va o nascimento da mãe do Salvador do mundo. Erigiram então no local um pequeno templo. Foi somente com a pregação do Evangelho que eles viriam a saber que a Virgem e o Salvador anunciados eram Maria e Jesus de Nazaré. Então, sobre a fonte de óleo conservada foi erigida a atual basílica de Santa Maria in Trastevere, onde se pode ver o manancial milagroso.
No século IX a.C., o profeta Santo Elias instalou-se numa gruta perto do topo do Monte Carmelo, onde foi o primeiro a ver profeticamente Nossa Senhora. Ele foi o precursor de seu culto junto com seus primeiros seguidores, os carmelitas, e originou a devoção à Virgem Flor do Carmo, a mais antiga da Igreja. Posteriormente, o profeta Isaías (entre 740 e 681 a.C.), divinamente inspirado, anunciou a vinda da Virgem Mãe e a Natividade imaculada do Messias: “O próprio Senhor vos dará este sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um Filho, e o seu nome será Emmanuel” (Isaías, 7,14).
Voltando a Chartres por volta do ano 50 a.C., sábios ‘carnutos’ teriam ouvido falar dessa profecia e intuído que o Emmanuel de Isaías seria o Deus verdadeiro, o que provaria que seus deuses eram meros ídolos. Chegaram até a enviar uma delegação a Jerusalém para perguntar se o bebê milagrosamente concebido já havia nascido. Um potentado de Chartres ordenou que fosse esculpida uma estátua dessa virgem desconhecida e de sua criança, que por não saber seus nomes ficou como a ‘Virgo Paritura’, inscrição gravada na sua base.
Ela era honrada numa secreta gruta sagrada, mas a população ficou sabendo e aquela virgem, que chamavam Senhora de Chartres, ficou no centro das atenções. A lenda menciona ainda que essa gruta druídica continha um poço sagrado ao qual se atribuíam efeitos prodigiosos. Júlio César, em seu célebre livro Sobre a Guerra dos Gauleses (De Bello Gallico), menciona a relevância das romarias dos ‘Carnutos’ em Chartres. Com a conversão ao cristianismo, o santuário druídico cedeu o espaço a sucessivos templos católicos que acabariam dando na milenar cripta.
Os romanos deram outro uso ao poço sagrado do local. Ali jogavam os primeiros cristãos que morriam martirizados. Tornou-se o “Poço dos Santos Fortes” (Puits des Saints-Forts), milagroso desde que os primeiros mártires de Chartres foram afogados em suas águas. Ele está na cripta, embora tenha secado e seja aberto à visitação.
A monumental catedral é na realidade o sétimo prédio religioso elevado sobre os anteriores. A parte principal do subterrâneo milenar tem o nome de “cripta de Fulbert”, o bispo que, entre os anos 1020 e 1024, iniciou mais uma reconstrução da catedral de Chartres em estilo românico criando a cripta atual para veneração das relíquias. Dom Fulbert de Chartres (952 ou 970–1028) foi grande promotor da devoção a Nossa Senhora, especialmente da festa da Natividade de Nossa Senhora e da Imaculada Conceição. Sua catedral, como as anteriores desde o século VI, foi consagrada a Nossa Senhora mais de um século antes da dedicação de Notre-Dame de Paris. Era considerada digna de custodiar o Véu de Maria Santíssima (“sancta Camisia”, em latim) doado no ano 876 pelo rei de Aquitânia Carlos o Calvo, neto de Carlos Magno, e ao qual Catolicismo já dedicou diversos artigos. O imperador Carlos Magno o recebeu como presente do imperador de Bizâncio.
O Véu é o próprio que a Virgem estaria usando durante a Anunciação e/ou ainda durante o nascimento de Jesus. Ele operou um grande milagre em 911, quando Gauscelinus, bispo de Chartres, afastou os terríveis invasores normandos. Fulbert fez grande difusão dos milagres operados por Nossa Senhora por meio do Santo Véu, e ensinou que pela intercessão de Maria as pessoas poderiam confiar em que Deus as atenderia benignamente, inclusive nos lances extremos do Apocalipse profetizado para o encerramento da História.
Na milenar cripta foi resguardada e salva a preciosa relíquia do Véu durante o grande incêndio de 1194. A cripta tem forma de U e uma extensão de mais de 220 metros. Nela se inserem várias capelas secundárias de diferentes épocas medievais.
No lado norte da grande cripta está a capela de Notre-Dame de Sous-Terre, que com seus 70 metros de comprimento é um dos pontos de oração mais procurados. Também se venera um relicário com um fragmento do Véu da Virgem, cuja parte mais importante está exposta no andar superior da catedral.
Perto dela encontra-se o referido Poço dos Santos-Fortes, com mais de 35 metros de profundidade, onde numerosos mártires na época das perseguições galo-romanas entregaram suas vidas. Ele havia sido tampado, mas foi redescoberto em 1901 e hoje está restaurado. As dimensões e a história da cripta lhe outorgam o nome de “catedral inferior”, e nesse caso seria a terceira maior catedral do mundo.
Ao arcebispo Fulbert6 atribuiu-se após sua morte uma “natureza santa”, mas ele não foi canonizado pela Igreja. Entretanto, Roma autorizou que as dioceses de Chartres e Poitiers comemorassem sua data em 10 de abril e o inscreveu no Martyrologium Romanum.
No sermão “Approbate Consuetudinis”, o santo arcebispo relata os milagres de Maria e mostra que, segundo a Bíblia, a linhagem de Nossa Senhora remonta ao Rei Davi e que os Livros Sagrados preanunciaram que Cristo nasceria d’Ela. Esse sermão propiciou mudanças na liturgia da Igreja nos séculos seguintes e seus cânticos foram incluídos na Missa da festividade da Natividade de Maria, comemorada em 8 de setembro. A pregação de Fulbert fez da catedral de Chartres um centro de devoção mariana e uma referência simbólica espiritual nos temidos tempos da virada do ano 1.000.
Os muros da cripta foram o marco da propagação das doutrinas e dos costumes que seriam consagrados pelo Papa São Gregório VII, notadamente a confirmação do poder supremo da Igreja de nomear abades e bispos acima do Estado. A escola teológica, canônica e estética que ali nasceu reafirmou que essa eleição era exclusiva da Igreja e que a autoridade temporal não podia se imiscuir, como hoje se faz em países comunistas como a China. Também reafirmou com vigor que incumbia à Igreja, e não ao Estado, disciplinar o clero, e que o delito de simonia (compra de cargos na Igreja) e a imoralidade dos clérigos deviam ser julgados pelo Tribunal eclesiástico.
Eis o imenso legado que irradia na milenar cripta da grandiosa catedral de Chartres, característico da ordem medieval, pondo acima de tudo a devoção a Nossa Senhora e a ordem hierárquica da Igreja.