mais a mera questão operária, mas a luta de classes. Em outros termos, a hostilidade das classes sociais é como que uma conseqüência venenosa da questão operária, que está produzindo agora seus frutos amargos. O socialismo que ameaça devorar os direitos da pessoa e da família é outro dos grandes problemas que a Igreja tem diante de si.
( 11 ) — Como se vê, a Igreja quer que haja classes sociais, e que vivam harmonicamente entre si. A luta de classes não deve ser resolvida pela escravização dos que têm menos aos que têm mais; nem pelo nivelamento: sua solução consiste em uma "superação", isto é, em elevar as relações entre as classes sociais para o terreno da concórdia baseada na justiça e na caridade.
( 12 ) — Há nestas palavras um ensinamento profundo, um desafio épico, um incitamento a uma cruzada sui generis, mas autêntica. Diante do Leviatã moderno que é o Estado, só a Igreja se levanta para impedir o holocausto de todos os direitos; só ela tem a serena grandeza de anunciar que o combaterá "com a última energia". Neste combate, a Igreja não entra para defender os direitos de uns contra os direitos de outros, mas os direitos de todos contra os pretensos direitos de um Estado hipertrofiado. E é a própria salvação eterna das almas que está empenhada nisto.
( 13 ) — Note-se o motivo por que a Igreja defende a propriedade privada. O que há de mais intrínseco na sua missão — isto é a salvação das almas — está empenhado em tal. Quão infundado é imaginar que a Igreja variará neste ponto!
( 14) — Outro tópico importantíssimo, que pede comentário maior. Desde logo porém importa frisar que os católicos devem abordar esta delicada matéria com prudência, para se manterem fiéis aos ensinamentos do Santo Padre, evitando a sedução dos slogans e das frases feitas da demagogia.
(15 ) — Notar a expressão. O Santo Padre não quer deixar-se envolver pelo jogo das paixões partidárias. A Igreja não é uma instituição de defesa de classes, quer patronais (direita), quer operárias (esquerda). Ela defende, isto sim, os princípios da lei natural, a moral ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo. E é só a estes princípios e a esta moral que os fiéis se devem ater.
(16 ) — O Sumo Pontífice não perde ocasião para inculcar a devoção a Nossa Senhora. Se, mediante o auxílio de Maria Santíssima, a Áustria se mantiver fiel à Lei de Deus, nada terá que temer, apesar de serem terríveis suas condições atuais. É que o fundamento de todas as soluções está na obediência a Deus e tudo o mais é ilusão se não se apoiar neste fundamento.
O Sumo Pontífice, na audiência concedida aos membros do "Primeiro Congresso Internacional de Histo-patologia do Sistema Nervoso" no dia 14 de Setembro, falou acedendo benignamente ao pedido que lhe foi feito pelos congressistas, sobre "os limites morais dos métodos da ciência médica na pesquisa e na cura".
O Santo Padre enumerou três princípios que podem justificar, do ponto de vista moral, novas maneiras de proceder, novas tentativas e métodos de pesquisa e de cura médica, a saber: o interesse da ciência, o interesse individual do doente e o interesse da comunidade (o "bem comum"), e examinou depois, ponto por ponto, se estes três princípios valem ilimitadamente ou só de uma maneira limitada, isto é, dentro das lindes postas pela ordem ética. Tratando da utilidade e da vantagem individual, Sua Santidade reprovou o "método pansexual de uma certa escola de psicanálise". Este exemplo particular vem compreendido debaixo da seguinte questão geral: "Pode-se admitir o princípio: Se a cura médica exige determinada medida, por isso mesmo fica provada a sua liceidade moral"? Ou ainda: "Tal novo método, até aqui descuidado e pouco praticado, dará resultados possíveis, prováveis, certos.
Por isso mesmo, todas as considerações éticas com respeito à liceidade estão superadas e devem ser reputadas como sem objetivo"? O Papa assim se exprime a respeito daquela espécie particular de psicanálise:
"Eis um outro exemplo: para libertar-se das repulsas, inibições, complexos psíquicos, o homem não é livre de excitar em si mesmo, com fins terapêuticos, todos e cada um dos apetites da esfera sexual que se agitam ou são agitados no seu ser, e movem suas vagas impuras no seu inconsciente ou no seu subconsciente. Não pode fazer disso o objeto das suas representações ou de seus desejos plenamente conscientes, com todos os abalos e as repercussões que são consequência de um tal modo de proceder. Para o homem e para o cristão existe uma lei de integridade e de pureza, de estima pessoal, a qual lhe proíbe imergir-se tão completamente no mundo das representações e das tendências sexuais. O interesse médico e psicoterapêutico do doente encontra aqui um limite moral. Não está provado, pelo contrário é inexato, que o método pansexual de uma certa escola de psicanálise seja uma indispensável parte integrante de toda psicoterapia séria e digna deste nome; que o fato de outrora se ter descuidado deste método haja causado graves danos psíquicos, erros na doutrina e na prática da educação, da psicoterapia, e menos ainda na pastoral; que seja urgente preencher esta lacuna e iniciar todos os que se ocupam das questões psíquicas, nas ideias diretrizes e por fim, se for o caso, na aplicação prática dessa técnica da sexualidade.
"Dizemos isso, por que estas asserções são muito frequentemente apresentadas com uma segurança apodítica. Seria melhor conceder, no campo da vida instintiva, maior atenção às curas indiretas e à ação do psiquismo consciente sobre o conjunto da atividade imaginativa e afetiva. Esta técnica evita os referidos desvios; tende a esclarecer, curar, dirigir; influi ainda sobre a dinâmica da sexualidade, sobre a qual se insiste tanto, e que dizem encontrar-se ou realmente se encontra no inconsciente ou no subconsciente.
Estas palavras da alocução pontifícia apresentam uma norma autorizada na questão, hoje tanto discutida, da psicanálise. O Santo Padre não trata de psicanálise em geral, nem das diversas formas e técnicas propostas e experimentadas, no curso dos últimos decênios, por competentes cientistas, mesmo católicos, mas ocupa-se do "método pansexual de uma certa escola de psicanálise"; tampouco trata da natureza e do valor terapêutico deste método, mas da transgressão do limite ético cometida por ele. Igualmente o Pontífice não proíbe ou condena a cura psicoterapêutica das neuroses sexuais, mas desaprova a maneira amoral de agir na aplicação prática do método de cura.
Fernando Furquim de Almeida
Precedida de intensa luta de panfletos e de polêmicas entre jornais, a lei Falloux entrou em discussão na Câmara dos Deputados, e ali, durante dois meses, sofreu cerrado ataque dos universitários e dos católicos ultramontanos. Estes mostravam que a aceitação do projeto representaria uma completa capitulação para quantos tinham sido membros do antigo Partido Católico; e aqueles profligavam o governo por querer recuar da posição que ocupavam no ensino desde os tempos de Napoleão.
Os adversários da lei dentro da Câmara eram poucos, mas o apoio que recebiam de fora fazia com que não esmorecessem no combate, exigindo de Thiers, Montalembert e toda a maioria um trabalho incessante para impedir uma rejeição, obrigando-os a cair em contradições e a confessar a fraqueza de sua opinião.
Assim é que Montalembert foi levado a anunciar abertamente, em um discurso, que resolvera embainhar sua espada de campeão do Catolicismo, e que já não gozava da confiança dos católicos:
"Senhores, fiz a guerra e a amei. Eu a fiz durante mais tempo, e talvez melhor, do que a maior parte dos que hoje me censuram por tê-la cessado.
"Mas eu não acreditava que a guerra fosse a primeira necessidade do país. Ao contrário, acho que em face de um perigo comum, das circunstâncias tão graves e ameaçadoras em que estamos, e — por que não o dizer — dadas as disposições que encontramos nos homens que estávamos habituados a considerar como adversários, o primeiro de nossos deveres era de corresponder a essas novas disposições. É a esse louvável pensamento que consagro, há um ano, toda a atividade e devotamento de minha alma.
"Sim, encontramos adversários para quem as lições dos acontecimentos não foram estéreis, como também não o foram para nós, porque todos tinham o que aprender e todos tinham o que aproveitar. Encontramos homens, adversários da véspera, que nos estenderam a mão logo após os acontecimentos que todos nós considerávamos uma catástrofe imprevista. Devíamos repelir essa mão? Não, e se eu o tivesse feito, seria o ato mais reprovável de minha vida.
"É verdade que esses homens não acreditavam em tudo aquilo em que acreditávamos; é fato que eles não querem tudo o que queremos. Porém acreditam hoje no perigo que ontem negavam, e que nós prevíamos; desejam como nós um remédio para esse perigo; querem a salvação da sociedade, e nos convidaram para trabalhar por ela com eles. Aceitamos o convite, com a justa prontidão de um coração devotado à pátria e a sociedade".
Mais adiante, acrescentava:
"Depois do naufrágio, encontramo-nos numa frágil tábua que apenas nos separa do abismo. Deveríamos recomeçar as lutas da véspera, sem uma imperiosa necessidade? Deveríamos repelir a mão que éramos levados a oferecer um ao outro? Deveríamos ressuscitar todas as recriminações e ressentimentos, mesmo os mais legítimos? Não, eu não o creio, não o quis, não o fiz e não me arrependo.
"Eis por que ouso dizer que a lei que vos apresentamos, apesar de suas imperfeições é uma obra sagrada. Sagrada pelo espírito que a ditou, que a inspirou: espírito de união, de paz e de conciliação, ao mesmo tempo que de patriotismo. Há um ano que nela trabalhamos, nós e nossos antigos adversários. Entramos nesse labor com a lembrança de nossas lutas antigas, mas só a conservamos para nos encorajar a suportar o tédio, a vencer as dificuldades, as contradições e as amarguras inseparáveis de uma obra dessa natureza. Não sacrificamos para isso nenhuma afeição, nenhuma contradição; sacrificamos apenas o espírito de contenda, o espírito de amargura e de exagero, que infelizmente são inseparáveis das lutas, mesmo as mais legítimas, quando elas são prolongadas. Por mim, dei à causa da liberdade da Igreja minha vida, minha coragem, vinte anos de perseverança, de devotamento. Eu lhe ofereço ainda, como última homenagem, a ingratidão, a impopularidade e a injustiça que essa lei fez colher no meu próprio partido".
Apesar dos esforços da minoria, a lei Falloux foi aprovada por 399 votos contra 237. Mas essa pequena diferença, e o fato de Montalembert reconhecer sua impopularidade entre os católicos, por si sós dão uma ideia nítida do vigor dessa minoria.
Como de outras vezes, a intervenção de Thiers foi decisiva para a vitória da facção do Conde de Falloux. Antes de entrar o projeto em discussão, Thiers declarara que, quando a Câmara debatesse os dispositivos referentes aos jesuítas, se esconderia debaixo da mesa. Qual não foi a surpresa de todos ao verem-no assomar à tribuna para defender exatamente a Ordem que ele mais combatera. A esquerda e os universitários não perderam a oportunidade de mostrar a contradição de sua atitude, acusando-o de se ter bandeado para o lado da Companhia, ao que ele respondeu sorrindo, debaixo de uma hilaridade geral prolongada: "Sim, confesso: eu sou um jesuíta. De acordo".
Assim, graças sobretudo ao auxílio do mais acirrado dos adversários do Partido Católico, foi aprovada a lei Falloux.
“Para se atingir a santidade, três coisas são necessárias: rezar, rezar e rezar" — esta foi a divisa do heróico P. Maximiliano Kolbe, franciscano polonês martirizado pelos nazistas em 1940. Defensor intransigente da Igreja Católica, organizador da Milícia de Maria Imaculada, fundador e diretor do mais popular jornal de seu país, este admirável Sacerdote era sobretudo uma alma de recolhimento e vida interior. Exemplo vivo de que a "alma de todo apostolado" é a oração contínua e intensa, o P. Kolbe, em meio à intensa atividade que desenvolvia, elevava constantemente sua alma para o céu, numa união abrasada com seu Salvador.
Alma interior, e sobretudo alma marial: devoção à Virgem Imaculada, que desde os primeiros anos o guiou no caminho da perfeição, era a de um filho totalmente dedicado, de um trovador sequioso de cantar Suas glórias. Em todo seu apostolado, na sua vida interior, até sua morte heróica, Ela foi sua inspiradora, guia e modelo.
Filho da católica Polônia, de pais pobres mas profundamente fieis à Igreja, teve o P. Kolbe em criança uma visão que decidiu de sua vida.
"Querido me perguntastes, mamãe - escreveria ele mais tarde à sua mãe terrena — o que eu seria quando crescesse, fiquei perturbado e fui perguntá-lo à Santíssima Virgem. Ela me apareceu então, trazendo na mão duas coroas, uma branca e outra vermelha. Olhou-me com amor, e perguntou-me qual das duas eu preferiria: a branca significava que eu me consagraria a Deus, a vermelha que morreria mártir. Respondi-lhe: escolho as duas! Sorrindo, ela desapareceu".
A 10 de setembro de 1910, aos pés do altar da Virgem Imaculada, recebia ele o hábito franciscano, aos dezesseis anos de idade. Era a primeira coroa que a Mãe Celeste vinha lhe trazer...
Ordenado em 1917, o jovem levita logo se dedicou à realização do seu sonho de muitos anos: a criação de uma Milícia de Maria Imaculada, que se empenhasse no combate à Maçonaria e à incredulidade. Graças à proteção de sua Padroeira, a Milícia em pouco tempo se espalhou por toda a Polônia, e com o correr dos anos atravessou as fronteiras da Europa, atingiu a América, a Ásia, a África e até a Oceania. Fiel por toda parte às diretivas do fundador, foi sobretudo em seu país natal que sua enérgica ação se fez sentir, alcançando grandes vitórias sob a égide daquela que venceu todas as potências infernais.
Mas a grande obra do P. Kolbe foi o "Pequeno Jornal", que chegou a atingir a tiragem de um milhão de exemplares. Muito bem redigido e com excelente apresentação gráfica, esse periódico colocou-se na primeira linha da imprensa polonesa. Dispunha de edifício próprio, com máquinas ultra-modernas; os operários eram todos católicos fervorosos, inteiramente devotados à causa que o jornal representava.
O sucessivo aparecimento de uma revista, do boletim "Miles Immaculatae" e de varias outras publicações, despertou a inveja dos jornais poloneses leigos. Vendo-os manifestar seu despeito, o P. Kolbe respondia sorrindo: "porque vós, jornalistas, não fazem como nós?" Com isso aludia à verdadeira causa do sucesso de seu empreendimento: o amor à SSma. Virgem que a todos animava redatores e operários. "Ainda que nós dispuséssemos das mais perfeitas máquinas, dizia o P. Maximiliano, e de todos os aperfeiçoamentos da ciência, não estaria nisto o verdadeiro progresso. Se nós devêssemos suspender nossa obra, dispersar-nos como folhas levadas pelo vento, e ver todo o fruto de nosso esforço por terra, se apesar disto a resolução de servir à nossa Rainha continuasse a se afirmar em nós, então poderíamos nos considerar em pleno progresso!"
Suas predições em breve se cumpriram. Em 1939 o tufão da guerra varreu o território polonês. Rapidamente os nazistas ocuparam Niepokalanow, onde se encontrava o convento do P. Kolbe. Ele foi imediatamente feito prisioneiro, e os seus colaboradores dispersados "como folhas levadas pelo vento".
No Campo de Concentração, um chefe da SS, arrancando-lhe brutalmente o terço, pergunta-lhe se tem fé em Jesus Cristo.
"— Sim, eu creio".
Um murro arranca sangue de sua boca. Nova pergunta.
"— Sim, eu creio", responde com aquela característica dignidade que lhe dá um ar majestoso.
Novo murro, violento. "Ousa dizer mais uma vez que crês", desafia o guarda. E ele com firmeza:
"— Sim, eu creio".
A afirmação segura e inflexível deixa o carrasco fora de si. Com ferocidade atira-se contra o Religioso, aos socos e pontapés, até vê-lo desacordado.
Os companheiros de prisão, horrorizados, manifestam sua indignação. Voltando a si, o P. Kolbe esforça-se por acalmá-los: "Meus amigos, alegrai-vos comigo! É pelas almas, pela Imaculada!"
Começava a se aproximar a coroa vermelha, que ele esperava desde sua infanda. . .
Longos meses de martírio se passam. Um dia, um prisioneiro, alucinado com os sofrimentos, foge do campo. Não conseguindo recapturá-lo, o comandante anuncia que dez morrerão como represália, na célula da fome.
Uma das vítimas designadas é um pai de numerosa família, que irrompe em prantos ao saber de sua sorte. Mas de súbito outro prisioneiro avança, pedindo para morrer em seu lugar: é o P. Kolbe, que se oferece a Deus não só para salvar aquele infeliz como para assistir espiritualmente até a morte os outros condenados. Faz-se silencio. "Está bem, vá", diz urna voz habituada a insultar e a perseguir.
As "bunkers" da fome! Células úmidas, sem luz, sem ar. Quando os dez condenados lá chegam, vinte outros, nos antros visinhos, uivam, gritam, choram, desesperadamente famintos. Os novos prisioneiros entram. Com o P. Kolbe não há mais gritos de desespero: um Sacerdote de Nosso Senhor está com eles, compartilhando seus sofrimentos, levando-lhes o conforto de Deus, induzindo-os a perdoar aos seus carrascos.
E cantando eles tranquilamente a morte. Os guardas, estupefatos, dizem que nunca viram nada de semelhante. Quando entram para buscar o Padre, que dos dez é o único que ainda vive, ele está prostrado por terra, os braços em cruz, rezando.
Mais tarde voltam: ele está apoiado contra a parede, os olhos abertos, o rosto claro e radioso, como em êxtase... O guarda Borgowiek mais tarde declararia: "nunca pude esquecer a impressão que tive. Seu corpo estava luminoso, parecia irradiar claridade!" Aplicaram-lhe então uma injeção letal e seu cadáver foi consumido em um forno crematório.
O P. Kolbe faleceu na véspera da Assunção. Sua Mãe Celeste, que ele tanto havia amado e servido, viera buscá-lo quando a Igreja se preparava para celebrar uma de suas mais queridas festas.
Este heróico Sacerdote realizou em nossos dias, na luta contra as potências infernais, no apostolado ardente pelo seu povo, no sacrifício de sua vida pela causa da Rainha dos céus, o ideal dos apóstolos de Nossa Senhora, descrito por S. Luiz Maria Grignion de Montfort: "eles serão pequenos e pobres aos olhos do mundo. . . mas, em troca, ricos em graças de Deus... serão grandes e notáveis em santidade diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo ativo, e tão fortemente amparados pelo poder divino que, com a humildade de seu calcanhar e em união com Maria, esmagarão a cabeça do demônio e promoverão o triunfo de Jesus Cristo".
J. de Azeredo Santos
POR ocasião das comemorações do quinto centenário da Ordem Terceira Carmelitana, realizadas no Rio de Janeiro em fins do mês de outubro, fomos convidados a discorrer sobre a "Espiritualidade Carmelitana como elemento básico na vida do terceiro carmelita". Não deixa o tema de apresentar aspectos de interesse geral, pelo que o oferecemos aos nossos leitores.
Qual será esse espírito carmelitano a que alude reiteradamente a Regra? Vamos achá-lo, em suas linhas mestras, segundo suas fontes primitivas, na "Instituição" do Patriarca Aymerico: "O fim desta vida devemos saber que é duplo; um o adquirimos por nosso esforço e prática virtuosa, ajudando-nos a Divina Graça, a saber: oferecer a Deus o coração santo e puro de toda mancha de pecado atual... O outro fim desta vida nos é dado por puro dom de Deus, a saber: não somente depois da morte, mas já nesta vida mortal, gozar de algum modo no coração e experimentar em nossa alma a virtude da divina presença e da doçura da gloria celeste".
"Viva o Senhor Deus de Israel em cuja presença estou", exclamava Elias. Eis aqui o fim supremo da vida carmelitana na terra: a vida unitiva e a contemplação infusa. E o meio indispensável para consegui-lo é a absoluta renuncia de tudo. Daí insistir a "Instituição" tanto no desprendimento, conforme os seguintes graus: 1) desprendimento dos bens temporais e naturais; 2) renúncia da própria vontade e refrear das paixões; 3) pureza e soledade do coração e do corpo; 4) afastamento de todo pecado nela aquisição da perfeita caridade.
A necessidade do desapego provem da própria natureza da alma humana e das demais criaturas: "Toda natureza, ainda que em sua ordem seja pura, sem embargo, comparada com outra superior, se converte em torpe e impura e cai de sua dignidade, e as coisas nobres se envilecem quando se misturam com uma natureza inferior, mesmo que a natureza inferior em sua ordem não esteja manchada; o ouro se se mistura com a prata, mancha-se. Pois bem: segundo o atesta a Sagrada Escritura: Eu disse ao homem de uma natureza tão excelente, que o constituí príncipe de toda a terra, pelo que, ainda que as criaturas em sua ordem saiam puras, não obstante, os maus corações degeneram de sua dignidade e se mancham na fruição das mesmas" ("Instituição", cap. VI).
Não basta abstermo-nos do ilícito, mas é mister que, privando-nos daquilo que sendo permitido retarda e amortece o fervor da caridade, nos elevemos às alturas nas azas de um puríssimo amor de Deus.
Eis as linhas gerais da espiritualidade carmelitana, que provêm de suas remotas origens e que São João da Cruz retomaria para com elas traçar a subida pelas difíceis escarpas do Monte Carmelo. E eis os traços característicos que a Ordem Carmelitana manteve quando, depois de transportada do Oriente para o Ocidente, veio a se transformar de Ordem contemplativa em Ordem mendicante. Conservando seu ideal contemplativo, acomodou-se às novas circunstâncias em que passou a viver. Deste modo nasceu no Carmelo um novo gênero de vida religiosa, a que se pode dar o nome de vida mista. Não se trata, entretanto, de dividir em partes iguais a vida do carmelita entre ação e contemplação. "A contemplação no Carmelo permanece sempre o fundamento, em um sentido mais particular que nas demais Ordens". O objeto primário da vida carmelita se resume na oração e na contemplação. O apostolado carmelita vem a ser o transbordamento dessa vida interior, tal como os antigos eremitas, que permaneciam retirados do mundo em contato íntimo com Deus, desciam de vez em quando do ermo para falar aos homens das coisas do Céu.
Criadas as Ordens Terceiras na Idade Media como vastos movimentos populares de reforma e aperfeiçoamento, sob o nome genérico de Ordens de Penitencia, cada uma delas procura se amoldar ao gênero de vida das respectivas Ordens Primeiras. Eis porque, ainda que no século, de acordo com as condições peculiares de nosso estado, ao ingressarmos na Ordem Terceira do Carmo procuramos conformar nossa vida a essa mesma espiritualidade carmelitana. A Ordem Terceira Carmelitana canonicamente organizada pelo Beato João Soreth, desde o inicio se orientou por uma das Regras mais austeras entre aquelas das chamadas Ordens Terceiras da Penitencia. O espírito da Regra albertina ali foi mantido intacto: vida interior, oração assídua, mortificações.
Na casa de Deus há muitas moradas. Daí também as diferentes escolas de espiritualidade. "Compreendo, diz Santa Tereza do Menino Jesus, que todas as almas não podem se assemelhar: é necessário que haja diferentes famílias, afim de honrar especialmente cada uma das perfeições do bom Deus". E Santa Tereza de Ávila já dizia, em seu tempo, ser coisa que importa entender que Deus não leva a todos pelo mesmo caminho. Nem todas as almas se adaptam à contemplação, sendo preciso grande humildade para trilhar o caminho pelo qual nos quer Deus levar. A própria Santa Tereza segundo seu testemunho pessoal esteve mais de catorze anos sem poder fazer meditação senão por meio de leitura. Haverá outras, diz ela, que mesmo com a leitura não poderão meditar, senão rezar vocalmente. "Santa era santa Marta, diz ela, ainda que não conste ter sido contemplativa". Marta não se dedicava à vida contemplativa e se santificou. Mas Maria ficou com a melhor parte e é esta parte sobretudo que faz falta ao conturbado mundo de hoje, e parte que de medo predominante pertence ao espírito do Carmelo. Eis como Santo Agostinho interpreta as palavras do Divino Mestre às duas irmãs: a parte de Maria é a melhor, a mais perfeita e meritória, por uma tríplice razão: 1) por seu objeto, pois por ela nos dedicamos a Deus, nosso último fim; 2) por sua eficácia, pois a oração é a alma de todo apostolado, sem a qual resulta estéril e pernicioso, assim como o amor é o que dá mérito à obra; 3) a melhor, por fim, por sua duração, pois permanece eternamente, sendo como uma incoação da vida celestial.
O abraçar uma espiritualidade, portanto, em vez de nos colocar dentro de uma fôrma, como fazem supor os espíritos superficiais e eivados da peste do liberalismo, e de sufocar nossa personalidade dentro de um figurino estereotipado, é praticar um ato livre, pondo-nos voluntariamente sob uma dependencia desejada. Entretanto, nada de mais contrário aos pruridos de emancipação do mundo contemporâneo, ao mito da liberdade moderna, prisão de preconceitos que traz a pobre humanidade escrava de suas paixões e de seus caprichos. Não foi sem razão que a Ordem do Carmo se viu tão duramente atingida pela revolução francesa, com a abolição dos votos e do estado religioso em nome da liberdade. Tal conspiração do naturalismo haveria de culminar com a supressão completa de todas as Ordens religiosas no território francês. Qual enorme câncer, esse mesmo espírito funesto se espraiaria pelo resto da Cristandade. Fora da terra de São Luiz os chamados princípios de 89 causaram os mesmos efeitos deletérios. Na Itália, na Bélgica, na Holanda, na Alemanha, em Portugal e até no Brasil tivemos, como repercussão desse espírito revolucionário e naturalista a decadência dos claustros e da ação benfazeja que irradiavam esses focos de espiritualidade.
Se quisermos retomar a estrada da salvação, teremos que romper as cadeias desse espírito do mundo, enveredando de novo por esses caminhos de perfeição que nos são indicados pela Santa Igreja. Para isso inicialmente teremos que praticar um ato de humildade: reconhecer que aquilo que nos falta, nós o encontramos na experiência de outra pessoa humana. É o caminho trilhado pelos próprios Santos, reconhecer o que nos falta, reconhecer que outros o possuem, tomar a decisão livre, espontânea, de seguir, não nosso próprio juízo, mas o roteiro dessas almas experimentadas nos caminhos do Senhor.
Como em todos os grandes acontecimentos religiosos e sociais, ressalta a influência de algumas personalidades fortes, dessas criaturas providenciais que Deus suscita para reconduzir os homens ao seu verdadeiro fim, ao único necessário dos Evangelhos. E na voragem dos séculos não é raro vermos a historia se repetir. Através das conjunturas variadas, da mudança dos cenários e dos atores, a humanidade continua sempre a mesma e sempre o mesmo é o pai da mentira.
Quais as lições que tiramos da vida de nosso glorioso Patriarca Santo Elias? Viveu ele em uma quadra triste para o povo escolhido, durante o infeliz reinado dos déspotas totalitários Acab e Jesabel. Toda a sua vida foi um protesto contra o sincretismo religioso dominante, foi um clamar em altos brados pela distinção clara e inconfundível entre Javeh e Baal, entre o espírito de Deus e o espírito do demônio. "Até quando, diz ele, continuareis a claudicar para os dois lados? Se Javeh é Deus, ide a Ele; se é Baal, ide a ele!" (3 Reis 18,21). Único sobrevivente dos Profetas de Israel, como resultado de sua luta contra o pluralismo religioso de seu tempo, em que o poder político se achava de mãos dadas aos falsos profetas, Elias perseguido, Elias que se refugia no ermo para expiar os crimes e a pusilanimidade de seus irmãos, é um exemplo vivo do que deve ser a atuação do católico no mundo de hoje. Cercado por uma generalizada apostasia, sua vida foi um constante reafirmar dos direitos de Deus sobre as criaturas. "Viva Deus em cuja Presença estou". Como acentua São Tiago, toda a força de Elias se achava em sua oração perseverante. Eis como consegue ai graças do Altíssimo, eis como vem a exterminar os inimigos de Deus e dos homens.
Continuaremos.