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Santas Casas de Misericórdia: obra de católicos fidalgos lusos

Nunes Pires

O ETERNO, imenso e todo poderoso Senhor das Misericórdias, começo, meio e fim de toda bondade, aceitando as preces e os rogos de alguns justos e tementes a Ele, quis repartir com cooperadores parte de sua misericórdia.

"E nestes derradeiros dias inspirou a alguns bons e fiéis cristãos e lhes deu moção, força e caridade para formarem uma irmandade e confraria com o nome e invocação da Santíssima Virgem da Misericórdia".

Assim, à maneira de uma clave, começa o Prólogo do "Compromisso" da Irmandade de Nossa Senhora, Mãe de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, cuja primeira edição foi lançada em Lisboa, no ano de 1516. Tal publicação foi feita sob os auspícios do Rei Dom Manoel, o Venturoso, e nela se basearam todos os ramos da Confraria, fundados no vasto território metropolitano e ultramarino de Portugal.

A palavra "misericórdia", na linguagem corrente de Portugal e dos territórios ultramarinos passou então a designar não apenas uma virtude cristã, mas também essa benemérita instituição.

Sua fundação teve lugar numa das capelas do claustro da Sé de Lisboa, a 15 de agosto de 1498, festa da Assunção de Nossa Senhora. Naquele dia memorável ali se encontravam o Provincial da Ordem da Santíssima Trindade e Redenção dos Cativos, Frei Miguel Contreiras; a Rainha Dona Leonor, irmã de Dom Manoel; Mestre Miguel, provavelmente médico; o livreiro Gonçalo Fernandes; e mais alguns outros ilustres lisboetas, que constituíram o grupo fundador.

Dona Leonor, muito dedicada à prática da caridade cristã, principalmente após haver enviuvado, fundara 15 anos antes o pioneiro hospital junto às águas termais de Caldas da Rainha.

Para honrar a Virgem Santíssima, enquanto modelo de Misericórdia, foi escolhida como festa a ser celebrada com a maior solenidade, a Visitação de Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel. Nessa ocasião, conforme narra o Evangelista São Lucas, a Mãe de Deus entoou o sublime cântico do "Magnificat, glorificando a Misericórdia divina, que se estende de geração em geração, sobre aqueles que O temem.

Objetivos e funções da Confraria

Transcrevendo o que ensinou o grande Doutor da Igreja, São Tomás de Aquino, o "Compromisso" relaciona as obras de misericórdia que seriam exercidas pelos membros da Irmandade.

Obras espirituais: 1. ensinar os ignorantes; 2. dar bons conselhos; 3. punir os transgressores com sabedoria; 4. consolar os que sofrem; 5. perdoar as injúrias recebidas; 6. sofrer as faltas do próximo; 7. rezar pelos vivos e pelos mortos.

Obras corporais: 1. redimir os cativos e visitar os prisioneiros; 2. curar os doentes; 3. vestir os nus; 4. dar de comer a quem tem fome; 5. dar de beber a quem tem sede; 6. dar abrigo aos peregrinos e aos pobres; 7. enterrar os mortos.

No que diz respeito à admissão de membros, figuram como requisitos: ser temente a Deus, participar das festividades em honra da Visitação de Nossa Senhora, da Procissão de Quinta-Feira Santa e do cortejo de enterro dos restos mortais de condenados à morte. Previa-se também o número máximo de 100 membros, em duas partes iguais, de nobres e de plebeus.

O Provedor, autoridade máxima, geralmente de boa posição social e financeira, tinha a incumbência de supervisionar todas as atividades da Irmandade, defendendo os privilégios a ela outorgados, seja pelo poder civil, seja pelas leis da Igreja. O Concílio de Trento concedera inteira autonomia administrativa em relação à Autoridade Eclesiástica.

As tarefas mais absorventes passavam, mediante rodízio mensal, por toda a centena de irmãos. Divididos em nove duplas, os chamados Mordomos tinham a seu encargo tarefas específicas: levar remédios e alimentos aos doentes; dar-lhes conforto espiritual; providenciar a cada domingo a alimentação especial para os presos (sopa de carne, vinho e pão); levar esmolas às pessoas outrora abastadas que haviam caído na miséria — a chamada "pobreza envergonhada" —, cuja indicação cabia ao Vigário da respectiva paróquia; controle das finanças da Irmandade; manutenção do culto sagrado; e, finalmente, a assistência aos presos. Em visitas habituais às prisões, os Mordomos encarregados verificavam e atendiam às necessidades de alimentação e higiene dos criminosos, interferindo também, credenciados oficialmente, no andamento do processo judicial.

Anteriormente, já existiam em Lisboa, como aliás em toda a Europa cristã, hospitais mantidos por Ordens religiosas. Dom Manoel procurou, para aperfeiçoá-los, colocar os hospitais sob os cuidados da Misericórdia. Para isso solicitou autorização da Santa Sé, a qual foi concedida em 23 de setembro de 1499, pela Bula "Cum sit carissimus", do Papa Alexandre VI. Também nesse ano, através de alvará de Dom Manoel, os irmãos dessa instituição passaram a gozar de inteira exclusividade na coleta de donativos em Lisboa, e depois em outras cidades. Para tal fim percorriam as ruas com as caixas de esmolas e colocavam cofres em lugares fixos, conhecidos como "cepos da Misericórdia".

De tal modo expandiu-se a Confraria que, em 1524, ao falecer Dona Leonor, nada menos que 61 cidades e vilas de Portugal já possuíam a sua Misericórdia. Destas proveio a fundação de novos ramos da Confraria, onde quer que se estabelecessem os soldados e mercadores lusos na América, África ou Oriente.

No Brasil, com as primeiras cidades

Pode-se dizer que a introdução da Irmandade da Misericórdia em cada cidade ou vila do Brasil coincidiu com sua fundação oficial, A Misericórdia de Santos, talvez a mais antiga de nosso País, por exemplo, foi estabelecida em 1543 por Brás Cubas, fundador da cidade.

O Bem-aventurado Pe. José de Anchieta tem seu nome ligado à fundação da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Ele incentivou-a vivamente, em 1582, quando por ali passou a numerosa esquadra espanhola, comandada por Diogo Flores Valdez, e que trazia a bordo três mil homens, muitos deles atingidos por grave epidemia e "necessitados de cura e agasalho", conforme registram as crônicas da época.

Não é conhecida a data exata da fundação da Misericórdia da Bahia, pois todos os livros existentes em suas dependências até 1624, foram completamente destruídos pelos hereges holandeses que invadiram Salvador naquele ano. Sabe-se, entretanto, que foi criada no período dos governos de Tomé de Souza e Mem de Sá, isto é, depois de 1549 e antes de 1572, uma vez que o terceiro Governador Geral, falecido nesse ano, contemplou a Misericórdia em seu testamento.

Desde seus primórdios, afluíram à Tesouraria da Misericórdia doações as mais diversas, em dinheiro, casas e terras, pois as obras caritativas deviam desenvolver-se sem depender de auxílio financeiro da Coroa.

Em 1587 o Provedor Cristóvão de Barros visitou pessoalmente os fazendeiros do Recôncavo baiano, coletando ajuda para o primitivo hospital da Irmandade, que atendia gratuitamente, não apenas os moradores da vila, mas também qualquer forasteiro que ali chegasse.

Generosos testamentos

O testamento de Mem de Sá determinava que suas terras em Sergipe passariam à Misericórdia e ao Colégio dos Jesuítas, caso seus dois filhos, Francisco e Filipa, morressem sem deixar descendentes. Isso realmente ocorreu, e após demorado processo que se arrastou por muitos anos, a Misericórdia recebeu sua parcela.

Não havia chefe de família abastada que ao morrer não deixasse uma parcela de seus bens à Misericórdia, solicitando em contrapartida o cuidado de seus funerais e, sobretudo, a celebração de Santas Missas em sufrágio de sua alma.

A documentação existente nos arquivos da Misericórdia de Salvador demonstra, além disso, o alcance de sua participação no mecanismo de transmissão de bens deixados em testamentos. Por exemplo, um comerciante da capital baiana podia, ao morrer, nomear a Misericórdia como executante de seu testamento, solicitando que fizesse chegar a seus parentes em Portugal uma parcela da herança. Nesse caso uma carta seria enviada pela Confraria à sua congênere de Lisboa, que confirmava ou não a localização dos favorecidos, encarregando-se em seguida da eventual entrega.

Os pedidos de celebrações de Missas periódicas foram se acumulando ao longo dos anos e dos séculos, a tal ponto que em 1734 o Capelão da Irmandade, Pe. Francisco Martins Pereira, vendo-se na impossibilidade de atender milhares de celebrações do Santo Sacrifício, obteve do Papa Clemente XII a necessária comutação.

O primitivo edifício da Misericórdia de Salvador foi ampliado em 1650, tal como se encontra hoje. Ao lado da capela, situa-se o claustro junto ao qual, no andar superior, acha-se o amplo salão onde outrora reuniam-se os irmãos para a eleição da Mesa. A votação era realizada anualmente, na festa da Visitação de Nossa Senhora. A escada de acesso à entrada do referido salão permite uma visão panorâmica da Baía de Todos os Santos, emoldurada por majestosos arcos de alvenaria.

Procissões e amparo aos condenados

Nas paredes laterais da nave da capela observam-se grandes quadros de azulejos que retratam duas procissões, as quais se realizavam a cargo da Confraria.

A Procissão dos Ossos, instituída por alvará de Dom Manoel, efetuava-se no dia de Finados, durante a qual eram sepultados os restos mortais dos condenados à morte.

A procissão da Quinta-Feira Santa, relembrando a prisão de Nosso Senhor Jesus Cristo, entregue pelo discípulo traidor, visitava várias igrejas, a começar pela da Ajuda. Em tais visitas, o Capelão entoava o cântico "Senhor Deus, misericórdia". Precedidos pelo grande estandarte da Confraria e ao som de fagotes, os irmãos, ladeados por Sacerdotes, conduziam quadros retratando cenas da Paixão. Escravos, em grande número e trajados de gala, portavam grandes tochas, substituídas de tempos em tempos, as quais evocavam aquelas usadas pelos soldados romanos no monte das Oliveiras. O cortejo ficou conhecido, por isso, como a Procissão do Fogaréu.

Em 1716 foi instalado o asilo do Santíssimo Nome de Jesus, para órfãos, e dez anos depois foi introduzido o sistema da "roda", o qual permitia a colocação nesta de recém-nascidos que fossem rejeitados pelas próprias mães.

Os condenados à morte eram acompanhados, no momento de subir à forca, pelos irmãos da Misericórdia. Indulgência plenária foi concedida pelo Papa Alexandre VIII ao condenado que, antes de ser morto, osculasse o Crucifixo apresentado pelo Capelão da Misericórdia.

Além disso, um costume determinava que, na eventualidade de o enforcamento não se consumar — por exemplo, em caso de rompimento da corda —, o condenado fosse libertado, após ser encoberto pela bandeira da Misericórdia.

O sino que não mais repica

Ao cair da tarde, quem se encontrar na Praça da Sé, em Salvador, poderá contemplar atualmente, de determinado ângulo, sugestivo quadro: o singelo e envelhecido campanário da Capela da Misericórdia, tendo como fundo de cena o belo céu que costuma ostentar a capital baiana, ao pôr do sol.

Contudo, naquele venerável campanário — marco da piedade marial de Frei Miguel Contreiras, de Dona Leonor e de uma legião de almas abnegadas — o sino não mais repica na hora do Angelus, como outrora...

Por que? Abafaram-no, entre outras razões, a nefasta influência do naturalismo, do agnosticismo e da impiedade daqueles que, ao longo dos séculos, foram amortecendo em Portugal e em outros países a adesão à Fé Católica. Dentre eles, um nome que alcançou triste realce em terras lusas, foi Sebastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal.

Para os autênticos católicos, contudo, Nossa Senhora é verdadeiramente a Stela Matutina, que orienta os homens rumo à eterna bem-aventurança. Mas não é só. Seus filhos encontram, já nesta terra, uma forma de convívio e de amor ao próximo que os agnósticos e os ímpios jamais alcançam, e da qual a venerável Confraria de Nossa Senhora, Mãe de Deus, Virgem da Misericórdia, constitui significativo exemplo.

A Procissão dos Ossos dava sepultura aos restos mortais dos condenados à morte. Azulejos na Capela da Misericórdia da Bahia.

Frei Miguel Contreiras, confessor da Rainha Dona Leonor e mentor da Irmandade da Misericórdia.

Estandarte da Misericórdia de Lisboa (século XVI).

Obras consultadas

• J. R. Russel-Wood, "Fidalgos and Philanthropists — The Santa Casa da Misericórdia of Bahia, 1550-1575", University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1968.-(Nota:. no Brasil essa obra será editada em breve pela Universidade de Brasília).

• Laima Misgravis, "A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 1559?-1884", Edição do Conselho Estadual de Cultura, São Paulo, 1977.

• Fernando da Silva Correia, "Origens e formação das Misericórdias Portuguesas", Henrique Torres Editor, Lisboa, 1944.

• Ernesto de Sousa Campos, "Bandeiras e Emblemas das Misericórdias", Edição do Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, Rio de Janeiro, 1948.

• "Tombamento dos Bens Imóveis da Santa Casa de Misericórdia da Bahia", Edição da própria Irmandade, Salvador, Bahia, 1862.

• Manoel Querino, "A Bahia de Outrora", Livraria Progresso Editora, Salvador, Bahia, 2ª. edição, 1955.


Junta de El Salvador executa Reforma Agrária radical

Júlio de Albuquerque

O golpe mais ousado e radical desfechado por Carter em nome da política dos "direitos humanos" contra uma nação latino-americana verificou-se na fase final de seu governo, durante o ano de 1980. E a vítima foi a pequena república centro-americana de El Salvador.

Tal golpe, notável por seu radicalismo e pela rapidez com que foi executado, encontra-se descrito e comentado no ensaio "Washington's Instant Socialism in El Salvador" (O socialismo instantâneo de Washington em El Salvador), de Virgínia Prewett, uma publicação do Council for Inter-American Security, Washington, 1981.

A autora é conceituada jornalista, especializada em assuntos da América Latina, os quais conhece em profundidade. Ao longo de vinte e cinco anos, tem ela publicado colunas especializadas sobre assuntos latino-americanos em importantes jornais como o "Washington Post" e o "Washington Daily News", além de escrever artigos para revistas como "Foreign Affairs Quarterly", "The Reader's Digest", "Saturday Evening Post" etc. Também publicou vários livros sobre temas referentes à América Latina. Além de viajar frequentemente por nosso Continente, chegou a residir no México, Argentina e Brasil, onde viveu durante 3 anos como fazendeira no interior do País.

Aliás, a Sra. Prewett se interessa vivamente por assuntos ligados à propriedade rural e tem acompanhado e estudado todos os sistemas de reforma agrária realizados ou tentados em países da América Latina. O que ela relata sobre El Salvador o faz, portanto, com profundo conhecimento de causa.

Ação militar contra a propriedade privada

O que a obra relata como intervenção de um país grande — que se proclama campeão da democracia — em outro país, pequeno, para neste promover, do modo mais drástico e violento, uma Reforma Agrária socialista e confiscatória, é simplesmente inacreditável. Foi, como diz a autora, "um acontecimento que abalou uma nação, sem precedente na História do Novo Mundo".

Durante dois dias, 5 e 6 de março de 1980, caminhões, jipes e transportes militares, repletos de soldados em uniforme de campanha, percorreram todas as estradas e vias rurais de El Salvador, ocupando e confiscando a maioria das grandes fazendas que sustentavam a economia do país. Dessa maneira, 376 propriedades rurais e empresas agrícolas, com área de 1.200 acres (485,6 ha.) ou mais, foram arrancadas de seus donos e passaram a ser administradas pelo Estado.

Tudo foi confiscado: colheitas nos campos e nos celeiros, sementes, tratores e maquinaria essencial à lavoura mecanizada, caminhões, jipes, pequenos aviões, gasolina e peças de reposição; todo o equipamento para o plantio, colheita e processamento do café. Engenhos de açúcar; escolas e casas de empregados das fazendas. E, naturalmente, as casas dos proprietários com tudo o que elas continham. "Não pude sequer apanhar cartas de meus filhos que estavam em uma gaveta", disse um dos proprietários espoliados.

Alguns conseguiram dos invasores a permissão para levar seus próprios automóveis. Outro negociou para manter seu pequeno avião. Mas a maioria teve mesmo que sair a pé, levando apenas a roupa do corpo.

Pouco tempo depois do confisco das propriedades rurais à mão armada, os diretores de instituições financeiras particulares eram chamados por funcionários do governo para uma reunião. Enquanto lá estavam, destacamentos de soldados desenvolveram ação idêntica na cidade, cercando os bancos particulares e confiscando-os para o Estado.

Com a produção agrícola e o crédito em seu poder, o governo passou a ser praticamente o único administrador da economia salvadorenha.

Quem estava por trás da Junta

Essa verdadeira façanha realizada no plano das reformas socialistas e confiscatórias foi, na aparência, efetuada por ordem da Junta cívico-militar que, desde a deposição do então presidente, General Carlos Romero, em outubro de 1979, vem governando o país centro-americano com poderes discricionários.

Na realidade, porém, tanto em relação à deposição de Romero quanto à realização das reformas socialistas, a interferência do governo Carter foi decisiva. Os mesmos diplomatas americanos que, após tentarem inutilmente convencer Romero a renunciar, apoiaram sua deposição, forneceram ao novo governo o plano de Reforma Agrária. Agrônomos salvadorenhos, funcionários do Estado, foram mantidos durante três dias praticamente incomunicáveis, a fim de receber doutrinação maciça. Depois acompanharam os destacamentos militares que ocuparam as fazendas, para colocar logo em prática a fórmula made in USA de socializar o campo em El Salvador.

Essa "nova diplomacia" cartesiana resolveu tomar El Salvador como teatro de experiência de uma nova tática em matéria de política externa latino-americana. Consiste ela em implantar o socialismo em um país para tirar a Cuba o pretexto de intervir. Ou seja, fazer o comunismo antes que os comunistas o façam...

A defesa dos direitos humanos foi a justificativa arranjada para essa experiência. Foi então amplamente divulgado um embuste: o poder econômico de El Salvador estava concentrado nas mãos de 14 famílias latifundiárias que oprimiam os trabalhadores, negando-lhes condições mínimas para viver com dignidade.

Portanto, segundo o raciocínio de Washington, para evitar uma intervenção de Cuba em El Salvador, e já que uma "mudança" era inevitável (por "mudança" entenda-se comunistização do país), o que deveria ser feito era uma redistribuição das riquezas, ou seja, tirar dos que têm muito para dar aos que têm pouco. E para isso nada melhor que estatizar os bancos e as grandes propriedades rurais, para serem transformadas em cooperativas agrícolas administradas pelo governo, ou então, divididas em pequenos lotes a serem distribuídos aos colonos.

Assim a opressão terminaria, as rendas seriam distribuídas e todos participariam da riqueza do país. E a esquerda radical ficaria sem pretexto para tentar qualquer ação subversiva. E todos viveriam felizes na "paz dos pântanos" socialista. A autora mostra, com abundante documentação, como nenhuma dessas previsões otimistas se realizou. E também como foi patente a participação do governo norte-americano na manobra, agindo na base de mitos e embustes.

A comida não sossegou o leão

O fracasso mais evidente e protuberante em matéria de previsão foi o de que a esquerda radical se aquietaria com as reformas socialistas. E que haveria paz no país.

Precisamente o oposto veio a suceder. Poucos dias depois do golpe reformista, formou-se uma frente ampla esquerdista para combater a Junta e a intervenção norte-americana. A chamada Frente Democrática Revolucionária reuniu então sociais-democratas, socialistas, comunistas, católicos progressistas, ligas camponesas e organizações terroristas da esquerda radical. Ao todo, talvez, umas 250 mil pessoas preparadas para a luta violenta no país e no exterior. A guerrilha recrudesceu e as matanças se sucederam de lado a lado.

A Junta alçada no poder e apoiada por Carter levou o país a uma situação de violência jamais observada em governos anteriores. Panamenhos, cubanos e nicaraguenses vinham reforçar as forças guerrilheiras que tentavam derrubar o regime. Cuba e Nicarágua serviam também como campos de treinamento e veiculadores de armas. Enquanto isso, a ala direitista das forças armadas respondia com ações militares contra a guerrilha.

Julián Ignacio Otero, que chegou a ser chefe de logística e finanças de uma organização terrorista — as Forças Populares de Libertação (FPL) — declarou em entrevista à TV que a guerrilha salvadorenha recebe dinheiro para compra de armas, através de contas bancárias de jesuítas radicais de esquerda, comprometendo com o terrorismo os diretores da Universidade da América Central, instituição de ensino superior em El Salvador, dirigida por aquela Ordem religiosa. Otero ainda declarou que é no Comitê Político do Comando Central terrorista que a influência dos padres é mais forte; e que a Igreja está engajada em uma ativa campanha de agitação contra a Junta. Por isso a FPL, através do trabalho feito nas dioceses e nas paróquias, tem sido capaz de recrutar um grande número de camponeses que são enganados e empurrados para a luta armada contra o governo.

Outra "surpresa": a ruína da economia

Outra consequência do golpe reformista foi a deterioração da economia pela estatização da produção agrícola.

As cooperativas rurais criadas com o confisco das grandes fazendas, transformaram-se, na realidade, em autênticas comunas estatais. E é bem sabido como é baixa a produção em terras administradas pelo governo.

Por outro lado, os pequenos lotes de 17 acres "doados" ou "vendidos" pelo Estado a pequenos fazendeiros, ou candidatos a sê-lo, de tal maneira são sujeitos a exigências regulamentares para seu uso, que o termo "propriedade" se transforma em verdadeiro logro. Assim, durante 30 anos, ou até que ele tenha pago ao Estado por sua terra, o "proprietário" não pode alugá-la ou vendê-la. E pode acontecer que ela lhe seja tirada e "vendida" a outro, caso não satisfaça pontualmente às condições de pagamento que lhe são ditadas pelas autoridades governamentais. Que espécie de produção pode haver nessas pequenas "propriedades" cuja posse é tão precária? Tudo acabará por cair sob o jugo do Estado, tanto mais que este já controla o crédito, pela estatização dos bancos, e as exportações.

A economia de El Salvador dependia exclusivamente da produção agrícola das grandes propriedades em regime de livre empresa.

Essa estrutura dava àquela nação autossuficiência na produção de alimentos e ainda abundante quantidade de café para exportação. Apesar de ter a maior densidade demográfica da América Latina — cerca de 500 habitantes por km2 — sua renda per capita era, proporcionalmente a essa densidade, uma das maiores do Continente. E sua produtividade agrícola por km2 a mais elevada.

Dados da Organização das Nações Unidas, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Banco Mundial e da Organização dos Estados Americanos mostram que não havia excessiva concentração de riquezas nas mãos de poucos, estando a renda razoavelmente distribuída por toda a população.

Assim, em 1977, El Salvador investiu em educação e saúde 32% de sua receita federal, enquanto países considerados "democracias liberais", como Colômbia e Venezuela, investiram apenas 19,8% e 18,8%, e o semi-socialista México 18,5%. Em gastos militares El Salvador dispendeu apenas 6%, contra 9% da Venezuela e 17% da Colômbia. Em El Salvador, 20% da população urbana e 30% da rural viviam abaixo do que se considera como nível de pobreza, enquanto a média para a América Latina é de 43% e 41% respectivamente. Quanto aos índices de distribuição da renda nacional, em El Salvador os 5% mais ricos retinham 24% dela e os 20% mais pobres recebiam 5,7%, enquanto a média para a América Latina é de 32% e 3,7%, respectivamente.

Por esses números pode-se constatar como El Salvador não correspondia à imagem difundida pela imprensa esquerdista, que o apontava como um país no qual pequeno número de latifundiários e capitalistas, mancomunados com o exército, exploravam o povo, procurando lucrar o máximo e pagar o mínimo aos empregados e ao tesouro nacional, impedindo qualquer tentativa de organização entre os lavradores ou operários.

O "Procônsul"

Essa visão sobre el Salvador era especialmente adotada e difundida por Robert White, o esquerdista nomeado pela "nova diplomacia" de Carter para embaixador naquele país. Porém, a missão de White não era a de um simples embaixador, mas sim a de verdadeiro "procônsul", com a finalidade de comunistizar o país. Bem significativas são as palavras do então senador Jacob Javits (republicano esquerdista de Nova York, derrotado nas eleições de 1980), pronunciadas na reunião da Comissão de Relações Exteriores do Senado que confirmou a indicação de White: "... embora teoricamente o Sr. seja um embaixador mergulhado na burocracia, para nós o Sr. é um procônsul; irá como um embaixador, porém, se fizer apenas isto, os Estados Unidos não estarão bem servidos. Na realidade terá que ser um ativista e arriscar sua carreira... Creio que poderá contar com um forte apoio desta comissão. Neste assunto o Sr. é um procônsul, e não apenas um embaixador. Um simples embaixador não serve; não será suficiente".

As palavras de Javits foram endossadas por outro esquerdista, Frank Church, presidente da comissão, em nome de todos. White teve sua indicação confirmada por oito votos a dois, e uma abstenção.

Como é do conhecimento geral, o termo procônsul, utilizado na época do Império Romano, servia para designar um governador nomeado pela metrópole a fim de dirigir uma colônia. Foi esta a função atribuída a White pela "nova diplomacia" de Carter.

O mito das "quatorze famílias"

Para justificar o confisco, o "bode expiatório" inventado foi o mito das 14 famílias, depois ampliado pela imprensa esquerdista para 30 famílias. Porém, o número de atingidos foi muito superior ao daqueles que comporiam 14 ou 30 famílias. Calcula-se que mais de cinco mil pessoas tiveram seus bens roubados pelo Estado; pois o pagamento pelo confisco foi praticamente nulo, a não ser em bônus desvalorizados.

Isso na primeira fase do plano reformista, em que foram confiscadas propriedades de 485,6 ha. ou mais. Quando for aplicada a segunda etapa da Reforma Agrária, que prevê o confisco de propriedades menores, a partir de 250 acres, então um número ainda maior de pessoas será privado de seus bens.

Como se vê, o golpe assestado não é apenas contra um número restrito de famílias "opressoras", mas sim contra toda a classe de proprietários rurais e contra o próprio sistema de produção. Desse modo, a economia de El Salvador tende a um colapso, pois se destruiu a estrutura da livre empresa que a mantinha, com base no respeito à propriedade privada.

Para o colapso econômico também contribuirá certamente a fuga em massa de pessoas competentes

Junta de Governo de El Salvador, chefiada por Napoleón Duarte (o segundo da direita para a esquerda).

Um guerrilheiro salvadorenho.

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