OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX
O "UNIVERS" INTERDITADO PELO ARCEBISPO DE PARIS
Fernando Furquim de Almeida
Com o desejo de esclarecer os católicos nas várias questões que então agitavam a França, Louis Veuillot concebeu o projeto de uma série de livros escritos por especialistas de cada assunto, nos quais a verdadeira doutrina da Igreja seria exposta com clareza e objetividade. Essa coleção foi anunciada sob a epígrafe geral de "Bibliotèque nouvelle": Religião, História, Ciência, Literatura - 100 volumes in-18, a Fr$1,50. Por uma sociedade de escritores, sob a direção do Sr. Louis Veuillot, redator-chefe do Univers - Editor Lechevalier.
Na sua boa fé, cheia de ilusões, Veuillot supunha que esse projeto teria o apoio de todos os católicos, devido ao caráter puramente doutrinário que pretendia imprimir à "Bibliotèque nouvelle", e também ao prestígio de D. Guéranger, D. Pitra, Donoso Cortés, Theophile Foisset e outros, que já tinham programado os livros que para ela escreveriam. Mas a coleção aparecia com um vício de origem aos olhos dos católicos liberais: era a direção de Veuillot. Por isso a reação que suscitou foi das mais violentas e despropositadas. Quando essa reação atingiu o auge com a publicação do livro de Donoso Cortés "Essai sur le catholicisme, le socialisme et le libéralisme", Veuillot resumiu-a do seguinte modo:
"O livro do Sr. Donoso Cortés faz parte de uma coleção de obras publicadas sob a direção do Sr. Veuillot. Logo, o Sr. Veuillot é tão triteísta, baianista, fatalista, etc., quanto o Sr. Donoso Cortés. E como o Sr. Veuillot é redator-chefe do "Univers", segue-se que o "Univers" é tão luterano, calvinista, lamennaisiano quanto o Sr. Veuillot"...
Acontece que Mons. Dupanloup não podia nem esquecer a sua derrota no caso da declaração nem perdoar a crítica severa que o "Univers" estava fazendo ao novo livro de Montalembert, "Les intérêts catholiques au XIXe. siècle", onde o antigo líder do catolicismo francês aderia completamente ao liberalismo católico. Encorajou então um de seus vigários gerais, o Pe. Gaduel, homem douto e ex-professor de teologia, a escrever contra a obra de Donoso Cortés na "Bibliothèque nouvelle". O Pe. Gaduel não se limitou a uma crítica objetiva sobre as possíveis impropriedades de linguagem que poderia cometer um homem como Donoso Cortés, que não era filósofo. Fez uma acusação cerrada contra as próprias idéias do famoso escritor e político espanhol, na qual transparecia com toda a evidência o espírito de partido do Bispo de Orléans. Veuillot respondeu mostrando a absoluta falta de razão do Pe. Gaduel. Isso foi o suficiente. Parece até que fora tudo combinado para a criação de um novo caso.
O Vigário Geral da Diocese de Orléans, numa longa queixa, pedia a intervenção de Mons. Sibour, Arcebispo de Paris, para que Veuillot fosse punido por "sátira, violência, injúria, cólera, mordacidade, calúnias e outros atentados, levados tão longe que parecem excitar a indignação geral". Note-se que entre os motivos invocados não há sequer alusão a erro doutrinário em que Veuillot tivesse incidido. Essa é uma das características de todas as campanhas movidas contra ele: nunca foi possível, nem a seus piores adversários, acusá-lo de qualquer desvio da ortodoxia.
O Arcebispo de Paris, por um mandamento, interditou a leitura do "Univers" nas comunidades religiosas e proibiu qualquer padre da sua diocese de lê-lo, nele escrever ou concorrer de qualquer forma para o seu desenvolvimento. E terminava ameaçando de excomunhão os redatores do diário, se discutissem o ato episcopal.
Não restava ao "Univers" senão o recurso a Roma. A decisão de Mons. Sibour fora tão inesperada e sem propósito, que Mons. Parisis, ao ter ciência do mandamento, disse em um jantar de que participava: "Senhores, o Arcebispo de Paris acaba de dar um escândalo".
O "Univers" recorreu a Roma, e por sua vez o Pe. Gaduel denunciou Donoso Cortés ao Santo Ofício. Pio IX, por intermédio do Cardeal Fioramonti, fez sentir a Mons. Sibour que deveria levantar o interdito. Os jesuítas responderam, pela "Civiltà Cattolica", às críticas do Pe. Gaduel ao livro de Donoso Cortés, mostrando que neste não havia nenhum erro de doutrina. Mons. Sibour retirou a sua condenação, e os artigos da "Civiltà" puseram um ponto final às críticas do Pe. Gaduel.
A imprensa leiga, dessa vez, não pode deixar de reconhecer que o "Univers" ganhara completamente a questão. A "Presse" estudou a situação em artigo que foi resumido por Eugène Veuillot nos seguintes termos:
"Disseram ao Univers que continue ultramontano, e era justamente isso que o Arcebispo lhe reprovava.
"Aprova-se o Univers, e ao mesmo tempo se condenam as outras folhas religiosas.
"A carta não é do Papa, mas o secretário do Papa deve pensar como o Papa.
"Resumo: o Univers ganhou o processo pelo menos em primeira instância".
A carta escrita por Mons. Fioramonti, secretário de Pio IX para as letras latinas, em resposta à que Louis Veuillot lhe dirigira a propósito do incidente, dizia o seguinte:
"Vossa carta, com data do quinto dia antes das nonas deste mês de março, não me causou pouca preocupação e pena. E sabendo há quanto tempo trabalhais com todas as vossas forças e todo o vosso ardor pela causa da Igreja, desejaria, nesta circunstância, sustentar e aplaudir vossa coragem pela palavra do Soberano Pontífice. No entanto, a reputação que granjearam a distinção de vosso talento e a sinceridade de vosso devotamento à Sé Apostólica me arrastaram, e resolvi responder a vossa carta e dar-vos a conhecer meu juízo sobre o vosso jornal, qualquer que ele seja.
"Preliminarmente, todo o mundo o confessa e reconhece: foi uma resolução inspirada pela piedade, a que tomastes, de escrever um jornal religioso a fim de sustentar e defender corajosamente a verdade católica e a Sé Apostólica. Mas o que merece seguramente um louvor particular é que, nesse jornal, nunca colocastes nada acima da doutrina católica, aplicando-vos ao mesmo tempo a dar preeminência às instituições e aos estatutos da Igreja Romana, a defendê-los e sustentá-los com grande ânimo e resolução. Daí vem que o vosso jornal, devido à matéria que é objeto de vossos trabalhos, excite grande interesse aqui, como na França e em outros países, e seja olhado como muito próprio para tratar as coisas que devem ser tratadas nos tempos presentes. Entretanto, as pessoas que aderiram fortemente a certos princípios, a certos usos e certos costumes não têm o mesmo juízo sobre o vosso jornal. Como não podem rejeitar-lhe abertamente as doutrinas, procuram há muito tempo o que possam reprovar ao seu redator, e não têm outra coisa a condenar senão a vivacidade da sua linguagem e a sua maneira de exprimir.
"Os redatores de outras folhas, se bem que religiosas, estão igualmente prontos e ardentes para atacar com violência vosso jornal. Daí resulta que fazem entrar pouco a pouco a desconfiança nas almas — tornadas sequiosas, sobretudo nestes tempos, pelo amor da pura doutrina — e retardam de modo deplorável o movimento que as arrasta, por um impulso dia a dia mais forte, na obediência e amor à Santa Sé".
Seguem-se alguns conselhos a Veuillot, e Mons. Fioramonti termina com estas palavras: "Tais são, eu o sei, as opiniões de um grande número de homens eminentes que têm estima pela parte religiosa de vosso jornal. Quanto à sua parte política, é de propósito que dela não falo". É bom lembrar que em 1853 os franceses eram governados por Napoleão III, cujos incidentes com a Santa Sé tornavam as relações entre Pio IX e a França bastante delicadas. Isto recomendava muita prudência por parte de Mons. Fioramonti.
VERBA TUA MANENT IN AETENUM
UMA CIÊNCIA UTILÍSSIMA PARA DESMASCARAR E REFUTAR O ERRO
SIXTO V: Pela divina munificência d'Aquele que é só quem dá o espírito de sabedoria, e que, no correr dos tempos e segundo as necessidades, não cessa de enriquecer Sua Igreja com novos benefícios e de muní-la de defesas novas, nossos antepassados, homens de ciência profunda, conceberam a teologia escolástica. Foram, porém, sobretudo dois gloriosos Doutores, o angélico São Tomaz e o seráfico São Boaventura... que, pelo seu talento incomparável, pelo seu zelo assíduo, pelos seus grandes trabalhos e vigílias, cultivaram essa ciência, a enriqueceram e a legaram ao porvir, disposta numa ordem perfeita, ampla e admiravelmente desenvolvida. E, por certo, o conhecimento e o hábito de uma ciência tão salutar, que promana da fonte fecundíssima das Sagradas Escrituras, dos Sumos Pontífices, dos santos Padres e dos Concílios, tem podido, em qualquer tempo, ser de grandíssimo socorro para a Igreja, quer para a sã inteligência e verdadeira interpretação das Escrituras, quer para ler e explicar os Padres mais segura e utilmente, quer para desmascarar e refutar os diversos erros e as heresias; mas nestes últimos dias, que já nos trouxeram aqueles tempos críticos preditos pelo Apóstolo e nos quais homens blasfemos, orgulhosos, sedutores, progridem no mal, errando eles próprios e induzindo em erro a outros, certamente, para confirmar os dogmas da fé católica e refutar as heresias, a ciência de que falamos é mais do que nunca necessária (Bula "Triumphantis", de 1588).
MITIGAR OS PRINCIPIOS CATÓLICOS PARA IR AO ENCONTRO DO SOCIALISMO?
PIO XI: Ora, se os falsos princípios assim se mitigam e obliteram, pergunta-se, ou melhor, perguntam alguns, sem razão, se não será conveniente que também os princípios católicos se mitiguem e moderem, para sair ao encontro do socialismo e congraçar-se com ele a meio caminho. Não falta quem se deixe levar pela esperança de atrair por este modo os socialistas. Esperança vã! Quem quer ser apóstolo entre eles, é preciso que professe franca e lealmente toda a verdade cristã, e que de nenhum modo feche os olhos ao erro. Esforcem-se, antes, se querem ser verdadeiros arautos do Evangelho, por mostrar aos socialistas que as suas reclamações, na parte que têm de justo, se defendem muito mais vigorosamente com os princípios da fé e se promovem muito mais eficazmente com as forças da caridade — (Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15-V-1931).
AUMENTA CADA DIA A DEVOÇÃO À MÃE DE DEUS
PIO XII: Nosso Pontificado, assim como os tempos atuais, tem sido assediado por inúmeros cuidados, preocupações e angústias, causados por grandes calamidades e por muitos que andam afastados da verdade e da virtude. Mas é para Nós de grande conforto ver como, à medida que a fé católica se manifesta publicamente cada vez mais ativa, aumenta também cada dia o amor e a devoção à Mãe de Deus. Este fato permite augurar quase por toda parte uma vida melhor e mais santa. E assim sucede que, por um lado, a Santíssima Virgem desempenha amorosamente Sua missão de Mãe para com os que foram remidos pelo sangue de Cristo, e por outro, as inteligências e os corações dos filhos são estimulados a uma contemplação mais profunda e diligente de Seus privilégios — (Constituição Apostólica "Munificentissimus Deus", de 1-XI-1950).
O PERIGO DE HOJE É A LASSIDÃO DOS BONS
PIO XII: Sabemos que vós quereis ser fermento de vida, mas tememos que a prolongação das mesmas lutas e a repetição das mesmas provas possa prostrar-vos no abatimento. Permiti que vosso Pai e Pastor vos ponha em guarda contra essas ameaças. Desejaríamos que a voz dos sinos de Páscoa vos levasse, junto com a alegria, a paz e o amor fraterno, esta grave advertência: o perigo de hoje é a lassidão dos bons. Sacudi toda a indolência; voltai às virtudes costumeiras. Sirva-vos de exemplo o Redentor ressuscitado, que venceu para sempre a morte (cfr. Rom. 6, 9); deste modo as vitórias já alcançadas, com vossa cooperação, para a Fé, a Igreja e a humanidade se tornarão, em quanto de vós depende, estáveis e duradouras. Não descanseis inertes sobre os louros do passado; não pareis a contemplar o sulco já aberto; mas fortalecendo o que felizmente foi conseguido, correi com ardor rumo a novas vitórias. — (Alocução da Páscoa de 1953).
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Máquina, ídolo vulgar e disforme de um mundo materialista
Plinio Corrêa de Oliveira
Comecemos por uma verdade muito conhecida. Sendo Deus autor da natureza, todas as leis segundo as quais o universo se rege são imagem de Sua sabedoria e bondade. Entre estas leis, estão as da Física, e entre as da Física estão as da Mecânica. Assim, só pode merecer louvor, quem se dedica ao estudo da Mecânica, e à obtenção de novos benefícios para o homem por meio de maquinismos sempre mais aperfeiçoados.
Passemos daí para outra verdade também muito conhecida. Não basta que gostemos do que é bom. A coisas boas estão dispostas numa hierarquia, umas em relação às outras, e todas em relação a Deus. De onde decorre que, apreciando tudo quanto Deus fez, devemos entretanto atribuir a cada coisa o valor exato que Deus lhe quis dar. É razoável, por exemplo, gostar de plantas. Mas haveria um absurdo em preferir as plantas ao homem. É justo cultivar as artes. Mas seria gravemente errôneo sustentar que elas devem ser tão consideradas quanto a Teologia. E assim por diante.
Ora, as leis da mecânica se referem ao mundo inanimado, isto é, aos seres menos elevados na ordem da criação, que não têm grau algum de vida. Não haveria pois desordem maior, nem mais grave, do que arvorar alguém a mecânica como o objeto mais alto e mais nobre da inteligência humana, e pretender que o mundo inteiro, toda a sociedade humana, com as miríades de sociedades menores e grupos que deve conter, deve ser e mover-se "more mechanico".
Pode uma pessoa gostar imensamente da mecânica, mas nem por isto está dispensada de reconhecer a natural superioridade de outros conhecimentos, sobre aqueles a que se dedicou. Um veterinário que procurasse organizar o mundo como um imenso haras erraria menos do que um mecânico que o concebesse como um imenso maquinismo.
Ora, precisamente neste erro é que caiu a maioria de nossos contemporâneos. Tudo quanto diz respeito à máquina os extasia, os deleita, os entusiasma. Engrenagens, rebites, molas, eixos, mancais, correias, polias, eis o que o homem de hoje se deleita em conhecer, em analisar, em melhorar. A literatura, a arte, a filosofia, a história, a Teologia o deixam relativamente inerte. Mas quando está em presença de uma máquina – um motor de automóvel ou de motocicleta, por exemplo – oh bem-aventurança, não há parafuso nem rosca em cuja contemplação ele não se absorva inteiro.
Qual a origem deste estado de espírito? Seria muito longo responder a esta pergunta. Lembremos apenas, de passagem, que a mecânica tem como campo único e exclusivo a matéria: o homem da rua de nosso século, profundamente materialista, há de ter naturalmente uma propensão especial pela mecânica.
* * *
Daí decorrem, como é óbvio, graves inconvenientes. A idolatria da máquina chegou a uma verdadeira mecanização da vida. E o Santo Padre Pio XII, já por duas vezes, premuniu contra este novo erro – do espírito mecânico – os fiéis. Fê-lo uma vez na alocução à Ação Católica em 3 de maio de 1951 [1], em que manifestou a necessidade de a Ação Católica não ser concebida à maneira de um imenso mecanismo movido a eletricidade de um ponto de comando central, pois deve ser uma articulação viva de seres vivos, e não um encaixe de peças inertes se bem que sabiamente ligadas entre si. E em sua radiomensagem do último Natal [2]- um dos mais brilhantes e profundos discursos do atual Pontífice, comparável sem dúvida às mais belas Encíclicas de Leão XIII – mostrando que o ritmo do trabalho e do progresso da humanidade não é impessoal, cego, inexorável como o de uma máquina, mas vivo, sábio, imensamente variável como é o governo paternal de Deus. A tendência a organizar mecanicamente as coisas mais vastas como a sociedade humana, ou mais importantes como a A.C., mostra bem a que extremos a idolatria da máquina pode levar.
* * *
Em um dos clichês desta página temos um curioso ídolo mecânico. É uma máquina de não fazer nada. Este aparelho complicado, que "funciona" perfeitamente, foi ideado pelo Sr. Lawrence Wahlstrom, de Los Angeles, EE. UU. Não tem finalidade prática. Destina-se apenas a deleitar os amadores do gênero, pela imensa complexidade de seu inútil funcionamento. Quantos - quiçá entre nossos leitores - se deleitariam em analisar este mecanismo, e achariam fastidiosa a leitura de algumas estrofes de Camões, ou, o que é pior, de uma página de São Bernardo sobre Nossa Senhora!
Os outros clichês apresentam as ruínas majestosas e elegantes da Catedral de Coventry, destruída durante a última guerra. Ao seu lado, o projeto da nova catedral e no último clichê o estado atual da mesma, que muito mais lembra uma imensa fábrica, maciça, pesada, e construída sem a menor preocupação estética, do que um templo de Deus, destinado a incitar, pela nobreza de suas linhas, os fiéis a elevar sua alma ao Deus três vezes Santo, fonte infinita e substancial de toda a beleza. Linhas e formas que seriam práticas para uma usina, adotadas para que, num templo para o qual são inteiramente inadequadas?
Idolatria da máquina, idolatria da matéria...