A VERDADE SOBRE A LENDA REVOLUCIONÁRIA DAS “LETTRES DE CACHET”

Carlos Alberto de Sá Moreira

Em nossos dias, quando se fala a alguém das famosas ordens de prisão da antiga monarquia francesa, as lettres de cachet, provoca-se horror e indignação. Elas são tidas como instrumentos de opressão de que usavam sem limites monarcas tão sem escrúpulos que chegavam a fornecê-las, em branco, a seus favoritos, para que estes pudessem, ao sabor de seus caprichos, encarcerar em úmidas masmorras os infelizes que incorressem em seu desagrado, sem que lhes fosse possível qualquer defesa.

Mas a verdade é bem outra. Durante séculos o povo francês, de alto a baixo da escala social, serviu-se das lettres de cachet para preservar a moralidade, o respeito à autoridade paterna, a honra das famílias e a justa desigualdade social. Foram os revolucionários de 89, encarniçados contra estes valores, que lutaram por suprimir a tradicional instituição que os defendia — e que pintaram o quadro melodramático que esboçamos. O homem moderno, formado nos princípios da revolução francesa, detesta igualmente as lettres de cachet, em que vê a imagem de uma ordem de coisas odiada. Daí serem elas a mais atacada das instituições do chamado Ancien Régime.

O verdadeiro uso a que se destinavam as lettres de cachet

As lettres de cachet, ou ordens do Rei, eram a forma normal pela qual o soberano manifestava sua vontade a respeito de qualquer assunto. Usavam-se pois para toda a sorte de determinações, e não somente para ordenar prisão ou exílio. Entretanto as desta última classe é que ficaram conhecidas como lettres de cachet propriamente ditas. A elas nos restringiremos.

Uma primeira falsidade é dizer que as ordens do Rei eram empregadas somente para reprimir crimes políticos. Se algum panfletário começasse a publicar libelos contra o Rei, ou contra a Religião, ou contra as autoridades, era detido e preso na Bastilha: tal é, na opinião geral, o caso típico de uma lettre de cachet. Havia destes casos, sem dúvida, mas eram muito raros, podendo-se afirmar que entre mil lettres de cachet emanadas da administração real, somente três ou quatro se referiam a crimes políticos.

Sobre que versavam então as 996 ou 997 restantes? Habitualmente sobre questões policiais ou familiares.

As lettres de cachet policiais correspondiam ao mandado de prisão preventiva de nossos dias. Visavam evitar que o criminoso fugisse, enquanto o complicado processo da justiça ordinária se movia para receber a denúncia, permitir a abertura do inquérito, arrolar testemunhas, ouvi-las, formar o sumário de culpa, e só então expedir o mandado de prisão judiciário: até esse momento o acusado permanecia detido por força de uma lettre de cachet.

As mais típicas, mais frequentes e mais interessantes das lettres de cachet são as concernentes a questões familiares. Por terem sido as mais caluniadas, merecem atenção especial.

Como se processava a sua expedição

Uma segunda inverdade é dizer que a expedição de uma ordem do Rei era inteiramente desprovida de cautelas e formalidades dependendo apenas de um régio "tel est Notre bon plaisir".

Um exemplo tirado ao acaso dentre os inúmeros dossiers do arquivo da Bastilha, nos mostra com pormenores muito vivos como se procedia à expedição das ordens do Rei.

Por volta de 1750, Berryer, chefe da polícia de Paris, recebeu uma queixa da esposa de um vendedor de perfumes, M. François 0llivier. Dizia ela que seu marido, desde que conhecera a jovem costureira Marie Bourgeois, transformara seu lar em inferno: injuriava-a, abandonava a loja durante horas a fio, e as economias do casal eram desperdiçadas em presentes para a rapariga, à qual M. Ollivier nada podia recusar. Em vista do que, pedia ao chefe de polícia que expedisse uma lettre de cachet contra a costureira, recolhendo-a a Salpetrière, uma das antigas prisões de Paris. Ao invés disto, M. Berryer enviou um de seus comissários, M. Grimperel, para sondar o caso e repreender a leviana jovem, o que ele fez com bastante energia, proibindo-a de, para o futuro, se avistar com M. Ollivier.

De nada adiantou a repreensão. Mlle. Bourgeois não se emendou. Nova queixa de Mme. Ollivier, — e agora assinada também pelo principal locatário da casa onde morava a costureira, — suplicando uma lettre de cachet. Nova investigação do comissário Grimperel, desta vez acompanhado pelo inspetor Dumont, chegando ambos a idêntica conclusão: "a dita Bourgeois não cessa de se avistar com M. Ollivier, apesar das proibições que lhe foram feitas".

Entretanto, Berryer, que hesitava em expedir a lettre de cachet, tentou ainda uma vez convencer os culpados por meios suaves. Pediu ao Vigário da paróquia onde moravam os dois que os chamasse e os persuadisse a voltar ao bom caminho. A esperta costureira, porém, havia mudado de residência, estabelecendo-se em outra paróquia, onde novas admoestações do comissário Grimperel tiveram o mesmo insucesso.

Berryer esperou por nova queixa. Dois meses depois, súplica desesperada: Mme. Ollivier dizia que seu marido havia caído nos piores excessos, e que estava prestes a abandoná-la. "Por piedade, senhor, fazei prender Marie Bourgeois!" Mas Berryer não se decidiu senão após um segundo inquérito, feito por outros oficiais da polícia, e depois de uma quarta queixa: "Meu marido vai partir de Paris amanhã". Marie Bourgeois foi presa na Salpetrière por uma lettre de cachet assinada pelo Rei e pelo conde d'Argenson, então ministro de Estado.

Enquanto a jovem tinha calma bastante para refletir sobre seu comportamento, sua família intercedia por ela junto a M. Berryer. Após sete meses de prisão, uma irmã e uma tia assinaram o compromisso de vigiar sua conduta, e François Ollivier o de romper qualquer relação com ela. As portas da Salpetrière abriram-se, e na polícia nunca mais se ouviu falar nem de Mlle. Bourgeois, nem do casal Ollivier.

Os arquivos da Bastilha contêm abundantes dossiers de casos que, como este, revelam que as lettres de cachet eram cercadas de formalidades processuais bastante complexas. Uma certa Catherine Randon foi libertada logo que se verificou ter sido presa, não por um comissário, como de direito, mas por um simples subalterno. Uma Mlle. Leclerc, por ter sido presa sob acusação de um só particular, sem que contra ela houvesse queixa dos vizinhos ou do Vigário, foi igualmente libertada depois de alguns dias. Séculos de tradição haviam tornado regulares e fixos todos esses requisitos. A tal ponto que a simples assinatura do Rei não bastava: era necessária também a de um ministro responsável para a lettre de cachet ter eficácia.

A razão do segredo que as cercava

A mais grave acusação que se faz às lettres de cachet refere-se ao sigilo absoluto que as envolvia. Todo o processo e todas as formalidades para a expedição e execução de uma ordem do Rei eram secretos. Os próprios papeis relativos ao assunto eram sepultados na Bastilha, de onde nunca mais eram retirados.

Mas este segredo era exigido justamente por aquilo que constituía a principal razão de ser das lettres de cachet: a preservação da honra das famílias. Nas circulares dos ministros, nas instruções dos chefes de polícia, na correspondência dos intendentes e dos subdelegados, nas respostas de Luis XVI ao Parlamento, e sobretudo nos pedidos feitos pelos particulares, esta idéia estava sempre presente. "As lettres de cachet não são senão favores que o Rei concede às famílias para livrá-las da desonra em que temem recair" (Baillivy). "Há uma multidão de casos em que o Rei, por bondade paternal, se dispõe a corrigir para impedir a justiça de castigar" (Vergences). "A família tem interesse em subtrair seus parentes a uma condenação infamante; quando o Rei, por bondade, ordena sua detenção, é um favor" (Malesherbes).

As ordens do Rei visavam proteger aqueles a quem atingiam, e suas famílias, da desonra a que os exporia uma condenação da justiça comum, sempre proferida com aparato e repercussão. E no defender a honra da família os plebeus eram tão severos como os nobres. Quantos miseráveis, de péssimos costumes, não foram salvos das galeras pelas lettres de cachet, e graças a elas puderam reabilitar-se! Por isto era necessário que as razões da prisão, quando afetavam a honra do nome, permanecessem secretas, alheias ao conhecimento público e à curiosidade insaciável dos maledicentes.

As lettres de cachet reforçavam a autoridade paterna.

As lettres de cachet relativas a questões familiares eram geralmente solicitadas pelo pai, rei da família, que invocava o auxílio do Rei, pai das famílias do reino, a fim de apoiar sua própria autoridade dentro do lar. E para isto não era necessário que o filho houvesse cometido algum crime: bastava apenas um receio sério. Lê-se no dossier de Charles de L'Espinay, por exemplo, que seu pai recorreu à autoridade do Rei "para se precaver das más ações que o jovem, poderá cometer e que o poderão desonrar". O pedido do pai raramente era rejeitado, tal era no Ancien Régime o respeito à autoridade paterna, reflexo na família da autoridade de Deus.

Se por acaso o ministro hesitava em ir em socorro de um pai justamente encolerizado, expunha-se à dura queixa que um deles fez a Malesherbes: "Quando a autoridade tutelar e soberana se recusa a apoiar a autoridade doméstica, ela sabe, sem dúvida, de que recursos se utilizar para velar sobre cada indivíduo. Eu me resigno. Mas ela não poderá recusar um dia à minha velhice, que lhe virá pedir contas da prostituição de um nome transmitido sem mácula, e que eu me esforcei por conservar assim, o seu socorro para livrá-la da vergonha e da infâmia".

Uma vez expedida a ordem, o pai que a solicitara tinha o poder de sustar-lhe a execução. Jacques Avisse, marceneiro, escrevia ao chefe de polícia Berruer: "Obtive, há alguns meses uma lettre de cachet contra minha filha, mas por ternura paternal impedi que a ordem fosse executada". Igualmente ao pai cabia escolher a prisão à qual o filho devesse ser recolhido. E isto feito, continuava com plena autoridade sobre o prisioneiro, estabelecendo seu regime de vida, permitindo-lhe gozar de concessões, enviando-lhe dinheiro, transferindo-o de uma prisão para outra, e podendo a qualquer hora restituir-lhe a liberdade.

O burguês M. Pinon, vendo seu genro dilapidar o dote que dera à filha, pediu contra ele uma lettre de cachet.

O jovem, que por sinal era nobre, recolheu-se espontaneamente à prisão, levando consigo um criado. E lá dentro recomeçou a contrair dívidas com os fornecedores, e até com soldados. M. Pinon a princípio enviou-lhe uma pensão de 500 libras; mas vendo que as despesas cresciam cada vez mais, não teve dúvidas: alegando que aquela prisão "sempre cheia de oficiais e jovens atrizes" levava o prisioneiro a gastos contínuos, pediu que o transferissem para uma fortaleza, no qual foi logo atendido.

Na ausência do pai, a mãe podia assinar a requisição; e na falta de pai e mãe, os principais membros da família, irmãos, tios, primos, e mesmo simples amigos, reuniam suas assinaturas para obter uma ordem do Rei contra algum libertino que, por sua má conduta, ameaçava manchar um nome respeitado. Em 1751 Thomas Bouillette, carpinteiro, foi preso em virtude de uma lettre de cachet pedida por sua mãe viúva, que temia as conseqüências de sua vida entre devassos. Algumas semanas depois, a mãe enviou ao chefe de polícia nova súplica: seu filho desejava se empregar na Companhia das Índias, e ela, suspeitando ser isto apenas um pretexto para fugir, pedia que o levassem preso, com cadeias, entre os desertores. A viúva Bouillette acrescentava que se oferecia para pagar todas as despesas, "preferindo este sacrifício à dor de ser desonrada por um filho libertino". O pedido foi atendido.

Funck-Brentano, no seu livro "L'Ancien Régime", de onde tiramos estes exemplos, salienta não se tratar de exceções, mas sim de casos típicos, tomados ao azar entre grande número de fatos semelhantes.

As queixas dos pais que requeriam a prisão de seus filhos fundavam-se quase sempre em questões de costumes. Algumas vezes em despesas loucas: geralmente moços apaixonados que acabavam empenhando os bens paternos em usurários... E havia ainda casos únicos, como o de Brunek de Fraudenck, que fez prender um de seus filhos, que tinha vindo a Paris completar os estudos, a fim de colocá-lo em condições mais favoráveis para preparar os exames. O jovem foi instalado na Bastilha, num quarto amplo, com mesas e estantes, onde recebia diariamente a visita dos professores de desenho e geometria...

...E defendiam a harmonia conjugal

Eram muitos os maridos que pediam lettres de cachet contra suas mulheres; e em maior número as mulheres que requeriam lettres de cachet contra seus maridos. Era sempre a honra da família que estava em jogo. O escândalo de um processo público era tão grande naqueles tempos como hoje em dia. Toda uma horda de sensacionalistas se atirava avidamente sobre as questões conjugais pleiteadas na justiça comum, para divulgá-las, comentá-las, ridicularizá-las. A lettre de cachet aparecia como corretivo silencioso, justo e eficaz: era a autoridade paternal do Rei que intervinha para restabelecer a ordem familiar, sem ruído nem comoção.

Essa intervenção podia ser reclamada contra qualquer procedimento incorreto, ainda que não escandaloso. O chefe de polícia d'Argenson fala de uma jovem esposa "que diz abertamente que jamais amará seu marido, por ser cada qual livre de dispor de seu coração como lhe apraz. Não há impertinência que não diga contra ele, o qual está infeliz e desesperado... Espero que, depois de ter passado dois ou três meses no "Refuge", compreenderá que aquela morada é ainda mais triste do que a presença de um marido que não se ama. Ademais, este é de um temperamento tão pacífico, que não faz questão de ser amado, desde que sua esposa não lhe diga a todo o momento que o odeia mais do que ao diabo... Mas ela diz que se matará no dia em que puder prever que irá ter por seu marido a menor das ternuras".

Os motivos de prisão repetiam-se uniformemente: infidelidade, dissipação dos bens, maus tratos, e muitas vezes delitos de direito comum passíveis de penas a que se queria subtrair os culpados. Um marido fez prender sua esposa por causa de uma excessiva inclinação pelos bons vinhos. Quando a inconduta da mulher tinha por testemunha os filhos, sobretudo filhas moças, a requisição era sempre atendida.

Em 1752, Nicolas Cornille, burguês de Paris, voltou de uma longa viagem, e apresentou-se alegremente em casa à sua mulher. Esta o recebeu a pauladas, injuriando-o pela ousadia de se fazer passar por seu marido; e apesar da insistência do pobre homem impediu-o de reintegrar-se não somente na chefia da família, mas também — o que para Cornille era o mais grave — no gozo de sua fortuna. Uma ordem do Rei enviou a esposa recalcitrante à Salpetrière.

Um dos cônjuges estando na prisão, o outro conservava o poder de regular-lhe o regime de vida, transferi-lo para outro lugar, e libertá-lo quando julgasse conveniente. Mas havia casos de homens, presos por requisição de suas mulheres, que pediam para continuar na prisão quando estas os vinham libertar. Taschereau de Baudry, chefe de polícia, escrevia em 1722 ao ministro de Paris: "Michel Arny pede para permanecer no "Hôpital" o resto de seus dias, garantindo que lá será mais feliz do que na companhia de sua mulher". Seu pedido foi atendido...

A intervenção pessoal, e não burocrática, dos ministros

Causa-nos uma certa estranheza ver como os ministros da antiga monarquia francesa se ocupavam de ínfimas questões familiares, mesmo dos lares mais humildes, empenhando-se com tantos cuidados para poderem se pronunciar com conhecimento de causa, quando eram solicitados a expedir uma lettre de cachet. A. Joly, escreve: "O ministério mostra em tudo isto uma singular longanimidade. Não há pequeno assunto ou detalhe mesquinho que não mereça sua atenção. Não se pode imaginar a que pormenores pueris desce a curiosidade do ministro: queixas de pais irritados, casos de vizinhos, histórias de aldeias, etc... E não é necessário que a família ocupe posição de destaque na sociedade. As questões domésticas do mais modesto burguês estão seguras de chegar aos ouvidos do ministro e de encontrar sua complacência".

Claude Huisse era um taverneiro bêbado e brutal, que batia na mulher e esbanjava dinheiro em roupas suntuosas. Foi preso na Bicêtre. Dois meses depois a mulher, que solicitara a detenção, pediu que o pusessem em liberdade. O duque de la Vrillière, ministro da casa do Rei, escreveu ao chefe de polícia pedindo-lhe que investigasse sobre a oportunidade da medida, dados os péssimos antecedentes domésticos do homem. A resposta foi negativa. Mas a mulher continuava a pedir sua libertação. O ministro reuniu então em seu gabinete os parentes próximos do prisioneiro, e só depois de terem estes prometido vigiar sua conduta, respondendo por ela, é que consentiu em soltá-lo.

"É-se levado, observa Louis de Loménie, a ter uma certa indulgência para com os ministros do Ancien Régime, vendo a que ponto as inextricáveis questões particulares podiam, em detrimento dos assuntos de interesse público, ocupar seu tempo e sua atenção".

É que os ministros não ignoravam que, constitucionalmente, o Rei de França era o chefe, o pai das famílias do reino: "o próprio Direito Público considerava o Estado como uma grande família de que o Rei era o pai", escreveu André Lemaire. Os súditos tinham, por isso, o direito de exigir a intervenção paternal da autoridade soberana nos seus menores casos de família. Com que direito um pai se recusará a resolver um problema doméstico, ainda que esteja ocupado com seus negócios?

Panorama de Paris no século XVIII, vendo o Hotel de Ville, o Sena, as ilhas de São Luiz e da Cite. — por Jean Rigaud.

Os abusos eram mais raros e menos clamorosos do que se costuma dizer

Sem dúvida a instituição da lettres de cachet dava margem a abusos, tanto por causa do papel preponderante atribuído opinião pessoal dos homens encarregados de aplicá-las, como por causa do segredo que cercava sua expedição.

Em 1713 um oficial da guarda, Du Rosel de Glatigny, pediu uma ordem para fazer prender sua filha Marie du Rosel, de 19 anos, alegando que ela queria casar-se com um galante soldado. Por medida de prudência já a havia recolhido a um convento em Meaux, mas receava que o Don Juan a raptasse. Marie Du Rosal foi transferida para o Refuge. Pouco depois o ministro recebia uma carta da superiora do convento de Meaux, dando as melhores informações da moça, conhecida como piedosa e sensata, e que longe de se deixar cortejar por soldados, pensava até em fazer-se religiosa; era o pai que, ambicionando fruir da fortuna que ela herdara da mãe, havia inventado a intriga. D'Argenson, encarregado de verificar os fatos, interrogou longamente Du Rosel, que acabou por confessar a falsidade das denúncias. Acusado por sua vez de falso testemunho e tentativa de lançar a desonra sobre a filha, obteve graça por intercessão desta que ingressara definitivamente no convento.

Mas casos como este eram raros. Malesherbes, que nunca perdeu oportunidade para combater a instituição das lettres de cachet, e que somente consentiu em entrar no ministério de Luiz XVI quando lhe foi prometido que poderia trabalhar para suprimi-las, não descobriu em toda a cidade de Paris, numa investigação que levou a efeito em 1775, senão dois presos por lettre de cachet que merecessem ser postos em liberdade.

E é bom lembrar, quando se fala em abusos das ordens do Rei, que os filósofos do século XVIII, eloqüentes propagandistas de todas as liberdades, adversários violentos do despotismo, etc., etc., não hesitavam em pedir tais ordens contra seus inimigos. Funck Brentano afirma que o mais acirrado solicitador de ordens do Rei de todo o antigo regime foi Voltaire, que não perdia vaza para pedir a detenção dos que lhe desagradavam — indignando-se com a maior petulância quando a ordem lhe era recusada.

Fruto da Civilização Católica

As lettres de cachet surgiram no seio de uma civilização que ainda era cristã, inspiradas pelo desejo que tinham os homens do tempo de defender os valores essenciais da ordem social: a autoridade do Rei, "lugar-tenente de Deus sobre a terra" como dizia S. Luiz; o poder dos pais sobre os filhos, a indissolubilidade do matrimônio e a fidelidade conjugal, a justa desigualdade social baseada no nascimento, no saber ou no mérito, a moralidade dos costumes e das leis, a honra do nome, - em uma palavra, o cumprimento público dos mandamentos da lei de Deus. Houve certos abusos, é verdade, surgidos sobretudo em fins do século XVIII, mas causados antes pela decadência moral dos homens do que por defeito da instituição.

A Revolução Francesa se atirou enfurecida contra aqueles valores. Seu lema famoso, "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", se apresentava como a negação da obediência, da hierarquia, da fidelidade e da submissão. Os revolucionários não podiam tolerar a instituição secular que defendia a ordem social por eles odiada: em 1790 a Assembléia Constituinte suprimiu as lettres de cachet. E veio depois a campanha organizada, para tornar odiosa sua lembrança.

Mas os historiadores modernos, com suas pesquisas imparciais, as reabilitaram, restituindo-nos sua verdadeira fisionomia, que tem o encanto próprio das instituições da Civilização Cristã.


NOVA ET VETERA

DEMAGOGIA AGRÁRIA

J. de Azeredo Santos

A Revolução costuma agir através de palavras de ordem e de insinuações. Suas investidas, dentro do cáos religioso, político e social do mundo moderno, são metódicas, pertinazes, cautelosas, revestindo-se de maior ou menor radicalismo, conforme as circunstâncias. Uma de suas mais importantes frentes de combate, de uns tempos a esta parte, vem a ser a reforma agrária. Alguns exemplos dessa agitação: as agencias telegráficas lançam aos quatro ventos a notícia de um informe da ONU sobre o estado "feudal" da política agrária da América Latina e a necessidade da respectiva reforma; no Egito, o Conselho de Ministros revolucionário aprova o projeto de decreto-lei relativo à reforma agrária e à limitação da propriedade territorial; o Partido Trabalhista Britânico acha azado o momento para lançar uma campanha em favor da nacionalização da terra. Por detrás da cortina de ferro é mais franco o jogo para promover essa coletivização da vida do campo. Assim, na China comunista, começa-se por retalhar as propriedades rurais entre os camponeses. Mas a partilha das terras se faz de tal modo que os lotes não poderão assegurar a subsistência das famílias a que cabem, por laboriosas que sejam. Ao fim de quatro ou cinco meses, sob a ameaça da fome, os camponeses se vêm obrigados a solicitar, eles próprios, sua integração no sistema coletivista, realizando-se, desse modo, a proletarização da população agrícola: "o universo marxista não conhece outra base sólida que não a massa operaria" (ver depoimento: "Histoire contemporaine — Pourpre des Martyrs" em "La Pensée Catholique", no 25).

TAMBÉM NO BRASIL

No Brasil, com indulgência poderíamos dizer que é em virtude da lei de repercussão que também se começa às avessas, isto é, com a ameaça demagógica de desapropriação "por interesse social" e redistribuição das terras aos lavradores pobres. Ver, por exemplo, o teor das discussões no Seminário Latino-Americano de Campinas sobre problemas da terra e, sobretudo, o "informe brasileiro" ali apresentado. Ver também como opinou a Comissão federal de Política Agrária sobre a desapropriação de propriedades rurais pelo "custo histórico", e sobre o acesso à exploração agrícola mediante arrendamento compulsório, ao Governo, de certa porcentagem da área total dos imóveis rurais de mais de 300 hectares.

Felizmente para a humanidade, em meio a essa escuridão artificialmente provocada pelos luciferários das trevas, costumam aparecer radiosos fachos de luz a orientar nossos passos, como as sábias diretrizes que sob o título de "Reforma Agrária" vem de publicar o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, Bispo de Jacarezinho ("Digesto Econômico" de São Paulo, junho de 1953) (1). Tece Sua Excia. Revma. oportunos comentários em torno das resoluções que, por sua iniciativa, os Bispos da Província Eclesiástica do Paraná resolveram apresentar à Assembléia dos Cardeais e Arcebispos que em Belém do Pará estudará a posição da Igreja em face do problema da política agrária no Brasil.

Sobre o caráter revolucionário de certa reforma agrária que se quer impor ao Brasil, diz D. Geraldo de Proença Sigaud: "Deseja-se quebrar duas colunas mestras da nossa agricultura, a grande propriedade e o salariado rural, impondo a repartição das terras que apriorísticamente chamam de latifúndios, e a extinção dos institutos do colonato e do salariado".

No Brasil o problema principal não é o da falta de terra, nem, portanto, o da extinção da grande propriedade, que deve coexistir com a pequena e a média. Trata-se, sobretudo, de garantir a sobrevivência da pequena e da média propriedade.

O CÓDIGO NAPOLEÃO E A EXTINÇÃO DA PROPRIEDADE FAMILIAR

A unidade rural é a família e não o trabalhador do campo, individualmente considerado. Tudo deve ser feito, portanto, para instaurar a segurança e estabilidade das famílias na posse das terras. Não ignoramos o domínio despótico das forças econômicas e tecnológicas sobre o sistema familiar de atividade rural. A mecanização e a comercialização, quando invadem o setor agrícola com o fito exclusivo da eficiência e do lucro dela decorrente, fazem com que o campo deixe de proporcionar ambiente propício ao desenvolvimento normal da vida familiar, para caminhar no sentido da destruição das pequenas e médias propriedades e da consequente proletarização rural. Foi o que aconteceu, entre nós, com o advento das grandes usinas de cana de açúcar, que acarretou a morte dos engenhos e banguês. Além desse fator adverso, queremos nos referir a dois outros não menos importantes, cuja eliminação estaria ao alcance dos legisladores honestamente imbuídos do desejo de concorrer para a feliz solução do problema agrário.

Um é constituído nelas exações fiscais sobre a propriedade agrícola. A taxação é feita principalmente sobre as terras, sobre as instalações, sobre os rebanhos. Incide, portanto, não apenas sobre os produtos do trabalho agrícola, mas de preferência sobre seus instrumentos. E essas desalentadoras exações são proporcionalmente mais pesadas sobretudo para as pequenas e médias propriedades.

Outro são as leis de herança, como fator da extrema subdivisão ou pulverização do patrimônio familiar. É sobre este ponto nevrálgico que hoje queremos nos deter de modo particular. A ele com grande sabedoria se referem os Srs. Bispos da Província Eclesiástica do Paraná nos seguintes termos: "Os Bispos recomendam à Conferência solicitar ao Governo Federal leis que facilitem a criação do Bem de Família e a Liberdade de Testar, e introduzam a isenção dos impostos de transmissão causa mortis, para que se perpetuem as pequenas e médias propriedades, porque a atual legislação impede que as pequenas e médias propriedades subsistam".

As propriedades rurais originariamente eram muito grandes no Brasil, mas essa subdivisão geométrica ad infinitum ditada pela difusão nas Américas dos princípios revolucionários do Código Napoleão viria fatalmente provocar os malefícios de que hoje colhemos os amargos frutos.

COMO SE CRIA O PROLETARIADO RURAL

"A subdivisão da terra introduzida desta maneira, diz Lynn Smith, apenas reduz a quantidade de terra disponível para quem opera a fazenda; ela não modifica seus valores fundamentais e atitudes, nem inculca novos hábitos e habilidades, nem desenvolve novas motivações, nem, acima de tudo, torna socialmente aceitável para o proprietário e administrador da terra a necessidade de se entregar ao trabalho agrícola por suas próprias mãos. Assim, porque a herança age sobre a terra, e não sobre o homem e o sistema de relações sociais, a redução em tamanho da propriedade através da herança pode meramente resultar na decadência do velho sistema. Isto se dá porque as unidades não mais são economicamente ajustadas aos empreendimentos e porque da margem para intermináveis disputas, mal-entendidos e conflitos de interesses entre os herdeiros. O resultado liquido pode ser qualquer coisa, menos o desenvolvimento de um sistema sadio de fazendas de tamanho familiar" ("Brasil, People and Institutions", pag. 508).

0 autor de "The Sociology of Rural Life" cita a decadência da Fazenda Mota, na parte central de Minas, que, já em 1873, despertava os seguintes comentários de James W. "O estado de coisas produzido pelo abandono dessa fazenda é primariamente causado pela distribuição forçada da propriedade entre os membros de uma família numerosa, depois subdividida em menores quinhões entre os descendentes de cada herdeiro original. É o que se pode ver numa caminhada de um dia em qualquer direção em Minas Gerais, e essa curiosa anomalia resulta na produção de crescente miséria como séquito do crescimento da população de um jovem País". O mesmo fenômeno foi observado por Lynn Smith no litoral e na zona Norte de São Paulo, quando visitou o Brasil em 1939. Na Baía, segundo o depoimento de Oliveira Bulhões, a decadência agrária tem na lei da herança um dos seus mais poderosos responsáveis. À morte dos proprietários as fazendas vão sendo divididas entre os herdeiros e assim por diante sucessivamente, a ponto de hoje existirem muitas propriedades ou posses de terra que contam com mais de 500 co-herdeiros, com parcelas insignificantes cada um. O que representava uma fortuna e dava prosperidade a toda uma comunidade familiar, agora é um latifúndio improdutivo. Mesmo testemunho de Emilio Willems em "Assimilação e Populações Marginais do Brasil" quanto ao que acontece no sul do país.

E esse empobrecimento causado pela destruição das bases econômicas da propriedade agrícola devido ao seu excessivo fracionamento é um dos maiores responsáveis nela excessiva concentração da propriedade rural nas mãos das sociedades anônimas e dos grandes grupos financeiros, preparando o caminho para a socialização da terra e para a proletarização do homem do campo.

UM FALSO PROGRESSO CIVIL

Em resumo, o que falta para a fixação do homem à vida rural, impedindo o êxodo dos campos, são medidas de garantia da estabilidade e prosperidade dos que se entregam à faina agrícola: não somente garantia contra a especulação e encarecimento dos produtos através da burocracia estatal, dos famigerados "institutos", órgãos coordenadores e tabeladores de preços, mas também, e sobretudo, a proteção da propriedade agrícola contra a sua destruição ou esfacelamento no prazo de poucas gerações.

Como acentua Pio XII, "seria de fato anti-natural um apregoado progresso civil que — seja pela super abundância de exações, seja por excessiva ingerência imediata — tornasse vazia de sentido a propriedade privada, tolhendo praticamente à família e ao seu chefe a liberdade de alcançar o escopo por Deus traçado para o aperfeiçoamento da vida familiar" (Alocução de lo de junho de 1941 por ocasião do cinqüentenário da "Rerum Novarum").

(1)V. na pag. 3 da presente edição.