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Contratempos ou sinais?

Conhecer a situação do clero no século XVIII pode ajudar a entender os dias de hoje. Pequenos fatos exemplificativos. C.A.

Ainda outro dia, numa roda, conversava-se sobre a situação atual da Igreja. Um dos participantes salientava, não sem tristeza, o papel preponderante de clérigos na espantosa decadência do espírito religioso entre os católicos. Ao que um dos interlocutores redarguiu:

– Nas épocas de crise é sempre assim. Veja, por exemplo, o século XVIII, marcado a fundo pela péssima Revolução Francesa. Quantos sacerdotes a ela aderiram, alguns até a promoveram. Muitos outros, por sua indiferença, facilitaram a tarefa dos revolucionários.

– É verdade –– completou um terceiro, bom conhecedor de História ––, mas com uma ressalva. É que no século XVIII, ao lado do clero revolucionário ou colaboracionista, existia ainda considerável parcela de bons padres. Grande número não aceitou as leis impostas ao clero pela Revolução e houve até sacerdotes mártires. Ademais, mesmo dentre os que apostataram, encontraram-se depois penitentes arrependidos. De modo que a história do clero no século XVIII é complexa. Se, no total, faltou-lhes a necessária fibra contra-revolucionária para impedir a avalanche que se precipitou contra o Altar e o Trono, é difícil, e pode ser injusto, generalizar.

A lembrança dessa conversa ainda estava fresca em minha memória, quando me caiu nas mãos um livro que fornece preciosos elementos para esclarecer esse tema: La vie Quotidienne du Clergé Français au XVIIIe siècle (A Vida Quotidiana do Clero Francês no século XVIII), Hachette, Paris, 1987. Seu autor, Bernard Plongeron, que já lecionou nas Universidades de Estrasburgo(França) e Louvain (Bélgica), é professor no Instituto Católico de Paris.

Cito aqui um ou outro fato extraído dessa obra, para ajudar o leitor a tomar o pulso da situação do clero naquela época, comparando-a, se quiser, com a atual.

* * *

* "Ter-se-ia causado espanto à quase totalidade dos eclesiásticos franceses do fim do Antigo Regime se se lhes mostrasse que, aquilo que eles tomavam por contratempos de sua vida quotidiana, eram na realidade sinais precursores das altas turbulências anunciadoras de tempestades fatais" (p. 32).

* "Entre 1760 e 1785 multiplicam-se os mandamentos e artigos sinodais referentes à batina 'uniforme da milícia santa'. O Bispo de Nevers recorda, em 1768, ·que ela é uma dura obrigação; 'Envergonhar-se e depô-la é ser desertor; trânsfuga e declarar-se indigno de revesti-la'" (p. 75).

* "Uma providencial penúria impediu os cônegos de Sens, por volta de 1770, de realizar seu grandioso projeto: pôr abaixo a renda gótica de sua catedral e dotá-la de uma fachada neoclássica! Apesar de tudo, não era mais insensata a idéia do Bispo Lafont de Savine de pintar num tricolor berrante [cores da Revolução] o coro e o órgão da catedral de Viviers, em 1792. A moda do dia não opera senão devastações" (p. 125).

* "A decisiva ruptura com 'o espírito do mundo' na congregação dos maurienses pertenceu ao capítulo geral de 1783. Ele provocou a demissão discreta da maior parte dos dignitários maçônicos, até então muito numerosos entre os maurienses. Dom Malherbe, futuro vigário constutucional [aderente à Revolução] da paróquia Saint-Germain-des Près assim anunciou a seus irmãos de loja que ele se demitia do cargo de venerável: 'Eu vos declaro com franqueza e com reconhecimento que não posso continuar a preencher esta função e que ninguém tem melhores razões do que eu para demitir-se absolutamente'. Gesto repetido em muitos conventos parisienses" (p. 165).

* Após a tormenta revolucionária, em 1803, "os fiéis da catedral de Auxerre, que chegam para a Missa do domingo, têm a surpresa de contemplar, durante um ano, um velho prosternado diante do grande portal, durante todo o tempo. A atitude digna, o porte de cabeça que deve ter sido altivo, espantam num homem que se recomenda humildemente às preces dos passantes. Cochicha-se logo que se trata de um antigo vigário-geral de D. Cicé, depois sabe-se seu nome e sua história: o cônego Vaultier que se casou, na época do Terror; com uma antiga religiosa; ele tem mais de 67 anos” (p. 51).


| EDITORIAL |

Assestando o foco

CATOLICISMO associa-se, nesta Semana Santa, às comemorações promovidas pela Igreja em memória da Paixão e Morte do divino Redentor.

Convém ressaltar que nosso Salvador previu em sua Paixão a crise que assola atualmente sua Esposa Mística, e padeceu por esse triste estado de coisas, descrito por Paulo VI como a penetração da 'fumaça de Satanás no Templo de Deus".

Além disso, parece muito oportuno oferecer aos católicos a ocasião de meditarem alguns lances da Paixão, que apresentam especial analogia com situações que estamos vivendo. E um desses episódios, dos mais característicos, é o iníquo processo a que foi submetido o Deus humanado.

Nesse evento, pode-se analisar o ódio sem limites, a ingratidão brutal, precisamente por parte daqueles que deveriam ser os primeiros a receber e homenagear o Messias prometido: os chefes do Sinédrio. ódio cego que articula turbas, pressiona e ameaça um procônsul romano mole e covarde, para obter a morte de Jesus, o Verbo Encarnado.

O aprofundamento de tais reflexões nos leva a constatar a semelhança existente entre os fatos ocorridos na Sagrada Paixão e os acontecimentos de nossa época, como os leitores poderão encontrar adiante, no Caderno Especial.

Outra matéria - esta de caráter mais recente, mas alusiva também à Semana Santa - estampada na presente edição, será, sem dúvida, para o leitor, objeto de edificação.

Trata-se da descrição de antiga e tocante cerimônia, que desde 1242 até 1931 se efetuou na corte espanhola, em todas as Quintas-Feiras Santas: o lava pés de mendigos. É comovedor verificar que os mais altos personagens, ocupando o ápice de uma sociedade cristã, imitavam a Nosso Senhor Jesus Cristo, servindo humildemente os mais pobres dentre os pobres.

Como é igualmente digno de menção o costume, que vigorou desde o século XIII até o reinado de Isabel, a Católica, no século XV, de o Soberano espanhol perdoar, na Sexta-Feira Santa, um condenado à pena capital. Os monarcas escolhiam, dentre alguns envelopes brancos fechados que continham os nomes dos diversos condenados à morte, um deles. O sentenciado, cujo nome figurava dentro do envelope escolhido, tinha sua pena remitida.

Isabel II, num gesto de excessiva generosidade, que foi imitado por todos os monarcas espanhóis subsequentes até Afonso XIII, concedia indulto a todos os condenados à pena capital, nas Sextas-Feiras Santas.


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